No último sábado, dia 18 de julho, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC, completou 20 anos de existência. A Lei 9985/2000, que desde seu anteprojeto – desenhado na FUNATURA, que à época tinha Maria Tereza Jorge Pádua, a grande dama das UCs brasileira, a frente da instituição – até sua aprovação final levou cerca de uma década, foi em si uma vitória e que sempre merece ser celebrada.
O Brasil, que teve sua primeira unidade de conservação decretada – o Parque Nacional do Itatiaia – em 1937, vinha desde aquela época criando unidades de conservação conforme se apresentava a oportunidade. Vale lembrar que a própria Maria Tereza havia, a frente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) – que mais tarde originaria o IBAMA –, ajudado a criar mais de 8 milhões de hectares em unidades de conservação (UCs), algumas com a excepcional colaboração de Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, que em 1979 participou ativamente da criação da Reserva Biológica de Atol das Rocas, a primeira UC Marinha. Juntos, Almirante Ibsen e Maria Tereza foram responsáveis por grande parte das UCs criadas entre as décadas de 1970 e 1980. Somados a eles, nomes como Paulo Nogueira-Neto, Alceo Magnanini e outros ajudaram a escrever a história da conservação das áreas naturais brasileiras. Uma segunda geração, composta por nomes como Miguel Milano, Fabio Feldmann e tantos outros, deram sequência a essa história tão fundamental e tão pobremente contada em nosso país.
No rescaldo da elaboração da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 225, trazia o princípio do dever do Estado como o ente à garantir para a sociedade brasileira “dessa e das futuras gerações o direito ao meio ambiente equilibrado”, abriu-se espaço para uma discussão mais aprofundada sobre a necessidade de organizar, sob a égide de uma lei específica, a proteção da natureza no território nacional. Quatro anos depois, com a Eco-92, o cenário tornou-se ainda mais favorável, quando o Brasil passou a ser signatário da Convenção da Diversidade Biológica (a CDB), comprometendo-se, à época, a proteger pelo menos 10% de seu território. A lei, no entanto, se concretizou apenas oito anos depois, sob muita construção, articulação e pressão no Congresso Nacional. Com a promulgação da Lei 9985, em 18 de julho de 2000, se configurava ali o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, um grande guarda-chuva que serviria de arcabouço legal para garantir o cumprimento da Constituição Federal e dar aos brasileiros dessa e das futuras gerações a chance de viverem em um país que proteja minimamente sua megabiodiversidade.
Entre 1937, ano de criação do Parque Nacional do Itatiaia, até a aprovação do SNUC, pouco mais de 20 milhões de hectares estavam protegidos no Brasil. Vinte anos após a promulgação do SNUC, a quantidade de áreas foi mais que triplicada, totalizando hoje 17% do território enquadrado em uma das 12 categorias de UCs, somando apenas na esfera federal cerca de 76 milhões de hectares entre os biomas terrestres, além de mais de 90 milhões de hectares em áreas marinhas. A maior parte das áreas terrestres, vale ressaltar, foi criada durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, com aproximadamente 21 e 24 milhões de hectares protegidos, respectivamente.
O governo Dilma destacou-se pela estagnação do processo de criação que, surpreendentemente, voltou a ganhar destaque no governo Temer, que ampliou a proteção do mar de 1,5% para cerca de 25%, além de ampliar o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no Cerrado, criar o conjunto de UCs do Boqueirão da Onça, na Caatinga, ambas lutas antigas dos ambientalistas, além de criar UCs na Amazônia e colocar no radar a criação de áreas em outros biomas. Impossível falar desse resultado sem destacar o trabalho do então ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, seu secretário de Biodiversidade, José Pedro Oliveira da Costa, as equipes técnicas, tanto no MMA quanto do ICMBio, e a ativa participação da sociedade civil organizada, que fizeram essa janela de oportunidade ser devidamente aproveitada. O SNUC hoje é um dos maiores sistemas de proteção de biodiversidade e sem dúvida uma das leis de vanguarda em nível mundial.
E aí chegamos aos dias atuais…
Inúmeras são as notícias diárias em jornais, como aqui mesmo em O Eco, mídias digitais, televisão e impressos, que deixam claro a porta de entrada da máquina do tempo em que estamos parados. Um passo em falso e voltaremos pelo menos cinco décadas. Com o agravo de que naquela época os donos do poder pouca atenção davam a causa ambiental e, talvez, por pura distração, deram aos visionários ambientalistas aqui citados a oportunidade de proteger muito do que hoje temos de “amostras da natureza”. Com o avanço da fronteira agrícola sobre o Cerrado e a avidez de repetir na Amazônia o que Warren Dean descreveu como fato ocorrido na Mata Atlântica em 1500 – a destruição pura da rica biodiversidade para dar espaço aos ciclos que então moviam a economia, destruindo tudo a ferro e fogo – certamente hoje não teríamos a mesma “sorte” que tivemos há cinco décadas.
Desnecessário falar que em dias atuais criar UCs em âmbito federal é missão impossível e a celebração dos 20 anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, nesse momento, é muito mais a comemoração do que não perdemos, do que sobre aquilo que avançamos, pelo menos desde o início de 2019.
Eu poderia me estender sobre os inúmeros retrocessos, falar sobre o esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente e do ICMBio, sobre o corte de orçamento (que já era pífio) levando a um cenário próximo a miséria. Da falta de equipe nas UCs, da implosão da fiscalização, da desvalorização dos servidores, da ausência de planos de carreira, da inexistência da necessária carreira de guarda-parque ou mesmo de guarda costeira. Do quanto é surreal imaginar que áreas de centenas de milhares de hectares contam com apenas um analista ambiental e, pior, da recente criação “de baciada” de Núcleos de Gestão Integrada, que tornam ainda mais reduzidas as equipes de analistas ambientais, deixando a esmo o patrimônio natural brasileiro. Também poderia destacar que, embora tudo isso aconteça no âmbito federal, é clara e límpida a influência desse direcionamento para Estados e Municípios, que não vendo compromisso por parte do Poder Executivo Federal, não irão (em sua maioria) se esforçar para ir em uma direção diferente. Especialmente quando o mandatário da nação, não apenas não aprova ações de proteção a biodiversidade, como faz questão de atacar aqueles que pensam diferente dele, seja lá quem for.
Isto posto… o que podemos esperar para o futuro das Unidades de Conservação brasileiras?
Não é novidade que estamos no limiar da nossa sociedade como a conhecemos. A emergência climática e a sexta extinção em massa estão batendo à nossa porta. Nosso modo de vida já não se sustenta e se quisermos continuar vivendo nesse planetinha azul, mudanças precisam ser feitas, quer as desejemos ou não.
A despeito do revival medieval que o Brasil atravessa, muitos países do mundo já acordaram para isso. Não é por acaso que nos últimos meses vem crescendo a voz de países da União Europeia que se recusam a assinar o acordo com o Mercosul graças à postura do Brasil. Também não é por acaso que essa mesma voz tem ecoado cada vez mais alto dentro do nosso país, com empresários e representantes do mercado financeiro bradando que não aceitam tal postura do governo atual, cuja consequência – qualquer um com dois neurônios já percebeu – é a nossa ruína econômica. Cenário perfeito para enfrentar durante uma pandemia global que por si só irá desacelerar a economia, não?
Na prática, significa que por mais que o governo esperneie, o retrocesso não poderá acontecer como mitologicamente se sonhava, a voracidade de destruição terá que ser reduzida e a boiada não vai poder passar lépida e faceira, tal qual se pensava fazer. Verdade seja dita, ainda será necessária muita gritaria, denúncias e ações judiciais por parte do movimento ambientalista, mas se olharmos para o futuro, não há outra opção que não recuar na intenção de destruição, ao menos um pouco. Eu sei disso, você sabe disso, o Mourão sabe disso. Muita gente sabe disso.
Cachorro late a caravana passa. Então, sejamos a caravana e viajemos um pouco no tempo: Há 20 anos, num distante 21 de julho de 2000, três dias, portanto, após a aprovação do SNUC, eu iniciava minha graduação em biologia e naquela época entre aulas de ecologia e estágios de campo, eu ouvia muito duas coisas: 1. Leis nem sempre servem pra nada; e 2. temos que aproximar as pessoas da natureza.
Voltando para 2020 eu sei de duas coisas:
A primeira: O SNUC não é perfeito, mas se não fosse ele, graças a avidez do Legislativo (não esqueçamos das bancadas BBB, boi, bala e bíblia) e nesse momento a truculência do Executivo, já teríamos perdido a maior parte das áreas protegidas “por um decreto assinado por uma caneta bic”. Por mais imperfeita que seja e por mais que ainda tenhamos muito o que caminhar, é essa Lei que garante hoje que boa parte do nosso território continue mantendo o status de proteção (“ain… mas falta isso, e tem aquilo.” Please… tenha pensamento estratégico e entenda que esse não é o momento e que poderemos voltar a esses detalhes mais tarde). Vale lembrar que o próprio STF determinou, ainda em 2018, que UCs não podem ser reduzidas de outra forma, senão por lei específica, gerando jurisprudência e impedindo tentativas bizarras de retrocesso, como transformar a Estação Ecológica de Tamoios em uma Cancun.
A segunda, é que, bem… precisamos aproximar as pessoas da natureza.
O livro “quanto vale o verde” de Carlos Eduardo Young e Rodrigo Medeiros, traz um volume gigantesco sobre a importância econômica das unidades de conservação para nossa sociedade, seja pelo turismo, extração de recursos, nas áreas em que tais usos são permitidos, geração de empregos e renda, entre outros. A publicação também demonstra que os valores gerados são crescentes, a despeito da contínua e frequente diminuição dos investimentos (lembremos que ano após ano, desde o início do governo Dilma, o orçamento do ICMBio só vem diminuindo).
Somente o serviço prestado por uma das concessionárias que operam no Parque Nacional do Iguaçu (conforme exposto por outro estudo de Young), gera cerca de 1 bilhão de reais direta e indiretamente para os municípios de entorno. Dados recentes do próprio ICMBio mostram que em 2019, 17 milhões de pessoas visitaram as unidades de conservação federais. O analista ambiental Thiago Beraldo, em sua dissertação de mestrado, demonstrou que para cada R$1,00 (um real) investido nas UCs, pelo menos R$7,00 (sete reais) são devolvidos para a sociedade.
Some-se a isso o cenário pós pandemia, em que a busca por espaços naturais como forma de garantir qualidade de vida e saúde será cada vez mais frequente, não há dúvidas que investir na conservação da natureza é um grande negócio.
O que é preciso fazer, então para um futuro mais promissor?
Bem, em primeiro lugar, nesse momento, por meio de muita gritaria, denúncias e ações judiciais, precisamos garantir que as áreas continuem existindo e que a Lei do SNUC não sofra nenhum retrocesso dentro do Congresso Nacional.
Em segundo lugar: aproximar as pessoas da natureza.
Se avançarmos, digamos, cinco anos no tempo e quisermos, em 2025, de fato celebrar o SNUC e termos um artigo que não seja um Control C, Control V de 2010, 2015 ou 2020, os brasileiros precisam saber o que significa o SNUC. Essa sigla tem que ser traduzida, em todos os idiomas que nossa sociedade dividida consiga entender, seja econômico, urbano, na área de bem estar e saúde ou do agronegócio. O termo SNUC precisa circular em cada canto desse país como sinônimo de garantia de chuva, energia elétrica, água potável, solo fértil, polinização, visibilidade e respeito internacional, qualidade de vida, emprego, renda, benefícios e garantia de sobrevivência dos filhos dos nossos filhos.
SNUC também tem que, imperiosamente, significar orgulho, respeito, pertencimento, reconhecimento como sociedade.
SNUC tem que ser simples, acessível, viável. Tem que deixar de ser um termo desconhecido, para significar aquilo que é de todos e do qual todos dependemos.
É um desafio imenso, sem dúvida, mas é o único caminho possível. É o reconhecimento da sociedade brasileira sobre a importância das áreas protegidas que as tornarão respeitadas e, portanto, mais difíceis de serem destruídas. Para isso nós também teremos que nos reinventar. Melhorar nossa comunicação, promover ações que transformem o SNUC em algo palpável, concreto, real e desejável para a maioria das pessoas (Um Dia No Parque 2020 vem aí, aguardem!) e fazer acontecer o segundo passo da consolidação do Sistema Nacional das Unidades de Conservação: a estruturação das áreas.
É… eu sei, eu sei que tem um monte de coisas pra fazer, e que o copo está mais vazio do que cheio, mas sejamos realistas, peçamos o impossível.
Deste modo, proponho aqui um pacto: de que nos próximos cinco anos, aqueles que, assim como eu, atuam na linha de frente da defesa e do fortalecimento das UCs, busquem um caminho diferente e que, a despeito de todas as dificuldades, tenhamos a cara de pau de olhar para o futuro com esperança. Que ousemos sonhar e correr atrás do sonho, do ideal. Que a gente ignore esse cenário atual (ele vai passar, lembremos sempre) e comecemos hoje a construir o cenário que queremos, com o devido respeito que nossas UCs merecem e das quais nós dependemos.
Temos cinco anos para criar uma nova realidade com motivos inquestionáveis para serem celebrados. Quem vem comigo?
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O post “Vinte e cinco anos de SNUC: o mundo que queremos” foi publicado em 20th July 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco