Só anteontem entendi por que andava recebendo emails dizendo que, como eu era alvo de muitos ataques, ele, um anônimo, estava mandando um vídeo dele brincando com a filha. Lógico que não abri o vídeo, que tem 95% de chance de conter pornografia infantil e 100% de chance de passar vírus pro meu computador.
Então, mas por que essa novidade? Por causa do documentário Massacre na Escola: A Tragédia das Meninas de Realengo, lançado na HBO há alguns dias. Mascus devem ter visto ou ouviram falar do doc (na realidade, uma série com quatro episódios de cerca de 47 minutos cada), notaram que eu apareço bastante nele, e decidiram, mais uma vez, me atacar. Não que tivessem parado. Como disse minha advogada do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (do qual faço parte desde 2016), nos últimos doze anos eu nunca fiquei mais de três semanas sem receber alguma ameaça.
Em julho do ano passado, viajei até o Rio para ser entrevistada pela equipe do documentário. Foi uma longa conversa, mais de quatro horas. E sábado eu vi a série dirigida por Bianca Lenti, e gostei muito. Faz uma reconstrução marcante do massacre de abril de 2011 numa escola em Realengo, periferia do Rio, que fez doze vítimas fatais (10 meninas e 2 meninos, todos com idade entre 12 e 14 anos). É o maior massacre escolar no Brasil.
Como em 2011 eu já monitorava alguns fóruns e comunidades mascus, pude acompanhar em tempo real a reação deles. Eles celebraram o ataque, reconheceram o atirador como um dos seus, e ficaram com medo de alguma investigação da Polícia Federal, tanto que vários blogs fecharam no dia seguinte ao massacre. O autor do maior deles, inclusive, desapareceu sem dar qualquer explicação aos seus leitores.
Eu e outras feministas, como a professora de História Valéria Fernandes, questionamos por que a mídia não estava tratando o massacre como um feminicídio. Afinal, parecia evidente que o atirador invadiu a escola onde havia estudado anos atrás para matar meninas. Alguns sobreviventes testemunharam que ele atirava nos meninos pra ferir, e nas meninas, pra matar, mas a imprensa nem cogitou a motivação da misoginia.
O documentário entrevista diversas vítimas. Por exemplo, Thaylane, que levou três tiros e ficou paraplégica, conta que o atirador disse a ela: “você vai morrer por que é muito bonitinha”. Ela ressalta que ele atirava nas meninas na cabeça, e nos meninos, nos braços e pernas. Outro sobrevivente, Alan, diz o mesmo. Apesar de ter recebido três tiros, Alan conseguiu correr e chamar um policial, o então sargento (hoje subtenente) Alves, que foi um herói ao balear o assassino e assim impedi-lo de matar mais gente. Alves não crê que o atirador matou mais meninas de propósito. Para ele, algumas meninas se abraçaram em vez de fugir.
O doc é muito completo e perspicaz. Eu pessoalmente tiraria o trecho em que o pai de uma sobrevivente, Luiza, diz que ainda não caiu a ficha pra ela do que realmente aconteceu. E colocaria alguma coisa sobre a homenagem às vítimas, que é uma história interessante e bonita.
Pra quem não sabe, em 2015 foi
inaugurado um monumento numa praça nos fundos da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Construído a pedido das famílias das vítimas, o memorial mostra os onze adolescentes que foram mortos. Os familiares de uma das doze vítimas não quiseram que sua filha fosse reproduzida em bronze, então os criadores do monumento puseram uma borboleta para representá-la. Na inauguração, a mãe de Luiza Paula, que tinha 14 anos quando foi assassinada, discursou que o memorial deve ser visto como um pedido de paz, em vez de algo que lembre dor e sofrimento. Nas estátuas, as vítimas estão sorrindo e em movimento.
Algo que achei muito bacana é que o documentário fala da Lei Lola no quarto episódio. O delegado Flavio Setti (responsável pela Operação Bravata, em 2018) diz: “Sem dúvida a Lei Lola trouxe um ganho pras investigações, principalmente trazendo a possibilidade que a Polícia Federal possa intervir, possa atuar de forma direta em investigações que têm por foco a condição de mulher por si só, então quando essa condição é atacada, a PF tem a possibilidade de agir. Essa é uma coisa que antes não existia”. Fiquei feliz ao ouvir isso.
Porém, infelizmente um bocado de gente está falando do documentário por outro motivo. É que no episódio 3 um dos entrevistados, o consultor educacional Ricardo Chagas, associa o massacre a videogames e cita o canal de games do Core (eu nunca havia ouvido falar de nenhum dos dois) como um prato cheio para aliciadores (veja neste post do Tecmundo ). Na quinta, Core fez um vídeo de 20 minutos para afirmar que o documentário está tentando destruir sua vida e que seu canal não é para crianças, e Ricardo fez uma live de 30 minutos se mostrando bem arrogante. A Valéria, que sabe tudo de games e animes, escreveu sobre essa treta .
Eu acho que o documentário errou em dar tanta voz ao consultor, que no seu perfil no Instagram parece ser um daqueles cristãos de extrema-direita que culpam os games e a mídia em geral pela “destruição da família”. No documentário boa parte de suas declarações até são coerentes, mas no Instagram ele faz campanha contra a Disney por incluir um personagem LGBT numa animação. Enfim. No mínimo, o doc deveria ter editado a fala de Ricardo para que ele não mencionasse um canal em particular. Se ele só tivesse dito que canais de games e desenhos são um prato cheio para aliciadores, evitaria essa confusão toda (que pode até render processo).
O documentário no final, além de informar como denunciar ameaças a escolas (pelo número 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e pelo site gov.br/escolasegura ), explica que “eventuais opiniões de entrevistados não devem ser interpretadas como opiniões da WBD ou da Giros Filmes” (os produtores e realizadores da série).
Espero que vocês possam assistir ao doc e me contar o que acharam. A opinião de mascus e demais apoiadores e perpetuadores de massacres não me importa.