Enquanto meus olhos ainda me acompanham, leio. A leitura como o prazeroso resgate do maravilhamento e da curiosidade. Por isso, dentro da sacola que carrego comigo, guardo objetos de uso prático e um livro como uma pequena coisa sem utilidade aparente. Nessa sacola, eu poderia carregar frutas, verduras e hortaliças, mas armazeno um poema chamado “Batata quente”, de Ana Martins Marques. Gosto da metáfora e de pensar no amor como um objeto incandescente entre as mãos. Enquanto meus ouvidos ainda não desistiram de mim, escuto música no fone (“Leão”, de Joyce Alane) e também tento compreender a vastidão de coisas que as pessoas têm a dizer. Meus sentidos estão prestes a atravessar a rua junto comigo em um momento tumultuoso da história – como o são todos os momentos quando examinamos lentamente o seu afastar-se.
O trânsito da minha cidade é intransigente. O sinal está laranja e os veículos aceleram ainda mais. Os carros, para lá e para cá, dão voltas e voltas para desbravar uma nova direção, para colonizar uma rua desconhecida sob o Sol. O universo segue em expansão, mas nas ruas temos nossos limites. Na calçada, as pessoas conversam livremente entre si. Perto de mim, alguém ergue a voz e arregala os olhos contra algo que julga insultuoso e pergunta a uma pessoa ao meu lado em um tom que permite a todos ouvir: – Pacificar o quê? – Então olha para os lados e faz gestos com as mãos para constatar que todo mundo está vivendo simplesmente suas vidas. – Eles querem reestabelecer o direito de cometer crimes e não serem alcançados pela justiça, é isso ? O sinal fecha para os carros, que podem ser armas mortais. A viatura da polícia tem pressa e passa mesmo assim, zunindo, fazendo uiu-uiu.
Falta pouco para eu alcançar a faixa de pedestres, mas quando chego lá, o sinal fecha para mim. Eu não costumo pensar no tempo em sua forma de segundos até parar diante do semáforo e encarar a luz acesa com sua cor e seu imperativo convite à espera. Todo mundo precisa esperar em algum momento. Dentro de um carro, alguém enfurecido buzina com insistência pela lentidão do trânsito ou por um aborrecimento que não sou capaz de decifrar. A depender do nosso estado de espírito, o tempo demora a passar. Quando é minha vez de esperar, para me distrair, tenho o costume de olhar para o céu. Desde que ouvi pela primeira vez a expressão rios voadores, tento encontrar lá no alto um longo curso d’água que cintila e serpenteia, movido pela força invisível do vento. As nuvens vêm e vão dizendo e desdizendo coisas.
No chão, as faixas brancas e paralelas entre si estão se apagando. É preciso que a prefeitura renove a pintura e as pessoas se lembrem das leis e de atravessar em linha reta. Do outro lado da pista, na extremidade do movimento incessante de pessoas que se juntam e esperam, observo uma senhora baixinha e corpulenta que protege com seus braços e mãos um vaso bojudo de cerâmica.
Desejo conhecer as olarias de Maragogipinho, no interior da Bahia. Nesse instante, porém, o vaso que aquela senhora carrega com tanto cuidado me faz pensar em Kintsugi , uma arte japonesa que consiste em reparar objetos quebrados realçando as marcas do remendo com certo charme ao invés de tentar esconder suas rachaduras. O sinal abre para nós. A senhora avança em minha direção com um olhar distraído, mas segura de sua tarefa. Reparo cada vez mais de perto no vaso que ela ampara. É visível a beleza e a fragilidade dessa arte milenar. Passo por ela como um gesto comum. Secretamente, sigo meu caminho tranquilo e contente, pensando que testemunhei uma senhora carregar com firmeza um vaso bonito e frágil em meio à confusão da vida urbana.
Fonte
O post “Uma senhora com um vaso atravessa a rua” foi publicado em 25/10/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública
