Entre os cientistas da conservação é consenso que as florestas nos fornecem água, energia e alimentos. Contudo, a degradação de paisagens naturais afeta diretamente a oferta desses serviços, especialmente nas áreas rurais onde vivem três quartos da população mais pobre em todo o mundo. Gerenciar essas paisagens alteradas para manter a produtividade agrícola e os serviços ecossistêmicos ao mesmo tempo pode ser um grande desafio. Quando a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs, durante a Conferência de Bonn em 2011, o paradigma WEF nexus (water-energy-food nexus ou nexo água-energia-alimento, em português) para promover o desenvolvimento sustentável, não se levou em conta que a restauração florestal poderia ser parte essencial desse processo.
Assim, o professor Felipe Melo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se uniu a oito colaboradores para sugerir que a “segurança florestal” deve ser a quarta dimensão fundamental da estrutura WEF nexus, como forma de acelerar o ritmo e a magnitude das mudanças necessárias para alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela ONU.
O artigo “Adding forests to the water–energy–food nexus ” (Adicionando florestas ao nexo água-energia-alimento, em português) foi publicado na seção de Perspectives da revista Nature Sustainability em 14 de setembro. Em entrevista para ((o))eco, Felipe Melo, primeiro autor do artigo, esclarece algumas questões relacionadas ao novo paradigma proposto.
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((o))eco: Poderia nos explicar o conceito de “Segurança Florestal”?
Felipe Melo: Segurança Florestal é um conceito similar a outros conceitos que conhecemos bem como a segurança alimentar. Ou seja, é a garantia que os múltiplos benefícios oriundos dos ecossistemas florestais sejam repartidos de maneira justa para garantir o bem-estar humano. Propomos também que a segurança florestal é a base para outras seguranças, como a alimentar, energética e hídrica pois os serviços ecossistêmicos provenientes das florestas são fundamentais para produção de comida, água e mesmo energia. O reconhecimento do papel crucial das florestas, e de outros ecossistemas não-florestais, para a promoção do bem-estar humano traz a natureza para o centro do debate acerca do desenvolvimento sustentável.
Como a Restauração Florestal Integrada (FLR) pode ser vinculada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU) durante a próxima Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas (2021–2030)?
É possível reconhecer o papel dos ecossistemas naturais como algo central na maioria das 169 metas dos 17 ODS. Em alguns a relação é evidente, como no ODS 15 [Vida na Terra] e no ODS 14 [Ação pelo Clima], pois tratam diretamente do papel dos ecossistemas naturais, muitos florestais, na conservação da biodiversidade e no combate à mudanças climáticas. Porém, muitos outros ODS não tão evidentemente ligados aos serviços ecossistêmicos e à necessidade de recuperar florestas podem ser alcançados com a garantia da segurança florestal. Alguns dos mais urgentes são acabar com a pobreza [ODS 1] e a fome [ODS 2], separados conceitualmente, apesar de estarem fortemente ligados. A pobreza é um conjunto de restrições de acesso à condições materiais e serviços que impedem o pleno desenvolvimento humano. A Restauração Florestal Integrada (FLR) tem por princípio recuperar não só as condições naturais de um ecossistema florestal degradado, mas foca na organização social, promoção de participação e recuperação do poder decisório de populações sobre seu território, garantindo assim que muitas das restrições que compõem a pobreza sejam combatidas ao mesmo tempo. O mesmo se dá com respeito à fome, cuja principal causa é o acesso à comida. Ambientes degradados não geram nem comida e nem garantem acesso a meios de produção de alimentos, mas a Restauração Florestal Integrada pode promover a recuperação de serviços ecossistêmicos cruciais para a produção de alimentos via sistemas agroflorestais, por exemplo.
Qual a visão dos autores do artigo sobre o nexo água-energia-alimento (WEF nexus), lançado na Conferência de Bonn organizada pela ONU em 2011?
Neste trabalho reconhecemos avanços e limitações do conceito WEF nexus. O principal avanço é resumir de maneira bem objetiva que precisamos garantir seguranças básicas para a humanidade, reconhecendo que a garantia de uma segurança pode ter efeitos sobre outra. Quando essa interação é positiva, o aumento da segurança hídrica traz consigo segurança alimentar. Porém, há muitos exemplos práticos onde a garantia de segurança alimentar pode trazer insegurança hídrica (quando florestas são derrubadas e cursos d’água são degradados para a produção agropecuária, por exemplo). Uma crítica que fazemos ao conceitual teórico WEF nexus é entender segurança sob a ótica de balanços entre oferta e demanda de comida, água e energia. Sobre isso, argumentamos que as seguranças devem ser abordadas sob a ótica do acesso. Resumidamente, segundo a geógrafa estadunidense Nancy Lee Peluso, “acesso” é o resultado de uma constante luta política entre forças da sociedade que podem aumentar ou restringir os benefícios para os grupos envolvidos nessa disputa política. Portanto, devemos entender que a recuperação de ambientes degradados deve primordialmente aumentar o acesso das populações mais vulneráveis aos recursos que garantam seu bem-estar e a conservação da biodiversidade. Não o contrário, como tem sido a tradição de políticas de conservação em muitos países, incluindo o Brasil, onde populações tradicionais são comumente prejudicadas, geralmente perdendo acesso aos recursos básicos para sua existência, seja no processo de degradação ou de recuperação dos ecossistemas.
No artigo, vocês propõem uma estrutura híbrida entre o WEF nexus e a FLR, chamada WEFF nexus (o nexo entre água, energia, alimentos e segurança florestal), fundamentada nos princípios de integração da restauração florestal, capacitação das comunidades locais e soluções baseadas na natureza. Como se daria essa estrutura e como torná-la viável?
Não é uma fórmula para essa integração, mas princípios norteadores básicos que estão sumarizados no artigo. O primeiro deles é a “Promoção da Restauração”, atividade reconhecida oficialmente como crucial para alcançar os ODS, de forma que a próxima década (2021-2030) será dedicada pela ONU à sua promoção. Há uma enorme quantidade de terras degradadas pelo mundo que poderia ser recuperadas, promovendo acesso à terra e recursos naturais que podem aliviar a pobreza, acabar com a fome, promover justiça social e ambiental sem a necessidade de derrubar uma só árvore, mas ao contrário, plantando árvores. O segundo princípio é “Soluções Baseadas na Natureza” que é uma expressão que reconhece que muitos problemas atuais da humanidade podem ser solucionados através do manejo adequados de recurso naturais e sua recuperação, muitas vezes baseados em conhecimentos tradicionais, de baixo custo e alta eficiência. É uma alternativa ao mito das soluções tecnológicas tão presentes nos dias atuais, que nos leva a pensar na chegada redentora de uma tecnologia salvadora. Basta observar a pandemia de COVID-19, onde a crença numa vacina é maior que a força de criar novos hábitos sociais, que na verdade são a única “solução” atual. Por fim, deixamos claro que o “Empoderamento de Comunidades Locais” é a forma mais eficiente de balancear a disputa pelo acesso aos benefícios oriundos das florestas. Nenhuma ação de restauração florestal terá vida longa se não houver engajamento das comunidades locais, onde a restauração acontece. Essas pessoas são os primeiros afetados pela insegurança florestal, quando a floresta desaparece por desmatamento, levando consigo seu potencial de sustentação de modos de vida locais. Elas não costumam ser contempladas quando falamos nos benefícios da restauração, muito focados em captura de carbono e processos ecossistêmicos de grande escala. Porém, antes de ajudar a combater as mudanças do clima, as florestas garantem água, comida, renda e energia para pessoas que por gerações viveram com a ajuda desses benefícios. Quando as florestas cumprem essas funções básicas, outras de maior escala e mais difusas são garantidas. Não podemos mais reproduzir modelos de restauração que não garantam segurança florestal.
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O post “Segurança Florestal é tema de artigo da Nature” foi publicado em 23rd September 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco