DO OC – Publicado nesta segunda-feira (20/11) pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o Relatório de Lacunas para as Emissões 2023 (EGR, na sigla em inglês para Emissions Gap Report) mostrou que os compromissos climáticos assumidos atualmente pelos países para o Acordo de Paris conduziriam, se cumpridos, a um aquecimento de 2,5ºC a 2,9ºC até o final deste século. É quase o dobro do limite estabelecido pelo tratado, que tem como meta estabilizar o aumento da temperatura do planeta em 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais.
O estudo, publicado anualmente desde 2013, revelou ainda que as emissões de gases de efeito estufa aumentaram 1,2% no último ano (de 2021 para 2022), atingindo novo recorde: foram 57,4 gigatoneladas de CO2 equivalente (CO2e) despejadas na atmosfera. “Enquanto as temperaturas quebram recordes, o mundo falha (mais uma vez) em cortar emissões de gases de efeito estufa”, a mensagem que já aparece no título do relatório, dá o tom da publicação e confirma as constatações dos outros dois relatórios recém-lançados pelo Pnuma, sobre adaptação e produção : a ação climática atual é lenta e insuficiente para o tamanho do desafio colocado.
O EGR faz um alerta que não é novo, mas assume contornos mais dramáticos em um 2023 marcado pela quebra sucessiva de recordes de temperaturas e a ocorrência de eventos climáticos extremos em intervalos cada vez menores. O serviço climático da União Europeia, Copernicus, já dá como “virtualmente certo” que 2023 será o ano mais quente da história.
Ao trazer boas notícias – as emissões crescem muito mais lentamente agora do que antes do Acordo de Paris, a ciência climática tem soluções para o corte de emissões e isso controla comprovadamente o aumento da temperatura do planeta –, o documento sublinha que a redução de emissões até o fim desta década precisa de ser de 42% (na comparação com os níveis atuais) para manter a meta de 1,5ºC possível. Mesmo para a meta menos ambiciosa de Paris (2ºC de aquecimento), a redução precisaria ser de 28% até 2030.
Isso significa, a partir de agora, um corte de 4% a 6% nas emissões de gases-estufa todos os anos até 2030. Mas, na contramão dessa demanda, as emissões seguem crescendo, mesmo que a um ritmo muito mais lento. “O Progresso desde que o Acordo de Paris foi assinado, em 2015, mostrou que o mundo é capaz de mudança. A projeção de aumento das emissões de gases de efeito estufa em 2030, baseadas nas políticas em curso no momento da adoção do tratado, era de 16%. Agora, é de 3% [considerando as políticas atuais]”, destaca Inger Andersen, diretora-executiva do Pnuma, ponderando logo depois a insuficiência do resultado diante do necessário corte de 42% das emissões do mesmo período.
“O ponto positivo trazido por este relatório é nos mostrar que estamos na direção certa. Estamos, pouco a pouco, reduzindo o aumento das emissões. Mas, dada a gravidade da situação, estamos indo muito devagar. É como se houvesse uma ampulheta: estamos ficando sem grãos de areia para lidar com a emergência climática e os impactos que já são sentidos em todas as regiões do planeta”, diz Joana Portugal, professora e pesquisadora do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, uma das autoras do estudo. A cientista foi autora-líder do capítulo 4 (“A lacuna nas emissões em 2030 e além”, em tradução livre) e co-autora no capítulo 7, que tratou pela primeira vez das estratégias de remoção de carbono da atmosfera.
Segundo o relatório, as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla em inglês, as metas apresentadas pelos países para o Acordo de Paris), se cumpridas, reduziriam em 2030 as emissões entre 2% (considerando as NDCs “não condicionadas”, aquelas que dependem apenas dos países para serem implementadas) e 9% (considerando também as “condicionadas”, que dependem de aporte financeiro dos países ricos para serem postas em prática).
A conclusão é a mesma de outro relatório, lançado pela Convenção-Quadro das Nações Unidas para o Clima (UNFCCC) na semana passada, que mostrou que os países apenas “engatinham” nas metas climáticas e também projetou míseros 2% na redução de emissões até 2030 em caso de cumprimento das NDCs.
“O que mostramos nesta avaliação de NDCs é que não estamos fazendo o suficiente. Mesmo se considerarmos as estratégias de longo prazo para neutralidade climática [metas dos países para atingir zero emissões líquidas], ainda ficaremos próximos a 2ºC de aquecimento. E essas metas de longo prazo não são credíveis, porque não há planos setoriais para apoiá-las, não há financiamento climático necessário para implementá-las e, com raras exceções, não há evidências de que as emissões estejam estagnando ou reduzindo. Há tomadores de decisão anunciando metas de longo prazo, mas sem qualquer evidência de que isso venha a ser implementado”, critica Portugal.
