Hoje mais de vinte organizações divulgaram uma
nota coletiva em apoio à jornalista
Schirlei Alves , que responde a seis processos judiciais e a três ações criminais, o que é conhecido como assédio jurídico ou processual.
Pra quem não sabe ou não lembra, Schirlei foi a jornalista responsável por relatar o que estava acontecendo no caso Mariana Ferrer longe do público (a influenciadora Mari denunciou ter sido dopada e estuprada no Café de La Musique de Florianópolis em 2018; o acusado foi absolvido em primeira e segunda instâncias por “falta de provas”, num caso em que o que não falta são provas).
Schirlei já tinha mais de
doze anos de atuação como jornalista quando cobriu o caso Mari Ferrer. Pouco depois de seu artigo sair (sem o vídeo da audiência) no pequeno jornal catarinense
Nd+ e ter repercussão nacional, ela foi demitida. Foi aí que publicou a matéria no
Intercept, com o vídeo de uma audiência online em que Mari foi ofendida e humilhada pelo advogado de defesa Gastãozinho, sem que o juiz ou o promotor fizessem qualquer coisa para impedi-lo.
Os artigos de Schirlei em 2020 usavam a expressão “estupro culposo”, que a extrema-direita (que até hoje faz campanha contínua contra Mari Ferrer e muitas outras vítimas de estupro) classificou de fake news. Mas a sentença que absolveu o acusado usa como exemplo o caso de homens que se relacionaram com meninas menores de 14 anos (considerado estupro de vulnerável pela lei) “sem saber” que elas eram menores! Em outras palavras: o cara estuprou, mas sem intenção. Uma passação de pano para todos os pedófilos.
Essa justificativa foi usada no caso Mari Ferrer. Está nos autos. E chama a atenção que o pessoal ficou revoltado com a expressão
“estupro culposo”, não com a justificativa em si. O promotor (que deveria defender a vítima, não o acusado) argumentou que o acusado não sabia que Mari estava dopada. Não existe condenação na justiça brasileira por estupro culposo (sem intenção), só para estupro doloso (com intenção). Aos olhos leigos de quem tem certeza que a Justiça protege a elite, criaram uma artimanha para absolver um empresário rico.
A campanha contra Mari (feita à base de muitos robôs, não sabemos pagos por quem) virou também uma campanha contra Schirlei, que foi atacada de todas as formas na internet. Em dezembro de 2020, mais de
50 entidades que defendem a liberdade de imprensa repudiaram as ameaças contra Schirlei.
O trio formado por juiz, promotor e advogado de defesa ficou furioso porque a audiência do julgamento foi vazada. Parece que o judiciário não quer transparência. Quer que vítimas de estupro e assédio sejam tratadas como culpadas pelos crimes que sofreram. O segredo de justiça segue sendo usado como ferramenta contra as vítimas, e contra quem apoia as vítimas.
O juiz Rudson Matos e o promotor Tiago Carriço de Oliveira, de Santa Catarina estão pedindo, respectivamente, R$ 450 mil e R$ 300 mil do Intercept (em ação conjunta contra Schirlei). Não sei quanto Gastãozinho quer. Mas o assédio judicial tem como objetivo o silenciamento através da
asfixia financeira .
Olha, tá tudo dominado. Tudo isso ocorre num estado que, de tão conservador, vem sendo apelidado de “Texas do Sul”. Um estado cuja Câmara de Vereadores da capital, pela segunda vez, recusou dar o título de cidadão honorário a Gilberto Gil.
Um dia antes, a mesma Câmara havia acabado de aprovar que a deputada estadual
mais bolsonarista do Estado, Ana Campagnolo, receba a medalha Antonieta de Barros. A Câmara ainda vai homenagear outras deputadas de extrema-direita.
Filha de escravos, a professora e jornalista Antonieta foi a primeira mulher negra eleita no país. Uma medalha em sua homenagem foi instituída em 1997. Hoje ela é usada para
premiar deputadas misóginas , antifeministas, anti-movimento negro, anti-direitos humanos.
Campagnolo, que tem como advogado o mesmo Gastãozinho que processa Schirlei, já declarou que mulheres devem ser submissas aos seus pais e maridos e não trabalhar fora. Aí a gente fica sem entender o que ela está fazendo ali na assembleia. Mas é fácil saber: a bolsonarenta foi a principal responsável pela abertura de uma CPI feita sob encomenda para punir as jornalistas do
Intercept e do
Portal Catarinas , que publicaram matérias sobre uma
menina de 11 anos grávida que foi mantida num abrigo por uma juíza e promotora para
não poder abortar .
Sem dúvida processos são uma forma eficaz de intimidar a imprensa. A nota de hoje diz: “As entidades confiam que os casos serão apreciados com imparcialidade e à luz da liberdade de expressão e de imprensa. E que não há outro caminho que não a rejeição das queixas criminais movidas contra a repórter. É inadmissível que uma jornalista no exercício da sua profissão, relatando um assunto de interesse público, seja considerada responsável por ofender a honra dos funcionários públicos e do advogado envolvidos no caso”.
Se não fossem as corajosas jornalistas do
Catarinas e
Intercept, a menina de 11 anos teria sido mantida presa num abrigo até parir. Nós nem saberíamos do caso. Se não fosse Schirlei Alves (e, lógico, toda a luta incansável de Mari), não teríamos hoje a lei no. 14.425/2021, a
Lei Mariana Ferrer, que impede que vítimas de crimes sexuais sejam humilhadas em audiências. A lei
é importantíssima e vem sendo usada em todos os cantos do país desde sua aprovação.
Eu fui uma das que assinei as notas em apoio a Schirlei em 2020
e agora . Espero que possamos comemorar juntas quando essa injustiça flagrante, esse ataque misógino à liberdade de imprensa, seja finalmente arquivado.