Tudo em torno da Vale é gigante. Maior mineradora do Brasil e a segunda maior do mundo, a Vale já explora também a maior mina de minério de ferro do planeta, em Carajás, no Pará . Mas os planos da empresa incluem a exploração mineral em diversas terras indígenas na Amazônia.
Dados
obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que a Vale tem 236 pedidos
registrados na Agência Nacional de Mineração para explorar sobretudo ouro na
Amazônia Legal. Mais de 90% são requerimentos de pesquisa, o primeiro passo
para a autorização da exploração.
São
13 terras indígenas diferentes nos planos da mineradora. Prevista pelo artigo
231 da Constituição, a exploração só pode ocorrer se regulamentada pelo
Congresso e após ouvir as comunidades afetadas.
O governo Bolsonaro, no entanto, tem uma proposta pronta para autorizar a exploração em terras indígenas e deve enviar ao Congresso a qualquer momento, confirmou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque .
Em que pese que Rodrigo Maia, presidente do Congresso, ter afirmado que arquivará o projeto do governo , a pressão é forte, antiga e ganha corpo com um governo abertamente anti-indígena, que tem “o garimpo no sangue” e que é lobista dos interesses minerários de grandes corporações. Procurado para comentar a questão, o Ministério de Minas e Energia se recusou a atender a reportagem.
Trombetas/Mapuera,
Munduruku e Xikrin são as principais TI’s visadas pela Vale
Entre
os 236 pedidos, destacam-se a terra indígena Trombetas/Mapuera, que está
localizada entre Roraima, Amazonas e Pará, com 68 requerimentos, a TI
Munduruku, no Pará, com 52 requerimentos, a TI Xicrin do Rio Catete, com 37, a
Kayabi (PA), com 35 e a Mengraknoti/Baú, com 26.
Mais
de 90% dos pedidos se referem a requerimento e autorização de pesquisa e
requerimento e concessão de lavra para explorar ouro. Mas há também outros minérios
na lista, como níquel, estanho, chumbo, cobre, manganês, diamante, berílio,
prata e platina.
Em entrevista à reportagem, Edinho Souza, vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR) , afirmou que não tinha ciência desse interesse da Vale na TI de Trombetas. Mas que a posição dos povos indígenas é categórica em recusar qualquer exploração mineral.
“Enquanto movimento indígena a gente não tem nenhum
interesse em mineração em TI’s. Isso para nós é uma tragédia anunciada. Acaba
afetando diretamente a nossa vida com um impacto ambiental muito grande. A
gente enxerga como um desastre completo. Não há interesse algum nem de discutir
nem de regulamentar”, disse.
Edinho também rechaça o histórico da Vale e lembra que o governo
Bolsonaro muitas vezes tenta cooptar indígenas que não tem qualquer
representatividade entre os povos.
“A gente tem o histórico da Vale e o próprio governo com essa
bancada dando carta branca para uma empresa que é criminosa, considerando o que
aconteceu em Mariana e Brumadinho. Com esse incentivo do governo hoje cresceu
muito essa onda da violência, da invasão, garimpeiros realmente achando que
pode garimpar em qualquer parte do estado. Bolsonaro às vezes usa até algum
parente indígena para dizer que somos a favor do garimpo. Lembro: essa não é a
posição dos povos indígenas enquanto movimento”, afirmou.
Em coletiva de imprensa realizada em Brasília em que estiveram presentes 50 lideranças Munduruku e a reportagem cobriu, Maria Leusa Munduruku também rebateu o uso político de alguns indígenas e a mineração em TI’s.
“Somos contra a mineração e todo tipo de
empreendimento no nosso território. O governo às vezes pega um indígena dizendo
que representa nosso povo, isso não é verdade. O governo pega falsas
lideranças. Não aceitamos esse tipo de coisa nem vamos aceitar”, disse.
O povo Munduruku também afirmou que tem ciência
dos requerimentos minerários da Vale que incidem sobre o seu território, no
Tapajós no Pará, e que em reunião com representantes do Ministério Público
Federal pediram o cancelamento desses requerimentos. O MPF não quis comentar.
Há precedente: em setembro, a Justiça Federal atendeu a um pedido de liminar do Ministério Público Federal do Amazonas e cancelou 1.072 requerimentos (equivalente a 96% do total) relativos a pesquisa ou concessão para mineração em terras indígenas no AM.
Pesquisa do Datafolha de 2019 mostrou que 86% dos brasileiros rejeitam mineração em terras indígenas . A reprovação é de no mínimo 80% em todas as regiões, escolaridades, idades e faixas de renda dos entrevistados.
Procurada pela reportagem, a Vale alegou um número de requerimentos diferente do informado pela Agência Nacional de Mineração. De acordo com a empresa, são 76 requerimentos “ativos”. Quando solicitada a listar os detalhes desses 76 requerimentos, no entanto, a Vale não se manifestou. Diz a nota da empresa:
“A
Vale informa que possui, atualmente, 76 processos minerários ‘ativos’ no
sistema de processos da Agência Nacional de Mineração cujas áreas interferem
total ou parcialmente com terras indígenas. A empresa esclarece, entretanto, que o status
de ‘ativo’ se refere exclusivamente à situação do processo no órgão e não
significa que haja nenhuma atividade de pesquisa ou lavra sendo conduzida
nessas áreas.
Por fim, a Vale reforça que segue rigorosamente a legislação que rege o aproveitamento dos recursos minerais no país e, portanto, não realiza qualquer atividade de estudo de pesquisa ou lavra de qualquer natureza em terras indígenas.”
Sigilos
requeridos pela Vale em 2019
De
fato, a Vale não poderia realizar qualquer atividade de lavra e pesquisa em
terras indígenas porque, como dito, isso ainda não foi regulamentado no Brasil.
Mas não é só a alta probabilidade de que esse cenário mude a qualquer momento
que pode abrir a brecha para que a Vale e outras empresas sigam com seus
planos.
Os
dados obtidos pelo Observatório mostram que a Vale solicitou sigilo de
informação minerária em abril de 2019 para ANM em três requerimentos, dois
referentes a níquel na TI Xikrin do Rio Catete e um de estanho na TI Apyterewa.
Isso é algo que as mineradoras puderam passar a recorrer a partir de uma
resolução da ANM de 2019.
Disse
a agência para a reportagem:
“Tendo
em vista a Resolução da ANM nº 1, de 2019 as empresas podem solicitar sigilo
junto ao processo minerário, mas não significa que o pedido de sigilo foi
analisado e concedido pela ANM, apenas
que a empresa solicitou o sigilo”.
Ou
seja: oficialmente, a Vale tem se movimentado para evitar que informações sobre
esses processos venham a público.
Movimentações
processuais também em 2019
O caso da TI Apyterewa chama a atenção. Uma área de 773 mil hectares próxima a Carajás e que está na área de influência da usina de Belo Monte, a TI já sofre há algum tempo com o desmatamento, atividades ilícitas e falta de fiscalização na região.
Os
dados da ANM registram movimentações da Vale em exploração de prata na TI
Apyterewa em 2019. Primeiro, “AUT PESQ/RELATORIO PESQ PARCIAL APRESENTADO
EM 26/03/2019”. Depois, “AUT PESQ/PAGAMENTO TAH EFETUADO EM
31/07/2019”.
De
acordo com a ANM, em resposta, isso “significa que a empresa protocolizou o
relatório parcial de pesquisa, mas a ANM não irá se manifestar sobre esse
Relatório, tendo em vista que é um processo minerário em TI e não vamos
analisar tal documento visto a sua natureza”.
Na
prática, esses processos tem avançado.
Chama
a atenção também dezenas de pedidos da Vale com a informação de que a área foi
desbloqueada judicialmente em 19 de setembro de 2018. Em nota, a ANM disse que
– claro – não se trata de uma autorização da justiça para a exploração mineral
porque isso no momento não é possível, mas que algum desbloqueio foi feito.
Já
a Vale informou que “não há nenhuma implicação prática para a Vale, na medida
em que a informação de bloqueio/desbloqueio não tem qualquer relação com
eventuais interferências com terras indígenas e não autoriza ou desautoriza que
nenhuma atividade de pesquisa ou lavra seja executada em tais áreas”.
Traduzindo:
o imbróglio permanece.
Chama a atenção também que 214 dos 237 requerimentos da Vale que incidem sobre terras indígenas (um é na Bahia, portanto fora da Amazônia no dado original de 236) foram feitos em 1995, 1996 e 1997. Portanto, nos anos imediatos antes da privatização da empresa. A Vale foi formalmente privatizada em maio de 2017. Oficialmente, a Vale já explora ouro na mesma região de Carajás há décadas.
Questionada novamente pela reportagem sobre as movimentações registradas pela ANM, a empresa informou que “os 76 processos ativos constam do volume total divulgado pela ANM, cuja lista mostra tanto os processos “Ativos” como os “Inativos”. Entende-se como “Inativos” títulos que já foram renunciados, desistidos, repassados para outros titulares e que a agência ainda não procedeu com averbação de tais atos”.
Pressão
aumenta em Brasília
“Recebo
e arquivo, recebo e arquivo. A gente não pode usar o argumento de que está
tendo mineração ilegal para liberar. Vamos acabar com mineração ilegal, com
garimpo ilegal. Coibir atos ilícitos. Primeiro, o governo cumpre seu papel de
fiscal, de coibir o ilegal, o desmatamento, os garimpos. Depois disso, vamos
discutir em que condições pode-se avançar”, afirmou Rodrigo Maia sobre o
projeto do governo Bolsonaro para liberar mineração em terras indígenas.
O
histórico mostra que a equipe de Bolsonaro tem atuado desde o primeiro dia de
governo, no entanto, para formular o projeto, acelerar a tramitação interna,
passar por cima da consulta prévia aos povos indígenas prevista pela
Constituição e aprovar o projeto.
Bento Albuquerque, ministro de MME, dedicou as primeiras semanas no cargo para se reunir com mineradoras e lobistas do setor, como mostrei aqui no Observatório de forma exclusiva .
Em março, Albuquerque tratou de literalmente vender a possibilidade de exploração em terras indígenas no maior evento da mineração, realizado no Canadá . A intenção foi tão forte que essa foi a primeira vez que o Brasil se tornou até patrocinador do evento. Uma mesa de negociação aberta com as principais empresas do setor.
E Albuquerque não foi o único ministro que andou se reunindo com garimpeiros , invasores de terras indígenas e interessados na exploração mineral da Amazônia.
É
pouco provável que Rodrigo Maia cumpra a sua promessa. Se cumprir, nada garante
que o governo não continuará se movimentando para concretizar os seus planos.
Enquanto questões práticas e legais correm em Brasília, os povos indígenas já vivem na pele os impactos do garimpo ilegal. Em entrevista ao Observatório, Ailton Krenak , uma das principais lideranças indígenas da história do Brasil, fez uma análise definitiva sobre a situação. Abre aspas:
“A regulamentação daquele
princípio que tá na Constituição independe do fato real de que a Amazônia está sendo depredada,
invadida, destruída e de que esses governos corruptos estão fazendo lobby no
mundo inteiro para trazer as transnacionais para ocupar a Amazônia. Essa é a
questão.
A disputa que temos hoje não se limita a um procedimento de regulamentar qualquer preceito constitucional. Enquanto eles fingem que estão respeitando a questão legal, o garimpo, a invasão das terras indígenas é um fato. O Congresso pode ficar discutindo mais 10 anos, quando terminar o debate as Terras Indígenas foram todas invadidas. Essa é a questão real. Essa ilha da fantasia que é Brasília é um faz de conta de tudo, não tem nada acontecendo.
Quando esse homem irresponsável
(Bolsonaro) solta uma dessas frases irresponsáveis ele despeja 10 mil, 30 mil
garimpeiros dentro de uma terra indígena. Ele lidera um exército de zumbis
que vai para onde ele manda. Gente que não sabe ler o que está na Constituição”.
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