Em 1972, paleontólogos americanos da Universidade de Harvard procuravam fósseis no litoral da Venezuela, quando encontraram um daqueles achados que todos os paleontólogos passam a vida procurando, na maioria da vezes em vão. Numa paisagem desértica ao redor de um campo de exploração de petróleo abandonado a poucos quilômetros da cidade de Urumaco, no noroeste venezuelano, os pesquisadores descobriram os restos de duas imensas tartarugas, entre as maiores que já existiram. Uma carapaça media 1,84 metro de comprimento. A outra, 2,18 metros. Os dois indivíduos pertenciam à mesma espécie, uma antiga tartaruga de água-doce, ou melhor, um cágado descomunal que viveu no antigo pântano que existia no local entre 9 e 7 milhões de anos atrás, no período Mioceno.
Até aquele momento, a maior tartaruga de que se tinha conhecimento era uma espécie marinha chamada Archelon, um bicho muito antigo que viveu no tempo dos dinossauros há cerca de 80 milhões de anos. Seus fósseis, com uma carapaça medindo 2,20 metros, foram encontrados nos Estados Unidos ainda no final do século 19.
A nova espécie descoberta na Venezuela tinha praticamente as mesmas dimensões de Archelon. Daí a razão do nome que os paleontólogos escolheram para ela: Stupendemys geographicus, a tartaruga estupenda (cuja expedição foi bancada pela National Geographic Society).
Desde então, Stupendemys vinha dividindo com Archelon o título de maior membro da grande ordem Testudinata, que reúne todas as tartarugas terrestres, marinhas e de água-doce que existiram nos últimos 200 milhões de anos, quando se acredita que o grupo tenha evoluído.
A maior tartaruga vivente é a marinha tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), cujo maior espécime descrito tem uma carapaça de 2,13 metros. Já a maior espécie vivente da Amazônia é um cágado, ou melhor, um tracajá, a tartaruga-de-cabeça-grande-do-Amazonas (Peltocephalus dumerilianus). Indivíduos adultos possuem carapaças medindo entre 45 cm e 90 cm.
No meio século decorrido desde a descoberta original de Stupendemys, diversos outros fósseis seus foram encontrados por toda a região da Amazônia ocidental: na Colômbia, no Peru, de volta à Venezuela e também no Brasil, mais especificamente no estado do Acre, onde paleontólogos da Universidade Federal do Acre acharam em 1990 fósseis um pouco mais antigos, datados entre 11 milhões e 9 milhões, o que os levou a descrever em 2006 uma segunda espécie, Stupendemys souzai.
Contundo, nenhum dos novos espécimes era tão completo ou tão grande quanto aqueles achados em 1972. Até agora.
Foi publicado esta semana na revista científica Science Advances um artigo descrevendo o maior espécime de Stupendemys já encontrado. Os fósseis do bicho foram achados por paleontólogos colombianos no deserto de Tatacoa, uma região semi-árida localizada 200 quilômetros a sudoeste de Bogotá. Sua carapaça é a mais completa encontrada para um Stupendemys, medindo 2,40 metros de comprimento e com espessura média de 2,5 cm. Um recorde absoluto.
A enorme carapaça pode ter abrigado uma tartaruga que, em vida, pesava estimados 1.145 kg. Ou seja, duas vezes mais do que a maior tartaruga vivente. Segundo o paleontólogo colombiano Edwin Cadena, o líder do estudo ora publicado, os novos fósseis permitiram descobrir que os machos de Stupendemys ostentavam nos dois lados da cabeça, na parte superior das carapaças, protuberâncias semelhantes a chifres, um detalhe anatômico que – hipotetizam os pesquisadores – pode ter servido de recurso para proteger seus crânios maciços quando envolvidos em combate com outros machos pelo controle das fêmeas na época do acasalamento.
Cadena, que é pesquisador na Universidad del Rosário, em Bogotá, sugere que Stupendemys possa ter atingido seu tamanho incomparável devido ao fato de ter habitado um ecossistema pantanoso tropical, com abundância de fontes de alimento, capazes de sustentar o apetite do mega-tracajá.
Outra possibilidade para explicar as dimensões de Stupendemys deve-se ao fato de ter sobrevivido em águas infestadas por crocodilos gigantes. Naquela época e naquele ecossistema, tamanho era documento. Pressões adaptativas podem ter selecionado ancestrais de Stupendemys cada vez maiores para acompanhar o crescimento de seus predadores crocodilianos, maximizando suas chances de sobrevivência.
Mesmo assim, a vida não era fácil. Diversos fósseis de Stupendemys têm marcas de dentadas cujos formatos se assemelham às bocarras dos imensos jacarés das águas do Pebas. Existe inclusive na Venezuela um casco de Stupendemys que preserva incrustado uma enorme presa de crocodilo.
O Lago Pebas
No período Mioceno, a Amazônia ocidental era uma terra de gigantes. Esta é a melhor imagem para descrever um antigo megapantanal que os cientistas batizaram de Sistema Pebas, ou simplesmente lago Pebas, uma alusão à formação geológica Pebas, no Peru, cujas rochas forneceram as primeiras pistas da existência daquele ecossistema há muito desaparecido.
Além de Stupendemys, o Pebas foi o lar não apenas do maior jacaré que existiu, o purussauro de 12,5 metros e 8,5 toneladas (veja reportagem O “tiranossauro” brasileiro) , como também hábitat do maior crocodilo gavial (Gryposuchus, com 10 metros e 2 toneladas). De um terceiro crocodilo gigante comedor de moluscos (Mourasuchus, 12 metros) e de parentes das pacaranas (Dinomys branickii), roedores amazônicos furtivos que não ultrapassam os 15 quilos. Seus primos distantes que habitaram o Pebas eram imensamente maiores. Phoberomys pattersoni, que viveu na Venezuela na mesma região e época dos primeiros fósseis de Stupendemys, podia pesar até 700 quilos. Detalhe, o maior roedor vivente é a capivara, de 40 quilos.
Vestígios daquele antigo bioma estão espalhados por mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, divididos entre Bolívia, Acre, oeste do Amazonas, Equador, Peru, Colômbia e Venezuela. As datações mais antigas, feitas na Venezuela, dão conta de que o lago Pebas existia há 18 milhões de anos.
A formação do lago Pebas foi decorrência do soerguimento dos terrenos da protobacia amazônica. Isso se deu em função da elevação dos Andes, que acelerou a partir de 20 milhões de anos atrás. Naquela época, a Amazônia ocidental era banhada pelas bacias do Amazonas/Solimões (que corria na direção inversa à atual) e do rio Magdalena, na Colômbia. A elevação dos Andes, no que são hoje o Peru, Equador e Colômbia, acabou por interromper o fluxo de água em direção ao Pacífico, empossando o proto-Solimões na altura da Amazônia ocidental, dando origem ao megapântano.
Mas os Andes continuaram subindo. O contínuo soerguimento dos terrenos da Amazônia teve dois efeitos. O proto-Solimões, antes represado no lago Pebas, inverteu seu curso, tornando-se o majestoso rio que hoje conhecemos. Ao longo desse processo, as águas do Pebas foram escoando.
Eventualmente, há cerca de 8 milhões de anos as irrefreáveis forças geológicas acabaram por escoar o que restava de pântanos na Amazônia ocidental. Foi o fim do lago Pebas e da sua maravilhosa megafauna.
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O post “Um tracajá de 2,40 metros: conheça a maior tartaruga que já existiu” foi publicado em 14th February 2020 e pode ser visto originalmente na fonte ((o))eco