Mudanças nas regras para viagens têm prejudicado ainda mais o trabalho da Fundação Nacional do Índio, a Funai, junto aos povos indígenas, relatam servidores ouvidos pela Agência Pública. Portarias publicadas no Diário Oficial da União e ofício disparado internamente em outubro determinam que os deslocamentos sejam autorizados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública ou pelo presidente da fundação, conforme o caso. De acordo com os funcionários, a burocracia e lentidão do processo atrapalham o fluxo de trabalho, sobretudo nas Coordenações Técnicas Locais (CTLs) e nas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs), que atuam diretamente com as comunidades indígenas.
Segundo uma servidora lotada em unidade na Amazônia, a situação já tem afetado as populações indígenas, que demoram mais a receber o atendimento de que necessitam. “É um mês que a gente fica parado porque não podemos fazer deslocamento, temos que aguardar a autorização”, declara. “Pra gente que está na ponta, é um fluxo de burocracia que trava.” A reportagem preservou a identidade de todos os servidores ouvidos já que, em agosto, um memorando instituiu que qualquer interação com a imprensa deve também passar pelo crivo da sede da Funai, em Brasília.
A primeira portaria lançada do DOU e assinada pelo ministro Sergio Moro , no último dia 9, designou a Luiz Pontel de Souza, Secretário-Executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a responsabilidade de autorizar a concessão de diárias e passagens aos servidores da Funai. O texto permite a Pontel subdelegar a função, exceto em casos de viagens com mais de dez dias seguidos, que envolvem o transporte de mais de dez pessoas ao mesmo evento ou cujo solicitante houver ultrapassado o limite de quarenta diárias intercaladas ao ano. Em portaria no dia seguinte , Pontel atribuiu ao presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, a autorização de viagens que não se enquadram nesses casos.
Uma semana depois, em 17 de outubro, Xavier enviou explicações mais detalhadas sobre como as solicitações de autorização de deslocamento deveriam ser feitas . O documento, endereçado aos coordenadores regionais (responsáveis pelas CTLs), ao diretor do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e aos gestores das três grandes diretorias da Funai, adiciona outras duas situações ao rol de viagens cuja permissão deve ser dada pelo Ministério da Justiça: quando o pedido for feito a menos de dez dias da data de partida e quando os dois trechos somados ultrapassarem o valor de R$ 2 mil.
O texto estabelece que todas as solicitações devem ser realizadas com vinte dias úteis de antecedência – as viagens sem permissão estão proibidas. Destaca ainda que o “planejamento e a antecedência” na realização dos pedidos podem trazer economia aos cofres públicos e que os dirigentes devem avaliar a relevância dos deslocamentos, “levando-se em consideração os estritamente necessários à continuidade dos serviços”.
Foram anexados ao ofício dois fluxogramas com o passo a passo dos processos de deliberação tanto da presidência da Funai quanto do Ministério da Justiça. Em ambos os casos, o pedido deve ser formalizado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) junto a um plano de viagem ou ordem de serviço. Só então, com a manifestação favorável da autoridade responsável, ele pode ser lançado no Sistema de Concessão de Diárias e Passagens (SCDP), seguindo então para nova aprovação superior, condição para que seja analisado pelos ordenadores de despesas.
Servidores entrevistados pela Pública contam que antes o processo era bem mais simples. Para deslocamentos com até dez dias, só era necessária a assinatura do superior imediato e do coordenador regional no plano de viagem. “Depois, todos os trâmites para o pagamento das diárias eram no setor de pessoal da própria coordenação regional. E isso levava um ou dois dias”, explica o funcionário de uma CTL na região Sul. Mesmo para as viagens mais longas, ou para servidores que já tinham gasto 40 diárias, a burocracia era menor. “Em geral, o coordenador regional autorizava a viagem e o presidente da Funai apenas convalidava. Basicamente, era uma formalidade burocrática. Não tínhamos problemas com isso”, explica outra funcionária da Amazônia, no Norte do país.
Tentativa de controle
Mais do que contenção de gastos, os funcionários ouvidos pela Pública encaram as novas regras como uma tentativa de controle do trabalho realizado diretamente com as comunidades indígenas. “Sinto que há uma postura de desconfiança em relação a certos órgãos – Funai, Incra, Ibama –, com quem trabalha com meio ambiente ou com pessoas em situação de vulnerabilidade e que clamam pela diferença. A gente vê que há o interesse de controle e até de desqualificação do órgão dentro do próprio governo”, avalia uma servidora do Centro-Oeste. “É desmotivador, você se pergunta ‘por que estou me desgastando?’. Estamos ficando loucos para fazer o que a instituição em si parece não estar interessada. Parece que é quase interesse pessoal seu que as coisas aconteçam na Funai.”
A exigência de que as viagens sejam solicitadas com 20 dias úteis de antecedência é apontada como um dos maiores problemas, já que as novas regras não são claras quanto aos procedimentos em caso de deslocamentos urgentes. Questionada, a Funai não se manifestou sobre esse assunto ou respondeu às demais perguntas da reportagem.
“De todas as atividades da Funai, as que sofrem maior impacto são as atividades de fiscalização e gestão territorial, até porque a gente não trabalha sozinho, atuamos junto aos órgãos ambientais que têm suas próprias agendas. Às vezes, são situações de fiscalização ou de combate a um dano ambiental em que é necessária uma atuação rápida, não se pode esperar vinte dias úteis”, explica uma das funcionárias que trabalha na Amazônia. Ela diz que, em sua Coordenação Regional, as atividades de fiscalização e gestão territorial no combate à exploração ilegal de madeira ou garimpo ficaram “praticamente paralisadas”. “Estou dando margem para que invasores entrem em terras indígenas porque tenho que obedecer a um fluxo de vinte dias. Mesmo que eu alegue que é uma urgência, vai ser muito mais difícil que a presidência analise meu processo.”
Alguns servidores acabam viajando mesmo sem autorização para não interromper a rotina de trabalho. Um deles, que atende povos indígenas em três municípios da região Centro-Oeste, diz que teve de recorrer a essa alternativa. “As entregas de cestas [básicas] só foram realizadas porque peguei carona com um caminhão que estava indo para a aldeia prestar outro serviço. Não pude usar a viatura oficial nem comunicar oficialmente do deslocamento”, contou à Pública. Ele contesta o entendimento de que todo deslocamento está atrelado à concessão de diárias, como está expresso no ofício enviado aos servidores em 17 de outubro.
A combalida Funai
O contingenciamento de recursos da Funai desde o início do governo de Jair Bolsonaro, como a Pública já havia demonstrado em janeiro , não é novidade para servidores e muito menos para povos indígenas. Dos R$ 65,9 milhões previstos este ano para as cinco ações finalísticas do órgão – ou seja, as que visam diretamente ao atendimento às populações indígenas, sem contar valores destinados às áreas administrativas –, apenas R$ 16,1 milhões foram executados até agora, o que equivale a 24,4% do orçamento aprovado para 2019. Novos cortes se anunciam: segundo nota técnica da organização Indigenistas Associados (INA), o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2020, apresentado pelo governo ao Congresso, determina uma diminuição de 40% das verbas às ações finalísticas da Funai.
A falta de recursos é apontada pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) como uma das razões para os ataques que vêm sofrendo as bases da fundação na terra indígena localizada no oeste do Amazonas – o último deles ocorreu na madrugada de domingo (3), quando caçadores e pescadores ilegais teriam atirado contra a base do rio Ituí de dentro de um barco. Segundo a Univaja, esse é o oitavo ataque em um ano no território, o quarto somente à base do rio Ituí, que poucos dias antes, na quinta-feira (31), havia sofrido outro atentado.
O Vale do Javari é a segunda mais extensa terra indígena demarcada do país, perdendo apenas para a TI Yanomami. Em seu território, segundo a Univaja, há registros de pelo menos 16 povos isolados – em nenhum outro lugar do Brasil essa quantidade é tão alta –, além de outros sete povos com diferentes graus de contato com a sociedade não indígena. Beto Marubo, uma das lideranças da Univaja, chama de burocracia as novas regras para deslocamento. “Engessaram totalmente os trabalhos da Funai, ela não consegue fazer absolutamente nada”, diz. “O que a gente percebe é que essas providências que vêm sendo tomadas internamente à Funai são para enfraquecer o próprio órgão, para que ele não funcione de fato. Que funcionário não vá a campo, que o próprio órgão não consiga fazer nada e que isso justifique, num futuro próximo, sua extinção.”
Morubo explica que a proteção dos povos indígenas habitantes do Vale do Javari depende da atuação da Funai. “Se ela não funciona lá, precariza, e a tendência é a gente ver conflitos entre índios e invasores. Além disso, temos os isolados, que não têm nada a ver com essa história e podem morrer por uma gripe – uma gripe pode levar ao genocídio de uma etnia inteira.”
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