O rio São Francisco que flui no sentido geral sul-norte a partir de sua nascente em Minas Gerais, curva abruptamente para leste em seu curso médio na Bahia. O rio, que num passado geológico remoto continuava a correr na direção do norte e desaguava no que seria o litoral do Piauí, foi barrado pelo soerguimento de chapadas sedimentares como a Chapada do Araripe, formando um grande sistema lacustre, até que rompeu estes obstáculos correndo para leste e abriu caminho pelas rochas fraturadas do Cráton do São Francisco (assoalho da crosta terrestre antigo e estável onde não se verifica grandes movimentos tectônicos), esculpindo seu curso num profundo cânion de 60 quilômetros logo após desabar na Cachoeira de Paulo Afonso.
A imensa cachoeira atraiu a atenção de muitos aventureiros, cientistas e autoridades no século XIX como o explorador Richard Burton e o próprio Imperador D. Pedro II. Esta maravilha da natureza motivou a criação de um parque nacional em 1948, que foi extinto em 1969 para a implantação de um complexo hidrelétrico. O belo cenário dos cânions recebeu nova proteção em 2009, com a criação do Monumento Natural do Rio São Francisco na divisa dos estados de Alagoas, Bahia e Sergipe.
A atividade econômica da região dinamizou-se com a criação da Fábrica da Pedra por Delmiro Gouveia em 1912. Este empreendedor construiu a primeira hidrelétrica da região em 1913. Trinta e cinco anos depois, em 1948, o governo brasileiro criou a Companhia Hidrelétrica do São Francisco para aproveitar a energia da cachoeira de Paulo Afonso, construindo várias hidrelétricas nos anos subsequentes.
A região também ficou famosa por ser palco privilegiado da ação dos cangaceiros de Lampião. Aqui o notável capitão recrutou muitos jovens para o seu bando e encontrou o grande amor de sua vida: Maria Bonita, nascida e criada nestas caatingas. O emblemático casal e mais alguns companheiros de bando encontraram a morte trágica na Grota do Angico, em 1938.
O Monumento Natural, além das águas do rio e de seus impressionantes cânions, se destaca ainda pela rica biodiversidade e pelos inúmeros sítios arqueológicos com pinturas rupestres datadas de mais 10 mil anos. A unidade de conservação é provida de estrutura para visitação ofertada pela iniciativa privada, que proporciona desde passeios de catamarã e práticas de esportes radicais até caminhadas nas trilhas interpretativas. Desde 2017 é feito o monitoramento da atividade turística, ano em que ocupou a 7ª posição – entre as 334 unidades de conservação federais do país –, com mais de 318 mil entradas de visitantes. Em 2019, a área protegida alcançou a marca de 713 mil visitas e ocupou a 6ª colocação no ranking.
Todo este conjunto de atrativos motivou a criação da uma trilha de longo curso que pudesse se conectar a um caminho maior que acompanha todo o percurso do Velho Chico. Como chefe do Monumento Natural, a ideia nasceu quando percebi a necessidade de sinalizar as trilhas já existentes na região. Solicitei apoio à Coordenação de Uso Público do ICMBio no final de 2017 e, já em em agosto de 2018, promovemos a 1ª Oficina de Implantação e Manutenção de Trilhas do Baixo São Francisco – Módulo Sinalização, ministrada por Pedro da Cunha Menezes. Nesta ocasião foram sinalizados 5 km da recém-criada Trilha dos Cânions e foi projetada sua pegada (e logotipo) que é marcada por uma ave em voo, uma pintura rupestre encontrada na região dos cânions, e um mandacaru, cactácea característica da vegetação da Caatinga.
Desde então, a Trilha dos Cânions segue em implantação, com outros 8,5 km sinalizados em 2021, e com previsão de completar 20 km em 2022. No traçado foram aproveitados caminhos utilizados pelas comunidades e povos tradicionais da região há séculos. O objetivo é implementar novos trechos da trilha até completar o percurso dos cânions e fazer a conexão com a Trilha do Trem em Piranhas (no percurso da antiga estrada de Ferro Paulo Afonso) e a Trilha dos Canoeiros em Pão de Açúcar, ambas em Alagoas.
Quando estiver totalmente implantada, a Trilha dos Cânions poderá proporcionar de 6 a 8 dias (cerca de 80km) de caminhada, com trechos terrestres e aquáticos (feitos tanto com pequenos botes quanto com a tradicional canoa de tolda) em ambas as margens do São Francisco. Um percurso que valoriza os atributos cênicos, culturais, históricos e culinários da região em que está inserida.
No contexto da Rede Brasileira de Trilhas, a “Trilha dos Cânions do São Francisco” será considerada uma trilha regional que, em conexão com outras trilhas regionais a serem implementadas, comporá uma trilha de longo curso de nível nacional. O objetivo é integrar estas trilhas no conjunto principal da grande Trilha Velho Chico para conectar as unidades de conservação federais, estaduais e municipais além de RPPNs e outros pontos de interesse, desde a nascente do rio até sua foz.
Assista a live da Rede Brasileira de Trilhas em parceria com ((o))eco sobre a Trilha do Velho Chico:
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O post Trilha dos Cânions do São Francisco: natureza, cultura e história no sertão que virou mar apareceu primeiro em ((o))eco .
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O post “Trilha dos Cânions do São Francisco: natureza, cultura e história no sertão que virou mar” foi publicado em 27th August 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco