Nas últimas semanas, o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Luiz Fernando Corrêa, tem se desdobrado para dar explicações ao governo e ao Congresso sobre uma operação de espionagem contra autoridades do Paraguai, um episódio que pode até custar sua permanência no cargo. O caso surgiu em meio às investigações da Polícia Federal (PF) sobre a Abin Paralela do governo Bolsonaro, mas não é apenas Corrêa quem sente pressão após a operação ser revelada.
A PF defende que o programa foi usado “para fins ilícitos de monitoramento de alvos de interesse político, bem como de autoridades públicas, sem a necessária autorização judicial” e corre para finalizar o caso, em andamento há mais de dois anos. A Agência Pública apurou os motivos da demora na conclusão do inquérito, aberto em 2023 após o jornal O Globo revelar o uso ilegal do software israelense First Mile .
Por que isso importa?
- Investigação pendente sobre a Abin Paralela impede a responsabilização pelo uso indevido de recursos de inteligência para fins políticos durante o governo Bolsonaro, o que, uma vez impune, estimula eventuais repetições de comportamentos, e acaba por estimular disputas entre servidores da Abin e PF ainda em atuação no governo Lula.
Ao menos dois fatores interferem na investigação: dificuldades na obtenção de provas contra os suspeitos e uma disputa nos bastidores entre as diretorias da Abin e da PF, ocupadas pelos delegados federais Luiz Fernando Corrêa e Andrei Rodrigues, respectivamente. A indisposição entre Corrêa e Rodrigues já é conhecida, como reportado pelo The Intercept Brasil e pelo jornal Folha de S.Paulo .

Até aqui, as investigações da PF mostram que o software israelense foi usado em mais de 60 mil buscas contra alvos do governo Bolsonaro entre 2019 e 2021. Ainda não se sabe, porém, se os dados destas consultas ficaram mantidos somente no Brasil ou se as informações também ficaram acessíveis nos servidores-base da fabricante do programa, a israelense Cognyte.
A dificuldade na obtenção de provas contra os suspeitos de operarem o programa é corroborada por manifestações da Procuradoria-Geral da República, que já relatou, por exemplo, que o uso ilegal do First Mile na Abin ocorria “sem ordens formais, prevenindo-se rastro material das atividades ilícitas”. A Pública apurou que informações elementares – como a lotação de agentes de inteligência envolvidos – só foram colhidas pela PF no início de 2025.
Além disso, depoimentos de figuras-chave, como o ex-diretor-adjunto da Abin Frank Márcio de Oliveira só foram tomados em 2025. O oficial de inteligência que ocupou o cargo durante parte dos fatos apurados só foi ouvido pelos investigadores após retornar ao Brasil depois de passar mais de dois anos na Índia, como adido da Abin.

Disputa entre diretores e troca de acusações
Publicamente, o diretor da PF tem rebatido críticas sobre o tempo de investigação. Questionado em entrevista à TV Cultura em janeiro, Rodrigues disse que “a investigação tem o seu momento, o seu prazo para que ela seja consistente, para que seja responsável e apure aquilo de maneira a esgotar tudo que está sob análise”. “Quero crer que essa também será uma investigação de consistência, até pelo prazo de maturação dela”, afirmou o diretor-geral da PF.
Já o diretor da Abin tem trabalhado nos bastidores para dissipar a pressão contra ele e o órgão de inteligência. Como relatado pela Pública , Corrêa buscou o Congresso para esclarecer o caso contra o Paraguai e eximir sua gestão de responsabilidade quanto aos fatos investigados no âmbito da Abin Paralela – enquanto lida com o risco de demissão, caso seja acusado de obstruir as investigações da PF.
No dia 15 de abril, o diretor da Abin afirmou, por meio de nota , estar “à disposição das autoridades competentes para prestar quaisquer esclarecimentos, seja no âmbito administrativo, civil ou criminal, sobre os fatos relatados na imprensa e que remetem a decisões tomadas em gestão anterior [da Abin]”.
Os suspeitos de comandarem a Abin Paralela são policiais federais, trazidos para o órgão pelo ex-diretor-geral Alexandre Ramagem, atualmente deputado federal da base bolsonarista no Congresso pelo Partido Liberal (PL) e réu, no Supremo Tribunal Federal , por envolvimento na trama golpista que culminou no ataque às sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
De um lado, oficiais de inteligência defendem que a investigação sobre Abin Paralela perdeu o foco inicial. A espionagem contra o Paraguai veio à tona por meio de um vazamento, já sob apuração em outro inquérito aberto pela PF . As informações vazadas dão conta que a operação contra o país vizinho teria começado em 2022, no governo Bolsonaro, sob a gestão do ex-capitão do Exército Victor Felismino Carneiro na Abin.

De outro lado, policiais federais alegam que a cúpula do órgão de inteligência no atual governo não tem colaborado com as investigações, suspeitando inclusive de possível obstrução por parte da cúpula da Abin. A suposta interferência foi o motivo por trás da exoneração do antigo diretor-adjunto Alessandro Moretti, em janeiro de 2024. Ele refutou as acusações e defendeu que o órgão de inteligência somente começou a apurar o uso ilegal do First Mile sob a atual gestão, da qual fazia parte.

Tanto Moretti quanto Corrêa foram intimados a depor na sede da PF em Brasília. A suposta obstrução no caso Abin Paralela e o episódio de espionagem contra o Paraguai são os temas centrais dos depoimentos.
A Pública procurou a Abin e a Polícia Federal para comentarem as investigações sobre o caso e as controvérsias entre servidores dos dois órgãos, mas não obteve resposta até o momento. Caso se manifestem, esta reportagem será atualizada.
Abin x PF: controvérsias nos bastidores vão além dos comandos
Se por um lado falta conclusão no caso Abin Paralela, por outro sobram polêmicas e acusações entre membros da Abin e policiais federais nos bastidores. Um exemplo é o papel da Corregedoria do órgão de inteligência à época dos fatos apurados pela PF.
Até julho de 2024, a responsável por apurar e punir desvios de conduta na Abin era a oficial de inteligência Lidiane dos Santos Souza, indicada ao fim do governo Bolsonaro. Segundo apurado pela reportagem, a permanência dela no cargo à época era vista com desconfiança no órgão .
Souza foi indicada pelo governo Bolsonaro para um mandato de dois anos na corregedoria em 30 de agosto de 2022 , com apoio do então diretor-adjunto da Abin, Victor Carneiro. Ela ocupou o cargo até a primeira metade do governo Lula, sendo responsável por apurar eventuais desvios cometidos na gestão anterior.
Nos bastidores, a indicação de Lidiane Souza foi vista como uma prova da influência de Caneiro , ex-capitão do Exército, sobre o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que chefiava a Abin à época e era comandado pelo general da reserva do Exército Augusto Heleno Ribeiro.
Em agosto de 2024, o delegado federal José Fernando Chuy assumiu o comando da Corregedoria. Chuy é visto nos bastidores como figura próxima do ministro do STF Alexandre de Moraes. Pessoas ligadas à investigação da PF criticaram a saída de Souza, definida pelo diretor-geral da PF à época da troca como “pessoa corretíssima ”.

Ações ainda sem respostas
A Pública apurou que, desde a mudança na chefia da corregedoria da Abin, denúncias – incluindo casos ligados à Abin Paralela – tiveram de ser reabertas, para que houvesse novas apurações sobre eventuais desvios de conduta.
Entre os casos não apurados pela antiga corregedora consta a Operação Trojan, ação clandestina da Abin em favelas do Rio de Janeiro. Como revelado pela Pública em 2024, a atual gestão da agência identificou que a operação “não foi devidamente motivada, justificada, nem registrada”, algo considerado “inaceitável” e ilegal, de acordo com as normas do órgão.
À época de Lidiane Souza na Corregedoria, não havia procedimentos administrativos disciplinares (PADs) instaurados sobre denúncias graves – como o caso dos dossiês apócrifos contra líderes caminhoneiros produzidos pela Abin durante a pandemia, revelada pela Pública em 2023 ; e o suposto uso do órgão para ajudar dois dos filhos do ex-presidente – o senador Flávio Bolsonaro (PL) e o vereador de Balneário Camboriú (SC) Jair Renan Bolsonaro (PL) – em causas pessoais.
À Pública, a Abin disse que não havia PADs sobre os casos acima no período da antiga corregedora, afirmando, por outro lado, que a falta de PADs “não significa que não haja procedimentos investigativos” sobre estes episódios.
A reportagem não conseguiu contatar a antiga corregedora da Abin até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
Os policiais federais da Abin Paralela
Os resultados preliminares das investigações apontam que os agentes da PF Alexandre Ramalho Dias Ferreira, Carlos Magno de Deus Rodrigues, Felipe Arlotta Freitas, Henrique César Prado Zordan, Luiz Felipe Barros Félix e Marcelo Araújo Bormevet eram peças-chave da “organização criminosa” liderada pelos delegados Alexandre Ramagem e Carlos Afonso Coelho, diretores da Abin à época.
Escolhido em outubro de 2023 pela atual diretoria da PF para o cargo de coordenador-geral do Comando de Aviação Operacional da corporação, o delegado Carlos Afonso Coelho era homem de confiança de Ramagem na Abin. Ele foi responsável por “tocar o trabalho no dia a dia” do órgão.
Informalmente, ele foi o primeiro gestor do Centro de Inteligência Nacional (CIN ), um dos braços da Abin suspeitos de utilizar ilegalmente o software First Mile. Dias antes de ser afastado da PF devido ao envolvimento com a Abin Paralela, Coelho queimou uma série de documentos – incluindo materiais do órgão de inteligência, como revelado à época p ela CNN Brasil .
O policial federal Felipe Arlotta ocupou cargos de liderança no antigo CIN e assessorou Ramagem diretamente. Arlotta foi um dos coordenadores da operação ilegal da Abin em favelas na cidade do Rio de Janeiro.

Parte dos policiais federais trazidos por Ramagem ficaram lotados em seu gabinete de diretor-geral – incluindo Alexandre Ramalho, Luiz Felipe Félix e Henrique Zordan –, enquanto outros ocuparam diretorias estratégicas da Abin. A carreira dos três prosseguiu normalmente após atuarem na Abin Paralela. Ramalho, inclusive, fez um curso de especialização em Guiné Bissau em outubro de 2023, autorizado pela direção-geral da PF. Em janeiro de 2024, os três acabaram afastados da corporação por decisão do STF após a operação Vigilância Aproximada .
Já Carlos Magno e Marcelo Bormevet atuavam na coordenadoria-geral de credenciamento, segurança e análise de integridade corporativa da Abin. Um relatório preliminar da PF mostra inúmeras mensagens de Bormevet ordenando coleta de informações e uso de ferramentas, como o First Mile, contra ministros do STF, políticos e opositores do governo Bolsonaro.
Após sua passagem pela Abin, Carlos Magno foi cedido à “assessoria de Inteligência ” do Ministério Público Federal (MPF) em setembro de 2022, onde trabalhou até outubro do ano seguinte . Pelo MPF, Magno acompanhou uma comitiva do órgão ao Paraguai , entre novembro e dezembro de 2022, para a realização de reuniões com o MP daquele país. A viagem ocorreu no mesmo período em que supostamente ocorria uma operação de espionagem brasileira contra autoridades do Paraguai.
Até a publicação desta reportagem, a Pública não conseguiu localizar as defesas dos policiais citados. O espaço segue aberto e será atualizado em caso de manifestação.
Fonte
O post “Sem “rastro material”, disputa, vazamentos: o que atrasa a conclusão do caso Abin Paralela” foi publicado em 22/04/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública