DO OC – Não se trata mais de um alerta da comunidade científica para evitar uma possível tragédia – trata-se do princípio mais básico, comum a qualquer ser vivo: sobrevivência. Ou mudamos a rota agora, ou nos restará a catástrofe. A emergência climática deu lugar a uma situação de emergência humanitária.
O alerta – mais um, só que ainda mais enfático – está no relatório síntese do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, da ONU), publicado na manhã desta segunda-feira, após uma semana de intensa negociação entre governos e cientistas. Os dois “polos” debatem para garantir que o texto tenha força científica e relevância governamental. Duas cientistas brasileiras – a vice-presidente do IPCC Thelma Krug, e a revisora Mercedes Bustamante – participaram do grupo que redigiu o relatório síntese, que tem 93 autores. O documento foi finalizado na tarde de ontem em Interlaken, na Suíça, frustrando a expectativa de que ficasse pronto na última sexta-feira.
O teor das 37 páginas não chega a ser inédito, já que se trata de um apanhado dos últimos seis relatórios publicados pelo IPCC, mas funciona como a mensagem final dos cientistas nesta década crítica, visto que o próximo ciclo de análise só deve começar a ter resultados por volta de 2028.
Para quem achava que a mudança climática era uma fantasia, o texto mostra que a realidade bateu à porta: em 2019, a concentração atmosférica de CO2 (410 partes por milhão) foi a maior em pelo menos 2 milhões de anos, e as de metano (1.866 partes por bilhão) e óxido nitroso (332 partes por bilhão), as maiores em 800 mil anos. Setenta e nove por cento das emissões globais de gases de efeito estufa vieram dos setores de energia, indústria e transporte e 22% da agricultura, silvicultura e de outras formas de uso da terra.
O IPCC vem estudando desde 2018 o aumento da temperatura mundial até 1,5 ºC. Quase todos os cenários apontam que esse limite será ultrapassado entre 2030 e 2035, ainda que temporariamente (no momento já são 1,1ºC acima da era pré-industrial). Os cientistas projetaram diversos cenários para o futuro, e apenas naqueles em que há ações mais ambiciosas de redução de gases de efeito estufa (GEE), o mundo consegue voltar à temperatura abaixo desse limiar antes do fim do século.
Quanto maior a magnitude e maior a duração do overshoot (quando a temperatura da Terra ultrapassa um determinado limite por algum tempo e depois retorna), mais exposto estará o planeta, aumentando os riscos para sistemas naturais e humanos. Apesar de temporário, o dano causado será permanente e irreversível em alguns ecossistemas de resiliência baixa, como os polos, as montanhas e as costas impactadas por degelo ou por aumento do nível do mar – e claro, lembrando que o aumento de 1,5ºC em si já é um péssimo cenário.
Alerta para o Brasil
Segundo Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima, 1,5ºC é uma meta de sobrevivência necessária para garantir um futuro climático mais seguro para todos nós. “A mensagem que fica, por parte dos cientistas, é de que precisamos garantir que não haja overshoot ou que ele seja o menor possível, pelo menor tempo possível. Cada fração de um grau de aquecimento importa. Não estamos preparados para a devastação climática que significa ultrapassar 1,5ºC. Vai nos custar mais vidas, tanto humanas quanto de inúmeras outras espécies.”
Hoje, de 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas – quase metade da população da Terra, sobretudo do hemisfério sul – já vivem em condição de vulnerabilidade devido às mudanças do clima. Essas pessoas têm 15 vezes mais chances de serem mortas num desastre climático.
Para evitar ou atenuar o overshoot, o documento toma como parâmetro as emissões de GEE projetadas de 2019 e traça metas bem específicas para os próximos anos. A primeira delas: reduzir a emissão em 43 [34-60]% até 2030. Em seguida:
- Redução de 60 [49-77]% até 2035;
- 69 [58-90]% até 2040;
- 84 [73-98]% até 2050.
Isso significa agir desde já. Significa também que a indústria fóssil poderá ter “ativos encalhados”, ou seja, investimentos que não chegarão ao mercado, como já foi mencionado no relatório anterior do IPCC , publicado em 2022. O texto apontava que para haver uma estabilização do aumento da temperatura global em 1,5ºC, o uso de carvão mineral precisa cair 95%, o de petróleo 60% e o de gás natural 45% até 2050. Isso é um alerta para o Brasil, que ampliou investimentos no pré-sal e sancionou uma lei permitindo a construção de novas termelétricas a carvão até 2040.
É preciso promover uma mudança radical no setor de energia. Para atingir as emissões líquidas zero de CO2 e GEE, será necessária a transição de combustíveis fósseis sem captura e armazenamento de carbono (CCS) para fontes de energia de muito baixo ou zero carbono, como as renováveis. Fontes solar e eólica são de longe as opções de menor custo com o maior potencial para reduzir as emissões até 2030. O preço da energia renovável tem caído. Entre 2010 e 2019, houve uma queda de 85% no preço da energia solar e 55% na energia eólica. Também houve uma queda de 85% no preço das baterias de lítio, usadas em carros elétricos.
Quando o próximo relatório do IPCC sair, o do 7º ciclo, o mundo já estará bastante mudado. Daí a urgência da mensagem – e, sobretudo, a urgência de que a humanidade implemente as metas estabelecidas.
Eis mais alguns pontos de destaque do relatório:
- É preciso frear com urgência tanto a produção de combustível fóssil, como os subsídios para a indústria causadora do problema. O carbono emitido pela infraestrutura já existente, acrescido do carbono que virá das construções ainda planejadas, já é suficiente para superar o orçamento de carbono (a quantidade de gases de efeito estufa que pode ser emitida até a atmosfera esquentar 1,5°C).
- O investimento anual em mitigação para 2020 a 2030 em cenários que limitam o aquecimento a 1,5°C ou 2ºC precisa ser de três a seis vezes maior do que o aplicado hoje. Mas há um problema: os fluxos financeiros públicos e privados de combustíveis fósseis ainda são maiores do que os de adaptação e mitigação do clima. Em suma: não falta dinheiro, falta vontade política e econômica, além de inteligência, já que investe-se mais na causa do que na solução do problema. O benefício econômico com corte de gastos em saúde que decorreria da melhora da qualidade do ar seria aproximadamente o mesmo, ou possivelmente ainda maior do que os custos de reduzir ou evitar emissões.
- Políticas públicas de redução precisam focar em transporte público e em mobilidade ativa, como o uso de bicicleta. É importante haver também campanhas de conscientização dos efeitos do consumo exagerado, para que as pessoas adotem modelos de vida de baixo carbono. Em números: os 10% mais ricos contribuem com 34 a 45% das emissões domésticas globais de GEE, enquanto os 50% mais pobres contribuem com 13 a 15%. Mas são exatamente esses os que estão em risco.
- Cada aumento acima de 1,5º C pode ter consequência para a biodiversidade, ampliando o risco de extinção de espécies ou perda irreversível em ecossistemas de florestas, recifes de coral e do Ártico. Aumenta também o risco de atingir pontos de não retorno, com mudanças abruptas e/ou irreversíveis no sistema climático.
- As mudanças climáticas causadas pelo homem já estão causando impactos adversos generalizados e perdas e danos relacionados à natureza e às pessoas. As comunidades vulneráveis que historicamente menos contribuíram para as mudanças climáticas são desproporcionalmente afetadas.
- Existem lacunas de adaptação, que continuarão a crescer com os atuais ritmos de implementação. Os atuais fluxos financeiros globais para adaptação são insuficientes e limitam a implementação das opções de adaptação, especialmente nos países em desenvolvimento.
- Mesmo quando eficaz, a adaptação não impede todas as perdas e danos.
- Os riscos e impactos adversos projetados e as perdas e danos relacionados à mudança climática aumentam a cada incremento do aquecimento global, sendo mais altos para o aquecimento global de 1,5°C do que atualmente, e ainda mais altos a 2°C.
- Com o aumento do aquecimento, cada região deve experimentar cada vez mais mudanças simultâneas e múltiplas. Um exemplo: a subida relativa do nível do mar e os consequentes eventos extremos. Atualmente, estes eventos ocorrem uma vez a cada século, mas são projetados para ocorrer pelo menos anualmente em mais da metade dos locais até 2100. Outras mudanças regionais projetadas incluem a intensificação de ciclones tropicais e/ou tempestades extratropicais, e o aumento da aridez e da temporada de incêndio.
- As políticas implementadas até o fim de 2020 deverão resultar em emissões globais de GEE mais elevadas em 2030 do que as NDCs (da sigla em inglês para Contribuições Nacionalmente Determinadas, o compromisso de ação climática de cada país) indicariam. Ou seja, sem um fortalecimento das políticas climáticas ao redor do mundo, o aquecimento global projetado até 2100 é de 3,2ºC. As metas anunciadas antes da COP 26 são igualmente insuficientes, mesmo se implementadas na íntegra. Com ela, o mundo poderá chegar a um aquecimento de 2,8ºC até 2100. Em suma: além da “lacuna de emissões”, há também uma “lacuna de implementação”.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
O que é o IPCC?
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi criado em dezembro de 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Ele é um comitê composto de centenas de cientistas do mundo inteiro escolhidos pelos governos com a missão de avaliar periodicamente o estado da arte do conhecimento científico sobre as mudanças do clima. Essas avaliações são publicadas periodicamente, na forma dos chamados Relatórios de Avaliação. Os cientistas e os relatórios se distribuem em três grupos de trabalho: o Grupo 1 (WG1), que trata da base física (as causas) das mudanças do clima, o Grupo 2 (WG2), que trata de impactos, vulnerabilidades (as consequências) e adaptação, e o Grupo 3 (WG3), que lida com a mitigação (as soluções).
O que é o documento publicado hoje?
Em seus 34 anos de existência o IPCC já publicou seis grandes Relatórios de Avaliação: o FAR (First Assessment Report), em 1990; o SAR (Second Assessment Report), em 1995; o TAR (Third Assessment Report), em 2001; o AR4 (Fourth Assessment Report), em 2007, e o AR5 (Fifth Assessment Report), entre 2013 e 2014, além de uma série de relatórios especiais e outros documentos. O sexto relatório, AR6 teve três tomos, lançados entre 2021 e 2022. O documento que saiu hoje é o relatório-síntese (Synthesis Report), que amarra as conclusões dos três grupos de trabalho, além de três Relatórios Especiais anteriores (o relatório especial sobre o Aquecimento Global de 1,5 ºC, o relatório especial sobre Mudança Climática e a Terra, e o relatório especial sobre o oceano e a criosfera em um clima em mudança). Como o objetivo principal do IPCC é informar políticas públicas para combater a mudança do clima, o relatório-síntese tem um sumário executivo para tomadores de decisão, conhecidos pela sigla SPM (“Summary for Policymakers”). Os sumários são documentos dirigidos para políticos e tomadores de decisões, que resumem as principais conclusões técnicas dos relatórios.
Os governos interferem no IPCC?
Sim e não. A linguagem dos SPM é negociada nas assembleias do IPCC, das quais participam representantes de governos do mundo inteiro. Por isso os sumários tendem a ser conservadores, porque é preciso ajustar a escrita aos caprichos da diplomacia e às suscetibilidades de cada governo. No entanto, os sumários técnicos e os relatórios não são submetidos aos governos. E, o mais importante, os governos não mudam os dados nem as conclusões do painel – quem dá as cartas é a ciência.
O IPCC é alarmista?
Ao contrário: como reflete o consenso científico e os estudos mais aceitos da literatura, o IPCC tende a ser bastante conservador em seus relatórios, e mais conservador ainda em seus sumários para tomadores de decisão. Um exemplo clássico dessa cautela aconteceu em 2007, no AR4, com os dados sobre nível do mar: embora já houvesse estudos mostrando que o degelo da Antártida e da Groenlândia podia ser mais rápido do que o imaginado e que o mar poderia subir mais de 1 metro até o fim do século, o relatório ficou com uma estimativa mais baixa, 88 cm.
O que significa a linguagem estatística do IPCC?
Como trata de ciência e de cenários para o futuro, o IPCC não pode fazer previsões. Pode, no máximo, dizer qual é a probabilidade de um determinado fato, observação ou fenômeno. Em outras palavras, o painel precisa comunicar as incertezas inerentes a qualquer ciência. Para isso, lança mão de uma classificação estatística onde:
Virtualmente certo: 99% a 100% de probabilidade
Extremamente provável: 95% a 99% de probabilidade
Muito provável: 90% a 95% de probabilidade
Provável: 66% a 90% de probabilidade
Mais provável que improvável: mais de 50% de probabilidade
Tão provável quanto improvável: 33% a 66% de probabilidade
Improvável: menos de 33% de probabilidade
Muito improvável: menos de 10% de probabilidade
Extremamente improvável: menos de 5% de probabilidade
O painel também expressa intervalos de confiança no entendimento científico de uma questão. Pense na probabilidade de um mesmo resultado caso um evento se repita dez vezes, por exemplo. Assim:
Muito alta confiança: 9 em 10 chances
Alta confiança: 8 em 10 chances
Média confiança: 5 em 10 chances
Baixa confiança: 2 em 10 chances
Muito baixa confiança: 1 em 10 chance
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O post “Uma questão de sobrevivência” foi publicado em 20th March 2023 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima