Que o Brasil nasceu enquanto país de uma colônia extrativista todos nós já sabemos. Que o dano causado pelas ações colonizadoras e imperialistas em nosso país repercutem até os dias de hoje, alguns tentam ignorar ou fingem narrativas opostas. O fato é que grandes tesouros da pátria Brasil foram e estão sendo constantemente surrupiados pelo imperialismo, para alimentar o fetiche de pessoas e instituições de países da centralidade do capitalismo, no norte global. Somos todos os dias subtraídos de nossos recursos naturais através de atividades entreguistas, que beneficiam países estrangeiros, enchem os bolsos de poucos e prejudicam o nosso país e a maioria esmagadora de sua população. Nossa fauna silvestre alimenta mercados de animais no mundo todo, nossas árvores centenárias viram móveis na Europa, nossos minérios brutos são refinados e viram produtos tecnológicos caros vendidos de volta para gente. Nem nossos fósseis fogem dessa lógica.
Esse texto falará sobre um caso específico de tráfico de fósseis protagonizado pelo “Ubirajara jubatus”, o dinossauro brasileiro que se encontra em posse do Staatliches Museum für Naturkunde Karlsruhe, ou o Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. O nome do dinossauro vai entre aspas, uma vez que a publicação da espécie foi removida da revista científica em que foi publicada por causa de alguns problemas que serão aqui apresentados.
Para direcionar melhor essa discussão, vamos responder algumas perguntas chave:
A quem pertencem os fósseis brasileiros e como os traficantes de material fóssil tentam legitimar suas ações?
Até 1942, os fósseis brasileiros eram levados de nosso país sem qualquer regulação local, por meio de expedições e até mesmo parcerias estrangeiras e, então, depositados nas instituições organizadoras de tais empreitadas. Após 1942, passa a existir uma proteção legal aos fósseis brasileiros, que passam a ser considerados ‘patrimônio da Nação’, tendo sua extração, entre outras, regulada pelo então Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), hoje Agência Nacional de Mineração (ANM). Todavia, essa proteção refletiu-se em poucas ações na prática. Pessoas e instituições que extraíram fósseis brasileiros após 1942, passaram a ter que se preocupar com a legalidade de suas ações, mas mesmo assim, muitos fósseis foram irregularmente extraídos e exportados do país, dada a engenhosidade de traficantes, fiscalização falha, falta de conhecimento por parte de muitos agentes responsáveis, corrupção, entre outros.
Nós simplesmente não sabemos quantos materiais foram removidos irregularmente daqui e quando exatamente eles foram coletados. Para se evadirem desse decreto de 42, as pessoas e instituições em situação irregular, passaram a alegar que os materiais fósseis teriam saído do país antes da promulgação de tal decreto e, portanto, eles não estariam em desacordo com a legislação vigente. Essa é uma forma de se aproveitar de brechas legais e outras questões falhas em nosso país para se safar de consequências legais e se apropriar de patrimônio alheio. Isso não é apenas mau-caratismo, mas também levanta outra questão muito importante: o conflito entre o legal e o ético.
O que aconteceu com o Ubirajara?
O caso do Ubirajara é um pouco diferente dos demais. Em 1990, preocupado com a ampla evasão de materiais de interesse científico do Brasil, o então “Ministério de Ciência e Tecnologia” (MCT), hoje Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), publicou uma portaria regulamentando a exportação de itens dessa natureza. São incluídos aqui, desde espécimes botânicos e zoológicos até fósseis. Para retirar do país esse tipo de material, uma série de documentos e contrapartidas são exigidas, visando a proteção do patrimônio natural brasileiro e garantindo algum tipo de retorno para o país.
A polêmica vem agora: o fóssil do Ubirajara foi declarado pelos autores como tendo sido extraído e exportado do Brasil em 1995, porém a instituição que o abriga e seus autores não apresentaram os documentos exigidos para a sua extração e exportação e nem cumprem as demais exigências de contrapartida estabelecidas pela portaria do MCT de 1990. Assim que o fato foi constatado, uma grande quantidade de cientistas e instituições brasileiras se manifestaram, protestando contra a situação ilegal do material. Isso acabou levando a retratação do artigo no início de 2020 e a grande insatisfação que até agora se instala.
Desde a publicação do artigo, a Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), que reúne vários profissionais de paleontologia do Brasil, se manifestou e entrou em contato com o museu que hoje abriga o fóssil, para negociar uma repatriação amigável do espécime, tendo em vista que a sua saída e permanência no exterior estão em desacordo com a legislação brasileira.
Depois de meses sem resposta, em 01º de setembro de 2021, o museu alemão onde o fóssil hoje está, respondeu que não vai devolver o material, pois de acordo com uma convenção da UNESCO que eles assinam, o fóssil agora pertence a eles. O Brasil é signatário da mesma convenção . Essa trata das “medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedade ilícitas dos bens culturais”. O Brasil é signatário desde 1973, porém a Alemanha o assinou somente depois de 2000. O museu alega que o fóssil entrou na Alemanha antes disso, então deve ser considerado como um bem alemão, logo, não pode ser transferido para o Brasil. Injusto, né? Pois é. Esse museu alemão, o Staatliches Museum für Naturkunde Karlsruhe, direciona fundos há décadas para compra de materiais fósseis de outros países e contém em sua coleção dezenas de fósseis brasileiros irregularmente extraídos e exportados daqui. Sob nenhuma circunstância o Ubirajara pode ser considerado legalmente adquirido pelo museu em questão e o museu deturpa a convenção da UNESCO para permanecer com a posse desse material.
Quem é o dinossauro “Ubirajara jubatus”
O “Ubirajara jubatus” é um dinossauro theropoda (daqueles carnívoros que andam sobre duas patas) que viveu a cerca de 115 milhões de anos atrás no Cretáceo Inferior. Esse animal era um Compsognathidae, ou seja, parente daqueles dinossauros pequenos e verdinhos que aterrorizavam os humanos no filme “Jurassic Park 2”. O que mais chama a atenção no Ubirajara era seu pequeno corpo coberto com penas apresentando dois pares de penas bem longas próximo a região do ombro do animal, que provavelmente serviam para atrair fêmeas ou espantar outros machos e predadores.
O que está sendo feito agora para recuperar o fóssil?
Depois da negativa do museu, voltaram a explodir nas redes protestos pelo retorno do material. A comoção popular é muito importante e pode ser utilizada como uma forte justificativa para o retorno desse e de outros espécimes ao Brasil. A maior parte dos protestos estão reunidos sob a hashtag #UbirajaraBelongstoBR e podem ser encontrados nas mais diversas redes sociais. Incluem manifestações de repúdio, artes, vídeos, abaixo-assinados, conversas, entre outros, que estão ajudando a popularizar o tema e colocar em discussão a pauta do colonialismo na Ciência.
Além das manifestações do público, existe mais alguma coisa sendo feita?
Atualmente, o Ministério Público Federal investiga o caso em detalhes e está tentando reunir todo arcabouço jurídico necessário para pedir o retorno do material oficialmente. Além disso, há mobilizações de cientistas do mundo todo, incluindo da Europa, solicitando a repatriação voluntária do material, que é absolutamente possível e não infringiria a tal convenção da UNESCO, que está sendo usada distorcidamente como “escudo” pelo museu de Karlsruhe.
Afinal, esta é uma luta que vale a pena? A repatriação pode mesmo acontecer?
Os fósseis geram diversos tipos de benefícios. Ajudam na formação de pessoas e na geração de produtos de Ciência e Tecnologia. São suporte para uma educação de qualidade e, quando expostos em museus, têm o potencial de humanizar e entreter as pessoas. Podem também, por meio de ingressos e doações, gerar renda que pode ser revertida para mais financiamento em pesquisa (Ciência) e educação e, por fim, ser uma fonte de renda sustentável e emprego para a população local. Lojas de artesanato e souvenir, restaurantes, pousadas, ambulantes, entre outros, se beneficiam das atividades dos museus. Fósseis brasileiros fora do Brasil não geram esses benefícios por aqui, apenas produzem mais renda para países que já são historicamente ricos. Por essa e muitas outras razões, a luta pelo retorno dos mesmos vale a pena.
Um argumento comum utilizado por pessoas desacreditadas nas instituições brasileiras é que não temos a capacidade de cuidar desses materiais e como exemplo, são citados os museus recentemente destruídos por incêndios. Sobre essa questão, é realmente triste e frustrante pensar no descaso para com os museus e outras instituições semelhantes aqui no Brasil, mas é importante refletirmos sobre origem esse descaso. O próprio sentimento entreguista é um deles. A visão de que só o que existe lá fora é bom, logo não devemos investir para melhorar o que existe aqui, é uma das razões pelo abandono de nossos museus. Muitos brasileiros já visitaram ou citam instituições estrangeiras, mas nunca visitaram um museu por aqui. Temos mais de 50 museus abrigando fósseis no Brasil, sem contar o Museu Nacional. Além desses, dezenas de laboratórios de paleontologia têm coleções de fósseis por aqui. E alguns museus e laboratórios têm uma infraestrutura que não deixa nada a desejar para qualquer instituição estrangeira e até mesmo possuem uma política institucional bem melhor, não baseada no saque.
Sobre a esperança do retorno do fóssil, devemos, como proposto por Gramsci, trabalhar com “pessimismo da razão, otimismo da vontade”. Ou seja, por mais que tenhamos sucesso, a tramitação burocrática para a repatriação desse material pode demorar um pouco. Isso não deve nos frustrar. Além disso, repatriar esse material não dará um fim ao tráfico de fósseis no Brasil, mas, repatriando ou não, teremos enviado uma mensagem poderosa aos apoiadores do tráfico e do colonialismo. E lembrem-se: só precisamos de um precedente para clamar o retorno de diversos outros bens naturais e culturais retirados daqui para que, então, esses voltem a produzir riquezas para o povo desta terra, não de outra.
A mudança só vem através da luta. A tradição imperialista e colonialista se alimenta da desesperança das pessoas, se beneficia do sentimento entreguista, engorda às custas da nossa imobilidade e da cegueira para o futuro. A luta ainda é ferramenta fundamental para derrubar o sistema vigente e tornar as relações entre os países mais igualitárias. A nossa luta não é apenas por um fóssil, ou sequer, por um conjunto de fósseis ou artefatos, a nossa luta é, no fundo, contra a atitude imperialista e todo o colossal aprofundamento da desigualdade causado pelo sistema que o alimenta, o neoliberalismo. Somente com o fim disso é que seremos capazes de vislumbrar um futuro sem exploração e com distribuição de riquezas mais igualitária para todos.
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O post “Um ladrão com velhos hábitos é um ladrão preguiçoso, o caso do fóssil Ubirajara” foi publicado em 14th September 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco