É certo que o governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, irá impulsionar a extrema direita no Brasil, mas para o ex-secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH ) Paulo Abrão os interesses econômicos podem frear ações contra a democracia brasileira.
“Se quiserem seguir tendo influência forte no hemisfério americano, os EUA precisam do Brasil. Embora nada possa ser descartado, não creio que a política externa americana caminhe para um papel intervencionista na América do Sul a ponto de cometer o erro de se imiscuir, enquanto Estado, nas decisões soberanas de um país como o Brasil”, afirmou Abrão.
Em entrevista à Agência Pública, ele analisa as possíveis consequências para o Brasil caso o novo chefe da diplomacia americana, secretário de Estado Marco Rubio, atenda aos anseios da família Bolsonaro para que os EUA comprem a briga contra o Supremo Tribunal Federal (STF ) e o impacto do início da política anti-imigração da nova gestão republicana.
Para ele, há dois caminhos institucionais possíveis ao governo Trump: usar o Congresso americano para dar palanque em defesa dos bolsonaristas; e tentar forçar a CIDH a atuar contra o Brasil, ameaçando cortar o seu orçamento.
Confira os principais trechos da entrevista:
Qual o impacto das deportações violentas na relação Brasil e Estados Unidos? E qual deve ser a resposta do governo brasileiro?
A deportação foi marcada por diversas violações do direito internacional dos direitos humanos e outros documentos internacionais em matéria de imigração, o que exige uma reação contundente de parte não apenas do governo brasileiro, mas também da sociedade civil dos dois países, assim como dos órgãos regionais responsáveis por acompanhar a situação. A convocação de uma reunião da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) é muito positiva para uma resposta coordenada entre os países da região.
A temática migratória exige uma ação regional e não estritamente nacional. O governo brasileiro, além de reportar aos EUA os protocolos que eles devem cumprir em território brasileiro, com base no acordo que assinamos nessa matéria com eles em 2018, deve reforçar os espaços multilaterais para o acompanhamento desse anúncio de deportações em massa que sinaliza uma tendência de violação massiva aos direitos humanos dos migrantes.
O que esperar da relação do secretário de Estado Marco Rubio com o governo Lula, que já foi diversas vezes atacado pelo ex-senador?
Uma coisa é a afinidade ideológica entre a extrema direita do Brasil e dos EUA, entre Trump e Bolsonaro, entre Rubio e os militantes extremistas nos dois países. Outra coisa são os 200 anos de relações de Estado entre as duas maiores democracias das Américas e o comércio bilateral – que é importante para um Brasil que tem os EUA como o principal destino de exportação de seus produtos manufaturados e de um EUA que ocupa, no Brasil, o papel de grande investidor. Veremos o quanto essas duas agendas – a ideológica e a econômica, a discursiva e a pragmática – se misturam e quanto dessa mistura é positiva ou negativa para as relações bilaterais, porque, a despeito de toda retórica inflamada, ninguém quer perder dinheiro e influência, em nenhum dos dois lados dessa relação.
Então, acho que, embora exista uma possível agenda política que pode ser antagônica em relação à agenda de Lula, existe, ao mesmo tempo, uma agenda social e econômica que é importante para as forças empresariais, sociais e produtivas que dão sustentação a esses dois polos. A realidade pode acabar sendo o limitador.
Os bolsonaristas estão articulando para que Rubio atue para libertar os presos acusados de envolvimento nos ataques golpistas do 8 de janeiro e para livrar o ex-presidente Jair Bolsonaro de uma possível prisão. Na sua opinião, os EUA vão embarcar nessa batalha?
Vão embarcar até onde é possível. E será via Congresso americano mobilizando cartas dirigidas ao Departamento de Estado. Ou seja, com declarações públicas e com a realização de audiências públicas no Congresso americano, construindo palanques a partir dos quais possam projetar a própria voz em defesa dos bolsonaristas e também projetar a voz dos bolsonaristas que fugiram para os EUA, temendo processos judiciais. Eles também vão tentar forçar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a atuar contra o Brasil, ameaçando cortar o seu orçamento. Vão querer instrumentalizar a ação especialmente da Relatoria Especial sobre Liberdade de Expressão contra as decisões do STF.
Se houver resposta crítica da CIDH contra o Brasil, devemos nos preocupar de que vão utilizar isso para tentar justificar e aprovar sanções individuais contra autoridades brasileiras no Congresso e que o Departamento de Estado terá que implementar. Fora isso, é difícil imaginar ações concretas que o Departamento de Estado americano possa tomar direta e proativamente para interferir nos processos judiciais legítimos contra os que tentaram um golpe de Estado aqui no Brasil. Os EUA não têm, afinal, nenhuma ingerência substantiva no Judiciário brasileiro.
No limite, se quisermos ser criativos e especular a respeito de tudo o que pode ocorrer, hipoteticamente? Os EUA poderiam recorrer até a embargos e sanções ao Brasil – como fazem para pressionar governos como os do Irã e da Venezuela –, mas não existe a mínima sinalização hoje de que essa questão esteja sobre a mesa, por mais que esse seja o sonho molhado dos extremistas brasileiros.
Na sua opinião, a briga do dono da rede X, Elon Musk, com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes pode influenciar a atuação de Marco Rubio a favor do bolsonarismo?
Sim, porque Musk agora é membro do governo Trump. As opiniões do homem mais rico do mundo são agora posições de Estado. Então, é natural supor que essas linhas se comuniquem dentro do novo governo americano. A questão é que as razões de Estado transcendem as preferências desses personagens excêntricos e voluntariosos. Eles terão de ver como suas ambições pessoais político-ideológicas conversam ou não com a pauta econômica e social entre os dois países e com o papel que os EUA querem desempenhar no mundo, de maneira mais ampla.
Se quiserem seguir tendo influência forte no hemisfério americano, os EUA precisam do Brasil. Embora nada possa ser descartado, não creio que a política externa americana caminhe para um papel intervencionista na América do Sul a ponto de cometer o erro de se imiscuir, enquanto Estado, nas decisões soberanas de um país como o Brasil.
Quando Jair Bolsonaro foi eleito, Rubio escreveu um artigo na CNN com o seguinte título: “EUA devem investir pesado no Brasil”. Ele justifica o argumento da seguinte forma: “Um Brasil forte, vibrante e democrático, mais alinhado aos Estados Unidos como parceiro estratégico, pode ser um multiplicador de forças para enfrentar a crise atual na Venezuela […] e para combater as intenções malignas de regimes autoritários como China, Rússia e Irã, que pretendem expandir sua presença e atividades na América Latina”. Você acredita que esses continuam sendo os principais interesses dele no Brasil?
Certamente, a situação na Venezuela e a influência chinesa – e um pouco também russa – estão no topo das prioridades americanas no que diz respeito à América Latina. Em relação à Venezuela, o Brasil tem sido um agente de distensão e diálogo, com inédita postura oficial crítica. Tem sido um aliado dos que apoiam a democracia na Venezuela e que buscam formas de fazer com que Maduro se atenha às normas democráticas e ao estado de direito.
Obviamente que cada país tem sua forma de atuar. Os EUA usam medidas coercitivas de muita força, como os embargos e sanções unilaterais. O Brasil faz críticas públicas e gestos diplomáticos de desaprovação, mas busca manter uma janelinha aberta para o diálogo, sem o qual não haverá transição. São posições complementares.
Já sobre a China, é uma questão global, pois os chineses não buscam ampliar seus negócios apenas na América Latina e no Brasil, mas no mundo todo. Essa é, na verdade, a grande questão para um país como os EUA, que buscam manter a hegemonia ocidental conquistada desde o fim da Guerra Fria.
Quais pontos você destacaria que serão os principais focos de atuação de Marco Rubio no Brasil?
Certamente, a questão migratória e a OEA [Organização dos Estados Americanos]. A mudança na política americana nesse quesito provocará impacto na comunidade brasileira que vive nos EUA, e esse deve ser um dos pontos de tensão na agenda, pois, se bem é certo que os americanos tenham a prerrogativa de decidir sobre suas políticas migratórias, é igualmente certo que essas políticas não podem estar por cima dos direitos humanos e de tratados que regulam a questão. Teremos embates nesse campo.
A sucessão na Secretaria-Geral da OEA é chave para uma política externa agressiva dos EUA na região, especialmente contra Cuba, Venezuela e Nicarágua. Estarão de olho na Bolívia de novo. O atual secretário geral, Luís Almagro, foi totalmente alinhado à política exterior do primeiro governo Trump. Eles exigirão outro perfil aderente. Além disso, teremos mudanças, certamente, em duas outras áreas: meio ambiente e democracia. Em ambas as agendas, as posições de Rubio serão mais afinadas às posições de Trump.
Na sua visão, o governo de Donald Trump vai impulsionar a extrema direita brasileira?
Absolutamente, sim. Na verdade, já estão fazendo. Imagine que Steve Bannon [ex-estrategista de Donald Trump], um dos homens fortes da extrema direita americana, anunciou Eduardo Bolsonaro como um dos homens mais importantes do movimento de extrema direita no mundo, nas palavras dele. Então, claro, são grupos que conversam e se impulsionam. Um governo que nasce aliado com os donos das grandes redes sociais, como com Musk e Zuckerberg, vai fazer de tudo para impulsionar mensagens propagandísticas sobre esse setor, carregadas de mentiras sobre o que acontece no Brasil. Não querem ser regulamentados e submeter-se a nenhuma norma civilizada. Essa é uma luta entre Estados versus oligarquias. Não há a menor dúvida que isso vai ser impulsionado.
Na sua avaliação, existe a chance de ocorrer no Brasil uma nova tentativa de golpe com apoio de Donald Trump?
É cedo pra dizer. Trump anistiou os envolvidos na tentativa americana de golpe de Estado, e Bolsonaro busca fazer o mesmo no Brasil. Ou seja, não há nenhuma autocrítica nesse setor. Na verdade, tudo indica que, se tiverem a chance, os bolsonaristas vão redobrar a aposta golpista. É parte do seu DNA autoritário.
Na sua opinião, o governo Trump irá atuar para eleger um candidato da extrema direita no Brasil em 2026?
Não sei se o governo, organicamente falando. Mas é certo que setores políticos dos Estados Unidos que estarão no poder apoiarão o Bolsonarismo. Moverão toda a máquina das big techs nessa direção. Vão gerar o caos comunicacional e vão manipular a opinião pública contra as esquerdas e em favor da candidatura de extrema direita, seja ela qual for.
A diplomacia democrática e a sociedade organizada têm que trabalhar intensamente para que os EUA voltem a usar o seu poder para erosionar, sabotar e manipular a política nos países da região de forma muito agressiva. Isso ocorre agora por outros meios, como no caso da aliança com as oligarquias das big techs, mas, no fundo, é a mesma truculência de outrora.
Fonte
O post “Trump vai tentar usar Comissão Interamericana contra o Brasil, avalia ex-secretário” foi publicado em 30/01/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública