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Ao ouvir a fala do ministro Gilmar Mendes, antes do esperado voto de Cristiano Zanin, imaginei o produtivo debate que se instalaria na corte se Joenia Wapichana, que se candidatou ao cargo publicamente, fosse escolhida para substituir a ministra Rosa Weber, que se aposenta no próximo mês.
A começar pelo linguajar do ministro, que utilizou termos publicamente rejeitados pelos indígenas, como “índio” e “tribo” – o que não combina com a suposta imparcialidade da corte. E que se agrava com a superficialidade com que contou causos, quase anedotas, para destilar seus preconceitos: o do cacique Babau, liderança Tupinambá na Bahia, para ele “um homem negro em uma moto que tocava o terror”; depois contando uma visita à TI Raposa Serra do Sol, em tom de façanha na Amazônia, quando teria constatado uma pobreza que faria os indígenas saírem dali para “catar lixo em Boa Vista”.
Como se o problema estivesse na luta para manter o território e não na insegurança em que vivem pela cobiça de suas terras.
As falas de Gilmar – que também é fazendeiro no Mato Grosso – têm consequências, como mostra, na prática, a própria tese do marco temporal . Embora desde 2013, o STF tenha reconhecido que a exigência de comprovar a permanência na terra antes da promulgação da Constituição de 1988, uma salvaguarda restrita ao processo de demarcação de Raposa Serra do Sol, em 2008, o ministro já tomou decisões na corte nela baseado em pelo menos dois mandados de segurança , alegando que “o precedente de Raposa Serra do Sol não se dirige apenas ao caso de Raposa Serra do Sol”. Agora se agarra à oportunidade de consagrar sua tese inconstitucional.
Imagino que Joenia, que se tornou a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação oral no STF, exatamente no processo de Raposa Serra do Sol, em que atuava pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), teria muito a ensinar ao ministro, à corte e a todos que assistiam à votação, até o momento em que escrevo com 4 (contra) a 2, com os votos de Zanin e do ministro Luís Roberto Barroso .
Mesmo que o marco temporal seja barrado, como se espera, a ausência de uma indígena na corte permite que o racismo prospere, assim como a incompreensão com o modo de vida e cultura indígena, intrinsecamente ligados ao direito pela terra, como foi reconhecido pela Constituição: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Não tenho ilusões de que Lula, que reluta em reconhecer a relevância de indicar uma mulher para o STF, nomearia justamente uma advogada que também é uma liderança independente, comprometida apenas com os povos indígenas. Mas a improvável candidatura de Joenia tem o mérito de apontar o óbvio: representatividade é um critério que não comove os homens brancos no poder, mesmo quando se consideram progressistas, mas é imprescindível à democracia.
Não é à toa que a ministra Rosa Weber decidiu pautar as principais votações pendentes no STF antes de sua aposentadoria em setembro. Com sua saída, o STF se torna ainda menos representativo do país, deixando apenas a ministra Cármen Lúcia entre os homens togados. Um retrocesso inadmissível em um país dominado por um patriarcado insensível e arrogante como a fala do ministro Gilmar.
Fonte
O post “Uma mulher para a vaga de Rosa no STF” foi publicado em 02/09/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública