Hoje é um dia importante para a justiça das mulheres: é o julgamento em segunda instância do caso Mariana Ferrer, o caso de estupro mais emblemático no Brasil dos últimos anos.
A jovem influencer Mari Ferrer foi dopada e estuprada há quase três anos, em dezembro de 2018, no beach club de luxo Café de la Musique, em Floripa. Na época ela fez boletim de ocorrência, exame de corpo de delito, tudo que tinha que fazer. Não denunciou ninguém porque estava dopada e não se lembrava de nada. Tinha 21 anos e, antes da violação, era virgem.
Como ela narrou: “Desde a denúncia até o corpo de delito eu fui atendida por homens. Tive minhas partes íntimas fotografadas, fui examinada, tocada, questionada por homens. É tão humilhante, constrangedor e cruel”. Ela mal sabia que tudo poderia ficar ainda pior.
O principal suspeito, o empresário paulista André Camargo Aranha, quando foi chamado para depor na delegacia, a princípio negou tudo, até que tivesse “transado” com Mari. Estranhamente, negou-se a doar material genético (por quê, se era inocente?). A delegada Caroline Monavique Pedreira, inteligente, coletou o DNA de um copo d’água que André tomou na delegacia. Era o mesmo DNA do sêmen que estava nas roupas íntimas de Mari. Dessa forma, ele teve que mudar sua versão: passou a dizer que transou com Mari, mas que foi consensual (a defesa típica de 9 em cada 10 estupradores).
O inquérito, em segredo de justiça, estava caminhando lentamente, para desespero de Mari, que desenvolveu stress pós-traumático, síndrome do pânico, fobia social, e transtorno depressivo recorrente, segundo atestado médico. Foi aí, cinco meses depois do estupro, que Mari resolveu falar nas suas redes sociais. Se ela não tivesse se exposto, o Brasil nem saberia do caso. E as chances de condenação do estuprador rico e poderoso seriam ainda mais escassas.
E, desde que ela expôs o caso, é difamada abertamente na internet. Faça o teste: escreva “Mari Ferrer” numa rede social e veja quanto tempo leva para que um perfil com zero seguidores diga que ela é uma mentirosa, uma vadia que só está se vitimizando para enriquecer. Quanto tempo leva para alguém postar vídeos “analisando” a postura de Mari? (nenhuma palavra sobre o acusado de estupro nesses vídeos, já que, aparentemente, quem está sob julgamento é a vítima). É tudo robô. E fica a pergunta: pagos com dinheiro de quem?
Apesar dos ataques, Mari recebeu muito apoio também. A maior parte das pessoas conhece o caso, está indignada e apoia a jovem. A tag #JusticaporMariFerrer volta e meia surge nos trending topics do Twitter. Já houve atos públicos a favor de Mari. Muitas advogadas, feministas e deputadas federais de esquerda se posicionaram em sua defesa.
Ano passado, por exemplo, um especialista jurídico afirmou numa entrevista para a TV que foi comprovado que Mari era virgem e que houve a ruptura do hímen, houve conjunção carnal. Ele duvida que uma jovem de 21 anos se manteria virgem até essa idade para fazer sexo pela primeira vez com um completo estranho com idade para ser seu pai, no calabouço de um clube, em 6 minutos e tão dopada que mal conseguia andar. Mas há setores da mídia ultraconservadora que militam contra Mari.
Mesmo com todas as provas e o apoio, em setembro de 2020 o impensável aconteceu : o estuprador, perdão, acusado de estupro (é que nós feministas temos a estranha mania de acreditar na vítima). foi absolvido numa audiência hedionda, dessas que entram para a história de tão chocantes.
Na audiência, realizada via videoconferência por causa da pandemia, Mari era a única mulher em meio a quatro homens: o juiz Rudson Marcos, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, um escrivão, e o advogado de defesa Claudio Gastão da Rosa Filho, mais conhecido como Gastãozinho, um dos advogados mais caros de Santa Catarina.
Numa das partes da audiência, Gastãozinho mostrou e analisou fotos de Mari, chamando-as de “poses ginecológicas”, destacando uma imagem em que ela estaria “com o dedinho na boquinha”. Ele também declarou: “graças a Deus não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus, e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você”, e a acusou: “É seu ganha-pão a desgraça dos outros”. O promotor, que deveria defender a vítima, se calou. O juiz também. Só perguntou se Mari queria tomar um copo d’água para se recompor, porque ela estava aos prantos.
Mas ela conseguiu dizer: “Eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados assim, pelo amor de Deus, gente! Nem os acusados de assassinato são tratados como estou sendo tratada, nunca cometi crime contra ninguém”.
O promotor Carriço — que estava lá para pedir a condenação do réu — decidiu então que, como o laudo toxicológico (estranhamente realizado quatro meses depois do estupro) não confirmou que Mari foi dopada, André, o acusado de estupro, não teria como saber que ela estava dopada. Logo, foi um estupro sem “dolo” , sem a intenção de estuprar. Carriço comparou com outra questão, abrindo uma jurisprudência pra lá de perigosa: se um homem faz sexo com uma menor de 14 anos, sem saber que ela é menor (porque ela tem o corpo avantajado ou usa maquiagem), ele não pode ser acusado de estupro de vulnerável, porque ele, pobrezinho, não sabia que a menina era menor de idade!
Sua conclusão: “Se a confusão acerca da idade pode eliminar o dolo, por que não aplicar-se a mesma interpretação com aquele que mantem relação com pessoa maior de idade, cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento?” Estupradores, anotem: da próxima vez que estuprarem uma mulher bêbada ou dopada, basta dizer que não sabiam que ela estava bêbada ou dopada. E, se estuprarem uma menor de idade, digam que não sabiam que ela era menor. Funciona! Pelo menos pra homem branco e rico, funciona!
O juiz acatou a recomendação do promotor e absolveu André, dizendo: “Melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, sem querer resumindo como são os julgamentos de estupro — em geral, os acusados saem livres. As únicas condenadas são as vítimas, que, por serem mulheres, não são inocentes. Nem quando são virgens são inocentes.
Muita coisa aconteceu desde a absolvição em setembro de 2020 até agora: o juiz Rudson Marcos foi removido da Vara Criminal; o advogado de defesa Gastãozinho foi denunciado pelo Ministério Público por envolvimento em esquema ilícito; a jornalista Schirlei Alves, que escreveu um artigo fundamental para denunciar a tese do “estupro culposo”, primeiro no site Nd+ e depois no Intercept Brasil, foi demitida do site e sofreu várias perseguições. Mas o principal foi que a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Mariana Ferrer, que basicamente impede que vítimas sejam atacadas em audiências. Um marco pra todas nós.
É por tudo isso, e pelo caso ser tão representativo para as mulheres, que estou confiante que hoje, finalmente, será feita Justiça. É o que pedimos desde o começo: Justiça para Mari Ferrer, e por todas as vítimas de estupro.
PS: Assinem a petição pedindo #JusticaporMariFerrer , espalhem, e bloqueiem os robôs que insistem em difamar a vítima.
O post “SEGUNDA INSTÂNCIA DO REVOLTANTE CASO MARI FERRER ACONTECE HOJE” foi publicado em 7th October 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva