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Não há espaço para teorias da conspiração na análise do tarifaço decretado por Donald Trump contra o Brasil. A carta enviada pelo presidente dos Estados Unidos ao presidente Lula deixa escancarada a motivação da punição comercial: interferir na Justiça e na política brasileira, imiscuindo-se no julgamento do golpe contra a democracia e em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e ilegalidades praticadas pelas big techs.
A carta de Trump concentra-se nesses pontos, enquanto as alegações de que o Brasil estaria prejudicando comercialmente os Estados Unidos, comprovadamente falsas, servem apenas de pretexto para o presidente americano usar o único instrumento de política externa que parece conhecer: a aplicação de tarifas, como observou o professor Tomaz Paoliello, coordenador do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP, em entrevista ao podcast Bom Dia, Fim do Mundo sobre o encontro do Brics, gravada na terça-feira passada.
O que significa, de forma inequívoca, que esta é a mais grave tentativa de interferência dos Estados Unidos em nossos assuntos internos – de processos criminais às eleições – desde o golpe de 1964. E o governo brasileiro tem se comportado de maneira correta diante da agressão, mesmo que as medidas estudadas até agora não sejam suficientes para fazer os EUA recuarem do tarifaço, previsto para 1 de agosto.
Os leitores da Agência Pública vêm acompanhando há tempos as articulações de Eduardo Bolsonaro junto à extrema-direita americana para sabotar a Justiça brasileira e livrar a cara do pai, inelegível e ameaçado de cadeia, no processo que investiga a tentativa de golpe no STF. Entre as iniciativas do filho 03 de Jair Bolsonaro figuram comitivas de parlamentares brasileiros aliados ao Congresso americano e, mais recentemente , ao Departamento de Estado, com o objetivo de articular punições ao ministro Alexandre de Moraes.
Uma retaliação em que os interesses políticos do ex-presidente brasileiro e do atual presidente americano se misturam perigosamente aos das big techs, aliadas de Trump (sobre isso veja a reportagem de Natalia Viana, publicada ontem).
O momento da carta enviada por Trump, porém, coincide com outro movimento, este por parte do governo brasileiro, como líder do Brics e presidente da COP, a Conferência do Clima, da qual Donald Trump se retirou. Tanto é que, no início da semana, logo depois do encontro do Brics no Rio de Janeiro, Trump já havia falado em 10% de tarifa extra para países que apoiassem “as políticas anti-americanas” do Brics, como negociar em outras moedas que não o dólar. No mesmo dia, o presidente americano também disse estar de olho no Brasil pela suposta “caça às bruxas” da qual Jair Bolsonaro seria vítima.
Ambas as ameaças foram publicadas por Trump em suas redes sociais e se tornaram perguntas para Lula na coletiva que o presidente brasileiro concedeu no encerramento do Brics, na segunda-feira passada. “Eu acho que é muito errado e muito irresponsável um presidente ameaçar os outros nas redes digitais”, respondeu Lula aos repórteres. “Ele precisa saber que o mundo mudou. Não queremos um imperador”.
Ontem de manhã, voltei a procurar o professor Paoliello para perguntar se a retaliação tarifária ao Brasil também estaria relacionada ao papel do país como articulador e defensor do multilateralismo, tema de nossa conversa no podcast. “Em relação ao Brics, não acredito, talvez mais como reação às respostas de Lula na coletiva”, ele disse, mas destacou: “Acho que se o Lula não tivesse falado nada, viria essa tarifa do mesmo jeito. Mas o tom da carta e a velocidade em que veio acho que tem a ver com isso sim. Inclusive é importante dizer que outros membros do Brics já tinham recebido essa cartinha de Trump, meio padrão, sobre as tarifas, mas com alíquotas menores. Nesse caso, não é uma medida contra o Brics, mas especificamente contra o Brasil, de maneira focada”.
O mais grave, como lembrou Paoliello, é que as instituições multilaterais estão tão enfraquecidas que o Brasil não tem a quem recorrer diante desse abuso evidente de poder pelos Estados Unidos. A inatividade da Organização Mundial do Comércio (OMC) para arbitrar os sucessivos ataques ao livre comércio ou reprimir o uso de tarifas com motivação política, o que também é proibido pelas regras do comércio internacional, e a irrelevância da ONU para punir países que cometem crimes de guerra ou violam a soberania de outros países, caso do ataque de Trump ao Brasil, não nos dá outra alternativa a não ser reagir por conta própria e fortalecer as relações com outros países, como já estamos fazendo.
Para isso, Lula deve ter o apoio da população, que tende a se identificar com o governo na reação à agressão dos EUA, o que pode fazer a jogada política de Trump e Bolsonaro sair pela culatra. Afinal, até o Estadão escreveu editorial qualificando a trama de “coisa de mafiosos” e criticando os defensores brasileiros de Trump, inclusive citando nominalmente o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, político que o jornal costuma apoiar.
Apesar do impacto negativo inevitável sobre a economia brasileira, a postura firme contra a ingerência dos Estados Unidos por parte do governo, respaldada pela população, e o fortalecimento da aliança com novos parceiros pode trazer novos horizontes, não apenas para o Brasil, mas para as economias emergentes reunidas no Brics – incluindo novas potências como a China –, como explicou o professor Paoliello.
“Há uma percepção de que não se deve contar com os Estados Unidos, que dali não vai sair muita coisa do ponto de vista de cooperação, de desenvolvimento de novas iniciativas. Então, tem uma corrida geral, inclusive de aliados históricos dos Estados Unidos que estão em maus lençóis agora, como o México, o Canadá, os países europeus, na busca por novas parcerias. Quer dizer, vai vir gente batendo na porta do Brasil, querendo ter acesso a esse nosso mercado interno, que é enorme, aos recursos naturais brasileiros. E eu acho que o Brics, nesse contexto, também tem uma oportunidade. A própria expansão dos Brics, por iniciativa da China, já demonstrou um pouco isso. Quer dizer, trazendo mais países para dentro, se expandindo, potencialmente também virando um fórum de cooperação em outras áreas, além do que já tem de cooperação econômica.”
Há um vasto mundo para além dos Estados Unidos de Trump assim como existe patriotismo no Brasil sem a manipulação de Bolsonaro. É hora de acreditar que um outro mundo é possível.
Fonte
O post “Tarifaço de Trump contra Brasil é pura interferência política” foi publicado em 11/07/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública