A esta altura todo mundo já sabe do
caso de estupro envolvendo o jogador da seleção brasileira Daniel Alves. E sim, como várias pessoas apontaram, a gente ouviu de muitos homens mais reclamações sobre a convocação do Daniel pra seleção do que sobre o estupro. E causa indignação como a maioria dos jogadores não tem nada a dizer sobre isso.
E, claro, é incrível que ainda exista quem defenda Daniel e culpe a vítima! No dia 30 de dezembro, Daniel esteve no camarote vip da boate Sutton, em Barcelona. Seguiu uma moça de 23 anos ao banheiro e lá a estuprou. Ele já mudou de versão três vezes: primeiro disse que não a conhecia e que nunca a tinha visto, depois (principalmente ao saber que a vítima descreveu à polícia uma tatuagem que Daniel tem na virilha) disse que ela o seguiu e o atacou no banheiro, e depois disse que houve sexo, mas que foi consensual.
Já a vítima manteve a mesma versão desde que conseguiu sair do banheiro (as câmeras de segurança da boate mostram que eles ficaram 15 minutos dentro do banheiro — obviamente, não há câmeras dentro do banheiro). Desesperada, ela contou a suas amigas que havia sido agredida e estuprada. Minutos depois, a polícia já estava no local (Daniel havia saído, ou teria sido preso em flagrante), e uma câmera no uniforme de um policial registrou o nervosismo da moça. Ela foi levada a um hospital para exames médicos que constataram
lesões condizentes com luta corporal e com um estupro. Além disso, ela tinha
sêmen no vestido .
A
polícia catalã inicialmente divulgou informações falsas, como que Daniel esteve no banheiro por apenas 47 segundos. O jogador já estava no México, pois era contratado pelo Pumas (que já o dispensou). Se voltasse para o Brasil, seria um outro Robinho da vida (que
foi condenado em última instância na Itália mas segue livre por aqui). A polícia sabia que a sogra de Daniel havia morrido (ele é casado com uma
modelo espanhola ) e propôs à defesa dele uma reunião informal. Ele compareceu à delegacia seguro de si, sem advogado. E foi preso sem direito à fiança. Pode pegar 15 anos de prisão.
A postura da vítima por si só já deveria ser suficiente para que as pessoas que não acreditam que estupro existe mudassem de opinião: ela não quer fama (não aceita ser identificada, o que é seu direito) nem dinheiro (falou perante a juíza que não quer compensação financeira). Além disso, ela não foi a única vítima: uma amiga declarou que Daniel
também a apalpou na boate. O irmão de Daniel, em vez de culpar a masculinidade tóxica ou o irmão por arruinar sua carreira, acusou um “esquema demoníaco-diabólico”.
Ao ser entrevistada, a
advogada da vítima concordou que esse é um caso com mais indícios que o comum, porque o atendimento foi na hora: “Minha cliente saiu da discoteca em uma ambulância e isso já mostra como a atuação foi imediata. Há muitas vezes que as mulheres demoram 15 dias, um, dois meses para denunciar. Com isso, muitas provas desaparecem”.
No início da semana surgiu nas redes sociais a
pertinente pergunta “E se o caso Mariana Ferrer tivesse ocorrido na Espanha?” Provavelmente o estuprador de Mari estaria preso. E é sobre isso que eu gostaria de falar: desse protocolo que é adotado nas casas noturnas de várias cidades na Espanha.
Antes, para explicar o que é esse documento, reproduzo aqui os cinco princípios que guiam o protocolo, segundo matéria do G1 publicada ontem:
O primeiro [princípio] é que a atenção prioritária deve ser dada à pessoa atacada. Em caso de agressão, ela deve receber a devida atenção. Em casos graves, ela não pode ser deixada sozinha, a não ser que queira.
O segundo princípio orientador é o respeito às decisões da pessoa agredida. Ela deve receber as informações e conselhos corretos, e ela deve tomar a decisão final, mesmo que esta pareça incompreensível para os demais.
Terceiro princípio: o foco não deve estar num processo criminal. Estes são complexos, difíceis também para quem foi agredido e muitas vezes terminam de uma forma não satisfatória para quem sofreu uma agressão. Isso pode gerar frustração, e por isso é importante informar e levar em conta que existem outras formas de tratar a situação e dar importância ao processo de recuperação da pessoa agredida.
O quarto princípio é a atitude de rejeição ao agressor. Deve-se evitar sinais de cumplicidade com ele, mesmo que seja apenas para reduzir o clima de tensão. É importante mostrar que há uma clara rejeição à agressão e envolver o entorno do agressor nessa rejeição.
O quinto e último princípio é o da informação rigorosa. Tanto a privacidade da pessoa agredida como a presunção de inocência da pessoa acusada devem ser respeitadas. Por isso, é aconselhável não repassar informações oriundas de fontes não confiáveis ou espalhar boatos.
A partir desses cinco princípios, o protocolo é estruturado em três eixos: as ações de prevenção, as instruções para identificar um caso, e as instruções sobre como lidar com um caso de agressão ou abuso sexual.
Como prevenção, o protocolo prevê que não sejam usados critérios sexistas ou discriminatórios para ingresso num espaço de lazer, por exemplo cobrar valores de ingressos diferentes para homens e mulheres ou dar entrada gratuita ou vale-bebida para mulheres.
Os proprietários também não devem atentar para a aparência das mulheres na hora de decidir quem pode ou não entrar, nem aplicar códigos diferenciados de vestimentas para homens e mulheres.
O estabelecimento deve comunicar aos frequentadores que aplica o protocolo, e uma atenção especial deve ser dada às áreas escuras – em discotecas, por exemplo.
Ações promocionais não devem fomentar a desigualdade de gênero ou mostrar desrespeito por pessoas em razão de gênero ou diversidade sexual, por exemplo na forma de cartazes que promovam códigos de vestimenta distintos ou que apresentem mulheres como objetos sexuais.
O protocolo ainda destaca, entre as ações de identificação, a importância de o local ter uma pessoa com formação mínima para identificar as diferentes formas de agressão e assédio sexual.
Da mesma forma, o local deve dispor de pessoal capacitado para dar atenção às vítimas e para coordenar a ação envolvendo o caso.
O protocolo ainda lembra que, em caso de flagrante, o agressor, segundo a lei local, pode ser detido por qualquer pessoa, e que o responsável pela segurança do local tem a obrigação de detê-lo.
Já a pessoa agredida deve ser levada a uma sala onde possa ser atendida, nos casos de agressão sexual, estupro ou abuso sexual grave. Nos demais casos não há necessidade de um espaço específico, mas este deve ser reservado e garantir tranquilidade e isolamento.
Voltando aqui, podemos ver pelo protocolo que o foco deve ser na vítima, não no agressor. Os funcionários das casas noturnas e bares são treinados para aprender a identificar e prevenir a violência contra mulheres e saber como agir. A prefeita de Barcelona, Ada Colau, deu o tom ao declarar: “Quando sofremos uma agressão, nossa cidade não deve nos julgar, mas nos acompanhar e defender”.
O protocolo surgiu a partir da revolta de boa parte da população espanhola com o
caso “La Manada” (“o bando”), ocorrido em 2016, em que cinco homens (um deles membro da Guarda Civil; outro, do exército) estupraram uma jovem, filmaram o crime e o divulgaram nas suas redes sociais, mas a Justiça decidiu que o crime não era agressão sexual (estupro), e sim abuso sexual. Isso gerou uma
intensa discussão sobre definições de estupro.
A justificativa para um protocolo não foi a única mudança. Em agosto do ano passado, o país aprovou a Lei da Liberdade Sexual, também conhecida como a
lei “solo sí es sí” (“só sim é sim”), que trata de eliminar distinções entre abuso e agressão sexual. Com essa mudança, toda intenção sexual sem consentimento passou a ser vista como agressão sexual. E agora Daniel Alves pode ser a primeira celebridade condenada por essa nova lei.
A feminista espanhola Julia Salander gravou um
vídeo muito bom explicando tudo que aconteceu, e como o segurança da boate não teve dúvidas em acionar o protocolo. No vídeo curtinho ela faz excelentes perguntas: “O que mais precisamos para acreditar na versão desta garota?”, “O quão impune tem que se sentir esse senhor para fazer isso numa discoteca, na frente de todo mundo?” e, principalmente, “O que aconteceria se isso ocorresse num país sem protocolos?”
Pois é, sabemos pelo caso Mari Ferrer o que ocorre num país sem protocolos: o estuprador rico é absolvido, apesar de uma montanha de evidências; a casa noturna apaga provas em câmeras de segurança; a vítima é humilhada e ofendida na audiência pelo advogado de defesa sem que o juiz ou o promotor se pronunciem (pelo menos isso tem sido impedido
pela lei Mari Ferrer ), e há sempre um batalhão de robôs de prontidão para atacar a vítima sempre que o caso é mencionado nas redes sociais. Tudo isso faz com que inúmeras vítimas de estupro decidam não denunciar. Afinal, serão elas a ser julgadas e condenadas, não o estuprador.
Minha sugestão é aproveitar a repercussão do caso Daniel Alves (e do protocolo espanhol), e aproveitar também que agora não temos mais um governo declaradamente misógino, e sim preocupado com os direitos das mulheres, e bolar um protocolo de segurança para ser adotado nas casas noturnas e bares do Brasil. Não sei como funciona isso, se tem que ser uma iniciativa de alguma deputada federal para fazer e aprovar um projeto de lei (o que leva tempo), ou se pode vir do diálogo entre dois ministérios, o do Ministério das Mulheres, comandado por Cida Gonçalves, e o dos Direitos Humanos, comandado por Silvio Almeida. Mas vamos fazer acontecer?