O gráfico mostra a lacuna entre as políticas climáticas, as metas dos países e o necessário para cumprir o Acordo de Paris. (Fonte: Emissions Gap Report, Pnuma)
Quando calculadas as emissões de gases-estufa na atmosfera, a lacuna em 2030 chega a 22 gigatoneladas (bilhões de toneladas) de CO2 equivalente. Isso quer dizer que, mesmo que os países garantam o cumprimento integral de suas metas climáticas não-condicionadas, ainda serão emitidas 22 Gt de CO2e a mais do que o limite para estabilizar a temperatura em 1,5ºC. Quando considerado também o cumprimento das metas condicionadas, o fosso diminui: sobram “apenas” 19 Gt de CO2e emitidas em 2030 para manter a meta de Paris possível.
Em tempo: o relatório destaca que o cálculo de emissões alinhadas à meta de 1,5ºC foi feito considerando uma “redução rigorosa” de emissões a partir de 2020 – o que não aconteceu. Como, atualmente, as emissões estão mais altas do que em 2020, uma parte maior do “orçamento de carbono” disponível foi consumida. Consequência: a lacuna entre as metas climáticas e os cortes de emissões realmente necessário é ainda maior do que o calculado.
Joana Portugal comenta que os resultados do estudo não deixam dúvidas sobre a necessidade de o corte de emissões (mitigação) ser combinado às medidas de adaptação aos efeitos da crise climática, cada vez mais intensamente sentidos. “Não podemos esquecer que, quanto mais reduzirmos emissões hoje, mais reduziremos as necessidades adaptativas em um futuro próximo. Há discussões entre priorizar mitigação ou adaptação, o que, na minha opinião, faz pouco sentido. Elas andam lado a lado”, defende.
Considerando que a crise climática acentua desigualdades, com efeitos muito mais destrutivos entre as populações vulneráveis, o debate sobre adaptação leva a outro ponto de destaque do relatório lançado hoje: pela primeira vez, foram analisadas emissões de consumo per capita, o que revelou “uma imensa desigualdade regional e social nos padrões de consumo dos diferentes países e dentro de cada país”, destaca a cientista da Coppe e autora do EGR.
Os dados mostram que os Estados Unidos e a Rússia têm mais do que o dobro da média mundial em emissões per capita, que é de 6,5 toneladas de CO2e. Já na Índia, a quantidade de emissões por habitante é menos da metade da média mundial. Os países do G20, somados, têm média de emissões per capita de 7,7 tCO2. As desigualdades extremas chegam a níveis como o do Nepal, em uma ponta, com emissões por habitante de 1,3 tCO2, e o Qatar, na outra, com 73 tCO2 por pessoa. Para dimensionar: a média global compatível com 1,5ºC de aquecimento é de 1 tCO2e por habitante em 2050.
Os sete maiores emissores seguem sendo os mesmos do último relatório: China, Estados Unidos, Índia, União Europeia, Rússia, Brasil e Indonésia. Sem novidades, o Brasil é destaque nas emissões por mudanças no uso da terra (majoritariamente, desmatamento), que seguem concentradas em países tropicais. O país, a Indonésia e a República Democrática do Congo, juntos, respondem por 58% das emissões do setor em 2021.
Já os países do G20, somados, respondem por 76% do total de emissões globais, enquanto os países mais pobres somam apenas 3,8% das emissões globais. As pequenas ilhas de países em desenvolvimento – algumas das quais já em processo de submersão por conta do aumento do nível do mar – contribuem com menos de 1% do total de gases despejados na atmosfera.
Maiores emissores e emissões per capita. (Fonte: Emissions Gap Report, Pnuma)
A conclusão é óbvia: é preciso iniciar já uma “mitigação implacável” e avançar na transição para soluções de baixo carbono. “Manter a possibilidade de alcançar as metas do Acordo de Paris depende fundamentalmente do fortalecimento significativo da mitigação nesta década para reduzir a lacuna de emissões. Isso facilitará a definição de metas mais ambiciosas para 2035 na próxima rodada de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e aumentará as chances de cumprir as promessas de emissões líquidas zero”, diz o relatório.
Para Joana Portugal, o relatório ajuda a identificar avanços e endereçar responsabilidades nesse processo. “Nós mostramos que, tecnicamente, conseguimos conter e estabilizar o aquecimento global bem abaixo do 1,5ºC. A ciência climática avançou muito nos últimos 40 anos, nós sabemos e temos respostas para apoiar o processo de decisão. A maior barreira não é técnica: a atual crise se deve a incapacidades institucionais e dificuldades de financiamento”, diz.
Ela lembra ainda a importância – e o potencial – das estratégias de remoção de carbono, discutidas com ineditismo no novo relatório. “Apontamos que, atualmente, já temos ‘sumidouros’ de CO2 de base biológica – ou seja, através da manutenção das áreas florestais por restauração e reflorestamento – da ordem de 2Gt de CO2e. Mostramos, assim, que se quisermos levar a sério qualquer meta para conter o aquecimento, temos que manter a floresta de pé. No contexto do Brasil, temos que mirar nesse ponto essencial: é preciso cuidar das nossas florestas, que nos ajudam a cuidar do clima”, diz.
O Relatório de Lacunas para as Emissões 2023 pode ser lido na íntegra aqui . (LEILA SALIM)
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