Terça-feira passada foi inaugurada no centro de São Paulo o “Touro de Ouro”, uma enorme estátua feita pelo artista plástico e arquiteto Rafael Brancatelli sob encomenda para a B3 (que, fiquei sabendo agora, antes se chamava Bovespa).
Um dos faria limers responsáveis pela instalação da estátua de uma tonelada em fibra de vidro tem um programa na Jovem Klan em que ele grita “Vai, tourinho!” quando a bolsa sobe, se eu entendi direito. Esse cidadão de bens vê a escultura como um presente para SP e diz que esculturas de touro “representam o otimismo com o mercado financeiro”.
Otimismo de quem? Na Praça da Sé, a 350 metros da frente do edifício da Bolsa de Valores, famílias sem teto dormem em barracas. Na bolsa, agora adornada por um bezerro de ouro, homenageia-se o deus mercado.
Já que o touro é visto como símbolo do capitalismo, não tem como a estátua não representar a desigualdade econômica e social no país. No dia seguinte à inauguração, os movimentos Fogo no Pavio e Raiz da Liberdade colaram um cartaz escrito “Fome” na escultura. Segundo a integrante Tabata Luz, o protesto foi “um recado direto ao governo Bolsonaro e a toda a elite brasileira que sustenta o presidente”. Em setembro, manifestantes do MTST (Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto) e da Frente Povo Sem Medo já haviam protestado contra a fome, ocupando o saguão da Bolsa.
Na quinta, o movimento Juntos fez um escracho, colando lambes de “taxar os ricos” na estátua e lançando a campanha “Nem a fome, nem os bilionários deveriam existir: taxar os ricos para combater a crise”. À noite, a ONG SP Invisível distribuiu churrasquinhos em frente à estátua.
Guilherme Boulos, candidato do Psol ao governo de SP, entrou com uma ação popular pedindo que a prefeitura retire o touro. Para ele, o espaço público está sendo usado indevidamente. Mesmo assim, a escultura tem autorização para ficar no local por apenas três meses. Até lá, suponho que seja palco de protestos diariamente.
Muita gente anda dizendo que o Touro de Ouro é uma cópia da famosa “Charging Bull” (touro em investida), colocada clandestinamente em Wall Street, Nova York, em dezembro de 1989 pelo escultor Arturo Di Modica (que morreu em fevereiro). Tanto que a família do escultor parece estar pensando em processar o escultor brasileiro.
Para O Partisano , “Deve ser algum tipo de humor inglês, pois o boi brasileiro claramente não é uma réplica do estadunidense – como aliás o próprio Brancatelli faz questão de reforçar. Feito com estrutura de aço e fechamento de fibra de vidro pintada de dourado, o bicho de uma tonelada lembra mais um boneco de carrossel que o Charging Bull de Wall Street. Nada da sutil musculatura e as costelas visíveis produzidas pelo siciliano: em seu lugar uma massa amorfa. Os chifres estão na horizontal, ameaçando os olhos dos transeuntes; o rabo apoiado no costado – provavelmente por falta de estrutura – parece espantar moscas e não ensejar um ataque; os glúteos avantajados dão a entender que o animal era frequentador de alguma academia de Faria Limers; curiosas argolas próximas aos cascos, nas quatro patas, lembram mais uma tornozeleira da Polícia Federal que os mocotós de um bovino saudável; a feição apaspalhada de quem ouviu uma piada e não entendeu talvez remeta à mentalidade de seus idealizadores”.
A escultura de Wall Street rapidamente se tornou uma atração turística. De tanto serem esfregadas, as bolas do touro já mudaram de cor. Alguma superstição promete que tocar os testículos de um boi traz prosperidade. Por aqui, já pipocam fotos de pessoas sem a menor vergonha com as mãos no saco do touro de ouro.
E lógico que o touro de Wall Street coleciona protestos anticapitalistas. Aliás, um dia antes da inauguração da estátua dourada em SP, o movimento Occupy Wall Street, que reuniu milhares de pessoas em vários lugares do mundo para protestar contra a ganância e corrupção, com aquele slogan bacana do “Nós somos os 99%”, completou dez anos .
Em 2019, ambientalistas jogaram sangue falso no touro de Wall Street, e uma manifestante do grupo Extinction Rebellion ficou de pé na estátua com uma bandeira verde. O protesto reproduziu um cheque de vinte bilhões de dólares, simbolizando como o mercado financeiro tem subsidiado a indústria petroleira.
Mas meu protesto favorito contra o touro nova-iorquino nem é um protesto de fato.
Em 2017, na véspera do Dia Internacional da Mulher, surgiu em frente ao “Charging Bull”, também ilegalmente e de surpresa, uma estátua de um metro de uma menina que ficou conhecida como “Garota Destemida”. Di Modica não gostou nada da escultura feita por Kriten Visbal e disse que ela “distorcia a impressão” da sua arte.
Apesar da beleza e simbologia da estátua da garota (uma corajosa menininha de um metro enfrentando um touro gigantesco), a Menina Destemida é uma peça publicitária do próprio mercado, criada por um empresa do ramo financeiro para incentivar a entrada de mulheres nos negócios. Ou seja, um exemplo do capitalismo se apropriando do feminismo. A estátua ficou treze meses encarando o touro, e depois foi recolocada a três quadra de distância — já fazia três anos que ela não desafiava mais o touro. Sua licença expira agora, em 29 de novembro, e a prefeitura de NY ainda tem que decidir se vai deixá-la lá, colocá-la em outro lugar, ou despejá-la de vez .
Independente da intenção original de seus autores, estátuas representam coisas, pessoas, ideologias. No Brasil de Bolsonaro, cada vez mais afundado na miséria, em que os pobres comem ossos e pés de galinha, uma cafona estátua dourada lembra demais o gado que idolatra o falso messias.
Sem falar que este deve ser o pior timing possível para se fazer uma homenagem ao capitalismo. O planeta inteiro empobreceu com a pandemia (que ainda não acabou), mas a concentração de renda só aumentou. Os bilionários não faliram. Pelo contrário , lucraram com a desgraça alheia. No Brasil, o 1% mais rico era dono de 46,9% das riquezas do país antes da pandemia. Agora, é dono de 49,6%, praticamente a metade. É exatamente isso que o touro dourado celebra.
O post “TOURO DE OURO, OURO DE TOLO” foi publicado em 22nd November 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva