A eleição do democrata Joe Biden para a presidência dos EUA pode trazer algum alívio na luta contra o negacionismo climático e as políticas antiambientais em todo o mundo, além de servir de alerta para os regimes de extrema-direita, especialmente no Brasil. Os EUA são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa (GEE) e seu maior emissor histórico. Sua saída do Acordo de Paris, oficializada na última quarta-feira (4), pode pôr em cheque os esforços mundiais para a estabilização do aquecimento global abaixo de 2°C. Biden e Harris já anunciaram que promoverão a volta dos EUA para o Acordo, e têm planos ambiciosos para combater as mudanças climáticas. Para avaliar os rumos que a futura administração poderá tomar e quais as consequências para o Brasil, conversamos com dois especialistas em política climática e ambiental, Natalie Unterstell e Bráulio Dias, que avaliaram as chances de retomada de propostas ambientais pelo recém-eleito governo Democrata.
A retomada verde
Sobre a agenda climática americana, Natalie Unterstell lembrou do contexto histórico que levou os democratas norte-americanos a postergar sua implementação. “O Obama e o Biden, como seu vice-presidente, tiveram que optar em 2008/2009 sobre onde eles gastariam seu capital político. Eles tiveram a opção de apostar na área de saúde – no Obamacare [lei federal dos EUA sancionada pelo presidente Barack Obama em 2010, comumente chamada Affordable Care Act ou Obamacare] – ou na criação de um mercado cap-and-trade [mecanismo de mercado de carbono que estabelece limites de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) às empresas e baseia-se em licenças para poluir]. Então eles acharam que seria mais fácil ir pela via da saúde e depois atacar a questão climática. Mas não foi bem assim. A gente sabe que os resultados foram bastante difíceis e continuaram rendendo polêmicas, inclusive com o Trump, e isso não se concretizou. Muito provavelmente eles devem retomar essa possibilidade de buscar, a depender da situação do Senado americano, uma possível regulação da precificação de carbono”.
Unterstell lembra ainda que Trump deu muitas ‘canetadas’ contra normas a favor do meio ambiente. “Foram quase duzentas canetadas desregulando as legislações da era Obama, dentre muitas outras. Ele acabou, por exemplo, com o plano de energia limpa, com os padrões de eficiência veicular, de controle da poluição dos veículos, com os estímulos a veículos elétricos. Então podemos vislumbrar um impulso de recuperação e de restauração das normas pró-ambiente que foram desfeitas”.
Para Bráulio Dias, a vitória dos Democratas soa positiva, pois “os EUA devem retomar seu tradicional apoio ao multilateralismo e retornar sua posição de liderança Internacional em mudanças climáticas, meio ambiente, direitos humanos, comércio, saúde, finança, etc.”. Contudo, ele lamenta o fato de os EUA nunca terem ratificado sua adesão à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). “Mas ainda assim espero que o governo Biden possa exercer liderança nas negociações da COP 26 do clima e na COP 15 da biodiversidade no final de 2021”, afirma Dias, que foi ex-secretário executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB).
Assim como Unterstell, Dias avalia que Biden deverá priorizar investimentos econômicos verdes. “Ele deverá mudar radicalmente a postura dos EUA em relação ao combate à pandemia da Covid-19 para que haja recuperação econômica, cortando os subsídios às indústrias baseadas em carvão, petróleo e gás (incluindo xisto e fracking) e ampliando os incentivos econômicos para as fontes renováveis de energia e para uma economia mais sustentável ambientalmente”.
Os ambiciosos planos para o clima
Unterstell, que já foi Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2013-2015) e trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, no Governo do Estado do Amazonas e no Instituto Socioambiental, explica que as propostas de governo de Biden e Harris, que incluem um plano de ação climático, devem alavancar uma economia mais sustentável. “Biden terá um poder discricionário no poder executivo, como presidente americano, muito amplo. E ele colocou, junto com a Kamala, um plano de ação climático bastante interessante desenhado com o partido democrata”. Sobre o programa de governo, Unterstell relacionou alguns pontos nos quais aposta que serão implementados: “Diferentemente daquilo que tivemos nos últimos quatro anos, o primeiro ponto é que, há quase dois anos o partido, via Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markley, vem trabalhando com a ideia do Green New Deal [‘Novo Acordo Verde’, um conjunto de propostas econômicas que têm o objetivo de conter a considerada ‘tripla crise’ – desigualdade, emissões de CO2 e falta de empregos], e o Biden e a Kamala de fato colocam isso em prática. Eles falam de fazer um pacote de estímulo de trilhões de dólares que deve afetar todas as áreas, desde habitação social sustentável até a transição energética. Esse é um primeiro ponto bastante importante da proposta deles porque os Estados Unidos fizeram estímulos pós-pandemia e não há absolutamente nada condicionado de forma verde ou voltado para as energias renováveis, como se esperaria”.
A especialista acredita que o que Biden e Harris colocaram para a questão internacional é bastante ambicioso. “No plano de ação climática estão tentando realmente alcançar e recuperar rapidamente o tempo perdido na administração Trump, buscando uma liderança e uma dianteira global na questão da mudança do clima. Eles falam tanto em finalmente ratificar a Emenda de Kigali, que tem a ver com os gases HFCs que ferem a camada de ozônio, quanto voltarem ao Acordo de Paris já no primeiro dia de mandato, em 20 de janeiro de 2021, além de estabelecer novas metas. Eles falam de um grande encontro, um ‘summit climático’, já no primeiro semestre do ano que vem, para trazer todas as lideranças globais dos maiores emissores para conversar”.
Os efeitos no Brasil
Para Unterstell, há dois pontos no programa de governo de Biden que são muito relevantes para o Brasil. “O primeiro é embutir nos acordos comerciais americanos, bilaterais ou de outra ordem, questões ambientais, de riscos climáticos e de riscos de desmatamento. Eles vão usar os instrumentos comerciais para alinhar essa agenda. E outra coisa é criar um framework for land use-related emissions [estrutura para emissões relacionadas ao uso da terra]. Eles não citam qual seria o instrumento legal, mas está no programa esse marco para tratamento de emissões ligadas ao uso da terra. Também falam no programa que irão atrás dos climate cheaters [trapaceiros do clima], ou seja, de quem tentar ‘burlar’, falando que está fazendo e não está. Isso, obviamente, coloca muita pressão sobre nós, já que no atual governo, Bolsonaro realmente travou a agenda de mudança do clima. Temos pouquíssima atividade acontecendo no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e nada nos outros ministérios. Na prática, esse ano não vamos cumprir a meta de 2020 que está na lei de 2009 [Lei nº 12.187/2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC]. O governo deveria mandar uma revisão mais ambiciosa sobre suas ações de combate às mudanças climáticas até março do ano que vem para apresentação na COP, mas não tem ninguém trabalhando nisso, e o governo simplesmente está fingindo que não é consigo essa história”.
Ainda sobre a interferência americana no Brasil, a especialista acredita que se dará não somente via comércio, mas também pela via do investimento. “Enquanto o Trump fazia essas ‘patetadas’ todas, os investidores e o segmento financeiro americano avançou bastante na pauta climática. Não é à toa que recebemos dúzias de caravanas de investidores no Brasil esse ano, que vieram falar com o Mourão e com o presidente do Banco Central, o Campos Neto, querendo saber qual é a do Brasil: é seguro investir quando há o desmatamento tão alto e quando o Pantanal perdeu 20% por queimadas esse ano? Acho que esses são os mecanismos que serão utilizados”.
Unterstell afirma que a grande incógnita será a reação do governo Bolsonaro: se vai se acomodar ou confrontar a nova agenda americana. “Eu acho que ainda é cedo para dizer algo, mas se o governo Bolsonaro resolver acomodar, eles o farão inicialmente pelo discurso e não pela prática, com mudanças bruscas. Mas eu acho que mudanças no comando do Ministério das Relações Exteriores e no Ministério do Meio Ambiente seriam gestos importantes para sinalizar a disposição do governo Bolsonaro em manter uma boa relação com os Estados Unidos, porque ambos os ministros têm sidos bastante opositores do Acordo de Paris e de toda a nova agenda que Biden e Harris estão colocando. Se podemos esperar uma mudança na postura brasileira, eu acho que ainda é cedo para dizer, mas é realmente muito desejável, pois a postura atual é muito ruim. Vale lembrar que o ministro chanceler fala de alarmismo e acha que a rastreabilidade das cadeias produtivas associadas ao desmatamento é uma forma de mascarar protecionismo. Já o ministro Salles não conseguiu construir nenhuma cooperação internacional, pelo contrário, nos colocou sempre em maus lençóis e fez bravatas durante as COPs. Não temos, hoje, um quadro que gera estabilidade e constrói boas relações, muito pelo contrário. Eu acho que nessa nova era, do fim da era Trump e começo desses quatro anos de Biden e Kamala Harris, que é uma senadora da Califórnia sempre bastante envolvida com temas ambientais e que condenou as queimadas da Amazônia no ano passado, vai ser muito diferente. Vai ter uma tolerância muito baixa para o tipo de discurso e de ameaçadas que esses ministros e o próprio presidente têm feito até aqui”.
Para Bráulio Dias, as mudanças nas políticas dos EUA serão benéficas para o Brasil e deverão ampliar as pressões internacionais sobre as políticas antiambientais e anticiência do atual governo. “Espero que o governo Bolsonaro tenha capacidade de mudar suas políticas, seja espontaneamente ou forçado pelas pressões externas e internas. Infelizmente o presidente Bolsonaro tem dado seguidas demonstrações de que não está comprometido com os interesses do país e da sociedade brasileira, mas apenas com seus interesses eleitorais e com o favorecimento dos interesses de grupos apoiadores, frequentemente contrários aos interesses da coletividade nacional”.
As críticas ao desmatamento da Amazônia
Durante um debate no fim de setembro, Biden criticou a política ambiental brasileira, afirmando que a Floresta Amazônica estava sendo “destruída” e que “mais gás carbônico é absorvido ali do que todo carbono emitido pelos Estados Unidos”. Disse, ainda, que tentará levantar 20 bilhões de dólares em recursos e entregar ao Brasil, para que o país “pare de devastar a floresta”, sob pena de sanções econômicas. Sobre as críticas, Unterstell acredita que o Brasil realmente está com uma reputação muito ruim por todo o esforço feito pelo atual presidente. “É muito fácil e conveniente para um candidato democrata, que teve muito eleitores jovens ligados à questão ambiental, de sustentabilidade e justiça climática, bater no Brasil. Existe essa dimensão da conveniência política de fazer isso num debate e falar nas entrevistas. Por outro lado, diferentemente do Trump e do Bolsonaro, que são muito efusivos e espontâneos e falam qualquer coisa em seus discursos, essa não foi uma fala improvisada do Biden. Tem bastante coisa por trás e acho importante pensarmos que isso está ligado realmente a uma estratégia de constranger países que estão colocando as florestas, os recursos naturais e o próprio clima a perder nesse jogo. Ele falou em convocar um esforço de 20 bilhões de dólares e, ao mesmo tempo, se o Brasil não estiver disposto a fazer o que precisa ser feito, ou seja, exercer a sua soberania sobre a proteção da floresta amazônica, que haveriam consequências. A minha interpretação é que é uma abordagem de carrot and stick, de cenoura e porrete, ou seja, que poderíamos ter recursos para sermos recompensados pela redução das emissões, num esquema de pagamento por resultados, tal qual o Fundo Amazônia e o próprio Green Climate Fund, que está financiando ‘o maior programa de serviços ambientais do mundo’, segundo o atual governo, mas se não fizermos um real controle do desmatamento, isso terá consequências. Biden e Harris não foram específicos em quais seriam essas consequências, mas não imagino que seja uma sanção comercial como fizeram com o Irã, por exemplo. Acredito que seriam outras formas de limitação do comércio e dos investimentos”.
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