Partidos de direita como Democratas (DEM), Partido Progressista (PP) e Partido Social Democrático (PSD), que sairam vitoriosos das eleições deste ano, podem se transformar no novo corpo do Bolsonarismo para a disputa de 2022, diz a cientista política da Universidade de Brasília (UNB) Flávia Biroli. Ela observa que, se por um lado o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi derrotado pelo fracasso de vários dos seus candidatos, o presidente pode garantir a capilaridade que precisa nas próximas eleições através dos partidos com melhores desempenho nas urnas, que são da base do governo.
Em conversa com a Agência Pública, a autora do livro “Gênero e Desigualdades — limites da democracia no Brasil” diz que “a desinformação e a violência política foram centrais nessas eleições”. Na análise dela, estratégias de desconstrução do oponente político com ataques violentos — no modelo usado por Bolsonaro contra o PT, durante as eleições presidenciais — foram incorporadas por candidatos de vários partidos: “Bolsonaro naturalizou a violência política”.
Algumas análises dos resultados eleitorais falam de despolarização e de uma vitória do que se chamaria de “centro ampliado”. Você concorda com essas avaliações?
Existe uma construção de uma narrativa de que nessa eleição houve uma vitória do centro. Isso não condiz com o que de fato ocorreu. Os partidos que tiveram melhor desempenho são partidos de direita e centro-direita. Quais são os partidos que estou considerando como centro? O MDB e o PSDB, por exemplo. Quando falo de centro-direita, me refiro ao PSD.
No quadro geral, DEM, PP e PSD foram os partidos com melhor desempenho, não tem como chamar eles de centro. São partidos de direita. O PSDB tem o maior número de governados, mas é por causa do número de habitantes de São Paulo. O PSDB e o MDB perderam prefeituras em relação a 2016, então, como a gente pode falar que o centro ganhou as eleições se os partidos de centro perderam prefeituras? PSDB e o MDB foram os dois partidos que mais perderam em número de prefeituras.
De que forma essa direita que saiu vitoriosa das urnas se relaciona com o governo Bolsonaro?
Bolsonaro fracassou nessas eleições, não se afirmou como líder político. O fato dele não ter um partido não permitiu que ele operasse de maneira a capilarizar sua presença política pelo país. O PSL, o partido que o elegeu em 2018, mas agora não tem Bolsonaro, fracassou também. Ele aumentou em relação a 2016 (200%, segundo levantamento do G1 ) porque mal existia nessa época, mas se mostrou um partido sem muita expressão.
O processo político recente — com Lava Jato, impeachment de Dilma, eleição de Bolsonaro — enfraqueceu o principal partido de esquerda do país, que é ainda o PT. Esse mesmo processo também criou um desafio para os partidos de centro, e abriu oportunidades de fortalecimento para a direita.
Mas é preciso dizer que os partidos que saem ganhando nessas eleições são os partidos da base governista. Tudo bem que a base é uma coisa meio estranha no governo Bolsonaro, e a relação do DEM com Bolsonaro é tensa, mas são esses partidos que ganharam espaço.
Quem ganha fôlego é essa direita tradicional. É uma direita que sempre esteve aí colocada, mas vinha perdendo espaço. O DEM se reinventou nessa abertura de oportunidade. Não foi a extrema direita, nem Bolsonaro que saíram vitoriosos. Foram partidos como o PP, que teve um crescimento impressionante. O mesmo processo político que gerou o Bolsonaro e colocou a extrema-direita no poder, abriu oportunidades para a direita política ganhar um novo espaço, se colocando de maneira muito capilarizada no país.
A pandemia pareceu ser um tema secundário em muitas campanhas, apesar da crise de saúde sem precedentes. Qual foi a importância da questão sanitária nos resultados eleitorais?
Essa é uma eleição em que houve uma alta taxa de reeleição de prefeitos — o eleitor que se sentiu seguro com a abordagem que os prefeitos tiveram na pandemia ou parece ter preferido manter esses mandatários em vez de se arriscar com uma novidade.
No primeiro turno, muitos candidatos preferiram se afastar de Bolsonaro, já que havia indicações de que ele não era um bom cabo eleitoral. Bolsonaro também não era alguém que pudesse falar sobre ações efetivas no combate à pandemia com credibilidade. Já no segundo turno, como você tem apenas dois candidatos, o que se viu foi uma polarização maior e também mais espaço para questões nacionais, como a pandemia.
O antipetismo ainda mobiliza o eleitorado?
O segundo turno mostrou que o antipetismo continua vivo e sendo usado como estratégia política contra os adversários. Foi interessante notar que não apenas candidatos de direita recorreram ao antipetismo — Bruno Covas (PSDB), por exemplo, procurou colar no Guilherme Boulos (PSOL) uma relação com Cuba e com a Venezuela, reacendeu uma caricatura do anti-esquerda de 2018.
Mas não foi só isso. João Campos (PSB), no Recife, fez ataques a Marília Arraes (PT) baseados no antipetismo, inclusive reavivando mensalão e uma visão lavajatista do PT, sendo que o PSB no Recife esteve aliado ao PT nas últimas eleições. Quer dizer, não era nem uma realidade política, foi uma estratégia de se reavivar uma visão caricata do PT. Isso mostrou que esse discurso ainda encontra ressonância no eleitorado.
Nessas eleições vimos muitos ataques de candidatos com campanhas de difamação contra seus oponentes. Podemos dizer que a política brasileira está ficando cada vez mais violenta?
Alguns aspectos das estratégias de desinformação utilizadas na campanha de 2018 vieram fortes no segundo turno. No Rio de Janeiro, no Recife, em Belém, em Porto Alegre, se viu a utilização dessas ferramentas por candidatos diferentes. Foi o uso de uma agenda moral, de maneira ultraconservadora, e baseada na desinformação.
No primeiro turno, a desinformação não era um elemento central da disputa. Houve, sim, muitas denúncias de violência, inclusive física, contra os candidatos. Mas, no segundo turno, a desinformação se tornou o aspecto principal, bem como a violência política, sobretudo contra as mulheres. Candidatas como Marília Arraes e Manuela D’ávila (PCdoB-RS) sofreram ataques violentos.
A desinformação foi massivamente utilizada por Bolsonaro na campanha de 2018. Este ano, virou estratégia até de algumas candidaturas do campo progressista…
Desde as eleições de 2014, se abriu no Brasil um processo de acirramento de ataques não democráticos contra adversários políticos. A Lava Jato foi muito importante na construção de um ambiente de rejeição à política, de criminalização da política e dos partidos. Não estou dizendo que a corrupção não seja relevante, e não deve ser combatida, mas o modo como isso foi construído fez com que se ativasse no eleitorado uma rejeição à política e uma forma de compreender a disputa política extremamente violenta — e o Bolsonarismo se aproveitou disso.
A gente não pode esquecer de todas as vezes que em 2018 Bolsonaro, com um símbolo da arma, falou do PT como um inimigo a ser expulso do país e eliminado. Então, existe um ambiente político que não acabou. Embora a gente não tenha visto a antipolítica como se viu em anos anteriores, o que existe é uma linguagem política de violência, baseada na desconstrução do adversário por meio de desinformação.
O Bolsonarismo não criou isso, ele normalizou a violência política e se inflou nisso. As origens estão no processo eleitoral de 2014 e no impeachment de Dilma Rousseff (PT). Agora, é claro, não haveria Bolsonarismo sem esse quadro. É algo que não emergiu apenas de um conservadorismo social, mas de todo esse cenário.
As estratégias que deram certo para Bolsonaro em 2018 foram agora adotadas por partidos não alinhados ao presidente, como o PSB, que é de esquerda. No Recife, o que João Campos (PSB) fez contra Marília Arraes (PT), atacando diretamente a candidata com uso de mentiras e desinformação, foi o pior da política.
Dizer que é cristão, conquistar o apoio de pastores e de lideranças evangélicas parece ter se tornado um grande trunfo de campanha. Qual o peso que alianças entre candidaturas progressistas e lideranças religiosas conservadoras podem ter nos mandatos?
Vimos com clareza o aceno de candidatos ao eleitorado conservador evangélico. Houve um movimento forte de vários candidatos para atrair esse eleitorado, usando um discurso pró-família, cristão e deslocando a agenda da campanha para uma agenda ultraconservadora, de recusa aos direitos das mulheres, da diversidade sexual. Isso aconteceu da mesma maneira que ocorreu em 2018, com base em caricaturas, falando na noção de ideologia de gênero — que é uma invenção dos conservadores —, em pedofilia, para caracterizar politicas de educação sexual nas escolas, que são fundamentais.
A gente está vivendo um momento de desmonte de políticas públicas de combate ao HIV no Brasil. A gente vai ter uma geração de adolescentes crescendo num caldo de conservadorismo e desinformação, que não vão saber se prevenir de doenças sexualmente transmissíveis ou evitar a gravidez precoce. São problemas reais que estão sendo transformados em caricaturas.
Partidos do campo progressista recuaram em muitos desses pontos. O crescimento do eleitorado evangélico é importante nisso. Mas não é simplesmente o eleitorado, são os pastores conservadores ativando essa conversa dentro das igrejas — de que há um risco para as crianças, um perigo de desordem moral. Há também alianças muito fortes com conservadores católicos, que utilizam as mesmas noções de antifeminismo, antipluralismo para falar de questões sociais.
Pela primeira vez desde a redemocratização o PT não elegeu sequer um prefeito ou prefeita nas capitais. É uma derrota muito grande da esquerda?
Houve, nessa eleição, uma importante renovação das esquerdas nas câmaras de vereadores das capitais. Não é algo banal. Tivemos um número maior de candidatas mulheres, negros, jovens, LGBTIs eleitos com campanhas marcadas por pautas progressistas. Porto Alegre, por exemplo, tem 30% de mulheres na Câmara de Vereadores agora, e o maior número de vereadoras e vereadores negros de toda sua história. Em São Paulo, o PT tem a maior bancada junto com o PSDB e o PSOL fez uma bancada muito significativa, jovem, marcada por uma agenda renovada de partido social.
Existe uma renovação de agenda de justiça social. Em Curitiba, a primeira mulher negra a ser eleita para a Câmara de Vereadores, Carol Dartora (PT), fala de educação. É uma agenda que se compõe de uma perspectiva distributiva e uma perspectiva distributiva fortemente marcada por uma noção de justiça social que coloca as mulheres e a população negra no centro das discussões. Não é agenda apenas identitária, reconhecer os negros, as mulheres, os LGBTIs, é mais do que isso.
Até a Duda Salabert (PDT), mulher trans eleita em Minas Gerais, a agenda dela é educação. A gente tem algumas candidaturas que podem ter uma agenda mais próxima do que se reconheceu ao longo do tempo como identitária. Mas grande parte são mulheres negras, da periferia. O que elas querem não é apenas reconhecimento das identidades da periferia. Elas querem políticas distributivas, de justiça social, querem reduzir a violência policial contra a população negra nas periferias, são agendas fundamentais.
Passou da hora do PT olhar para isso melhor, de entender que existe no mundo uma renovação da agenda de justiça social. Parar de olhar com essa polaridade entre a pauta distributiva e identitária porque não é isso que está nessas candidaturas jovens que venceram. Essa é força do PSOL, ele não é um partido identitário — ele abrigou essas agendas feministas, antirracistas — mas elas vêm junto com agendas de justiça, democráticas.
O PT tem que lidar com uma desconstrução que vem do lavajatismo, com toda essa história que atingiu o partido muito fortemente e enfraqueceu a esquerda brasileira, mas também precisa se renovar em termos de quadro e de linguagem. Se você olha para uma candidatura como a de Guilherme Boulos (PSOL), em São Paulo, a intenção de votos da juventude era majoritariamente de Boulos. Existe todo um eleitorado que vê a questão racial de gênero como uma questão central da agenda progressista.
O que podemos esperar da atuação de vereadoras, vereadores e prefeitos e prefeitas dos partidos de direita que tiveram os melhores resultados nas urnas? De que modo a atuação deles deve influenciar o cenário para as eleições presidenciais em 2022?
O percentual de candidaturas que usavam nomes militares, policiais e evangélicos aumentou este ano. Essas candidaturas que já se construíram baseadas nessa agenda conservadora e vão atuar nesse sentido. O risco é a gente ir ativando nas cidades, de maneira capilar, uma opinião pública conservadora. Não é só que podem tramitar projetos conservadores e que os prefeitos vão assumir posturas conservadoras, mas você vai ativando um eleitorado por uma postura conservadora.
Bolsonaro perdeu essa eleição, foi um fracasso, mostrou uma incapacidade de se colocar como líder político. Agora, o PP ganhou essa eleição. Ele é agora o partido mais próximo de Bolsonaro no Congresso. Já andaram oferecendo a ele a possibilidade de se filiar. Para 2022, uma questão principal é saber se esses partidos de direita que tiveram bom desempenho eleitoral vão se transformar no corpo do Bolsonarismo para as eleições de 2022. Então, Bolsonaro pode ter capilaridade no país, mesmo tendo sofrido derrotas este ano.
Isso vai depender do interesse dos partidos e do que será esse próximo ano. Se continuar sendo um desastre — economicamente, no trato da pandemia, com incapacidade de ter agendas positivas — pode ser que esses partidos não vejam vantagem em ter Bolsonaro como aliado e que se forme um outro bloco de direita ou de centro-direita. Com o fim do auxílio emergencial em dezembro pode ser que a popularidade de Bolsonaro caia mais. A gente ainda tem um cenário ainda muito difícil para o próximo ano, mas ele continua tendo apoio do empresariado. Então, essas alianças vão depender da relação dos partidos com a popularidade de Bolsonaro no próximo ano.
Fonte
O post “Vitória da direita tradicional pode dar novo corpo ao Bolsonarismo, avalia cientista política” foi publicado em 1st December 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública