Um conjunto de ferramentas já disponível e inclusive em uso no Brasil, embora de forma desconexa, é a chave para que o país consiga controlar o desmatamento na Amazônia proveniente da atividade pecuária. Segundo dados da plataforma Trase , que investiga as relações entre commodities e desmatamento, em 2018, 80% das áreas onde ocorreram derrubadas na região viraram pasto – e o gado irregular criado neste sistema acaba nas bandejas de carne vendidas pelas principais marcas do país, apesar dos acordos públicos que o setor assinou para se comprometer a varrer a prática nociva de suas cadeias produtivas.
Reduzir o problema substancialmente não exige nenhuma grande invenção tecnológica ou altas somas de dinheiro – e os frigoríficos parecem ter colocado essa perspectiva em seu horizonte. Na quarta-feira (23), a JBS revelou a decisão de ampliar o controle de sua cadeia de fornecimento conectando dados públicos já disponíveis. A Marfrig também havia feito um anúncio parecido em julho, e a Minerva confirmou à reportagem que desde agosto está conduzindo análises de risco a partir dessas bases comuns de informação.
As empresas decidiram agir para acalmar investidores estrangeiros, que estudam retirar aportes feitos em frigoríficos porque consideram a exposição ao desmatamento demasiado negativa para a imagem de seus negócios. “O problema é a compra de gado de fornecedores sobre os quais você não necessariamente tem controle. Pode ser que a pessoa de quem você compra esteja ok, mas se ela compra de outro fornecedor, você realmente não sabe (se o animal é regular)”, justificou Eric Pedersen , chefe de investimentos responsáveis do Nordea, depois que o banco europeu se desfez de R$ 240 milhões em ações da JBS, no final de julho. Ainda no ano passado, a norueguesa Storebrands Asset Management vendeu sua participação na Marfrig pelo mesmo motivo.
Mas enquanto as gigantes da carne prometem cumprir metas para combater o desmatamento até 2025, os sistemas que podem fazer com que o país dê um grande salto no controle de seus rebanhos já existem há tempo, embora sejam utilizados para outras finalidades.
São as informações públicas sobre desmatamento geradas pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), a “lista suja” de trabalho escravo do governo federal e o registro de multas e embargos do Ibama, além dos perímetros e obrigações de conservação das propriedades que constam no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os registros de movimentação de gado entre fazendas documentados pelas Guias de Trânsito Animal (GTA).
São sistemas distintos, mas que unificados em um mecanismo dirigido para garantir a regularidade ambiental, podem significar um diferencial competitivo para a indústria nacional, ajudando a conciliar as agendas de ambientalistas e empresários na Amazônia.
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Elos invisíveis concentram 60% do problema
Atualmente, os frigoríficos controlam a origem dos animais que abatem verificando a regularidade social e ambiental das fazendas que vendem gado diretamente para suas unidades. Mas apenas uma parcela muito pequena dessas propriedades rurais cria os bezerros desde o nascimento. A maioria dos pecuaristas se especializa em uma determinada fase da vida do bicho, ou, no máximo, duas: reprodução, desmame, crescimento, engorda – e algumas delas podem ser subdivididas. Por isso, antes de ser morto para virar bife, o boi provavelmente terá passado por mais de uma fazenda fora do raio de controle dos fabricantes de carne.
“Para cada produtor direto eu tenho de 5 a 10 outros vinculados. Então, se forem 16 mil fornecedores no bioma Amazônia, como é o caso da Marfrig, são na verdade mais de 100 mil propriedades para monitorar. Há uma complexidade enorme nessa concertação, que não é só tecnológica”, advertiu o diretor de Sustentabilidade da Marfrig, Paulo Pianez, em um evento virtual no qual anunciou um plano de conformidade ambiental que deve abarcar toda a cadeia de valor da empresa.
Registrar e acompanhar as sucessivas movimentações de bois e vacas, verificando a conformidade socioambiental de cada uma das propriedades pelas quais passaram antes do abate é a única forma de garantir que o produto vendido ao consumidor esteja livre de desmatamento. “É impossível acabar com o desmatamento da Amazônia ou ao menos chegar a um nível mínimo de crimes ambientais, sem chegar à rastreabilidade completa do que ali é produzido”, sentencia o procurador da República Daniel Azeredo.
Para Azeredo, a falta de monitoramento dos rebanhos do nascimento ao abate é o principal motivo pelo qual o setor segue contaminado pelo desmatamento, apesar de todos os avanços obtidos desde 2009. Naquele ano foram assinados o Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) do Ministério Público Federal (MPF), e o Compromisso Público com a Pecuária (CPP) , que obrigaram as empresas a monitorar seus fornecedores para garantir que seus produtos estejam livres de desmatamento e de trabalho escravo.
Apesar dos controles impostos, os flagrantes de irregularidades ainda são frequentes. Em julho, por exemplo, a Anistia Internacional revelou que a JBS estava abatendo gado criado em terras indígenas, o que é ilegal. Nos meses anteriores, investigações do Greenpeace e da Repórter Brasil denunciaram operações semelhantes que comprometiam Marfrig e Minerva. Juntos, os três frigoríficos concentram 42% da capacidade de abate das plantas situadas na Amazônia.
Isso acontece porque, embora eficiente, o monitoramento executado atualmente consegue evitar apenas 40% do problema, enquanto a maior parte do desmatamento ocorre nas fazendas onde os bezerros nascem e desmamam, chamadas de fases de “cria” e “recria”. E esses elos são invisíveis no sistema atual, que cobre apenas os fornecedores diretos – ou seja, o controle dos frigoríficos não chega até os locais onde as ONGs flagraram as irregularidades, embora eles também se abasteçam delas.
Rastreabilidade sanitária oferece saída
O modelo ideal para garantir a rastreabilidade completa da cadeia da carne seria o monitoramento individual dos animais, no qual cada boi ou vaca recebe uma identificação que permite acompanhar sua vida. Normalmente é um brinco com chip que guarda informações a respeito de sua origem e trânsito – e que pode até se conectar a um sistema de GPS. Mas também são aceitas marcas de fogo ou tatuagens, que funcionam como um carimbo que identifica cada fazenda pela qual o animal passa.
Uruguai e Austrália estendem a todo o rebanho essa metodologia de controle. No Brasil, entretanto, a solução gera muita resistência entre os pecuaristas que a consideram cara, burocrática e complexa, segundo um relatório da ONG Proforest , publicado em 2017: “Ainda que os custos possam não ser tão expressivos, qualquer aumento sem que haja uma compensação por parte dos frigoríficos é normalmente rechaçada. Além disso, a imagem que produtores historicamente possuem do processo dificulta sua adesão a sistemas de identificação individual”. Por isso, segundo a Confederação Nacional da Agricultura , menos de 10% do plantel bovino brasileiro está identificado de forma individual no Sisbov – Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos.
E mesmo o Sisbov tem suas deficiências, como mostra um estudo divulgado no dia 23 de setembro pela Coalizão Brasil – Clima Florestas Agricultura. Segundo o trabalho, há casos em que a brincagem de animais é feita apenas 90 dias antes do abate ou embarque para o exterior. “O sistema não foi concebido para garantir a legalidade das áreas de origem dos animais. Para fazê-lo, seria necessário registrar o animal logo após o seu nascimento ou, pelo menos, antes da sua saída da fazenda onde nasceu. Isso não ocorre”, anotam os técnicos.
Mas o Brasil opera a rastreabilidade de rebanhos de forma eficiente e em todo o território nacional através de um sistema que serve aos propósitos da sanidade animal , que é capaz de identificar com agilidade fazendas que oferecem risco de difusão de uma doença contagiosa quando um foco aparece. Embora não funcione no nível individual, e sim para identificar lotes de animais, esse mecanismo tem a confiança do mercado internacional de que a carne exportada não está contaminada com vírus que podem prejudicar a saúde dos animais de outras partes do planeta.
Uma credibilidade que, transposta para a área ambiental, pode ser a chave para que o país garanta ao consumidor produtos livres de desmatamento. Segundo uma estimativa do Serviço Brasileiro de Certificação, mencionado no estudo da Coalizão Brasil, esse sistema tem cobre corretamente 97% do rebanho nacional: “O dado mostra uma excelente implantação que se traduz, em primeiro lugar, no fato de que a rastreabilidade pode ser implementada imediatamente”, anota a organização.
“Seria viável utilizar a base de dados da rastreabilidade sanitária e colocar camadas de dados para checar o desmatamento ou questões sociais. Acrescentar outros níveis de complexidade a essas informações”, complementa Luiz Henrique de Almeida, que é o responsável pela estratégia de pecuária sustentável na América Latina da organização Partnerships for Forests (P4F), que está trabalhando em uma solução para o problema.
Por outro lado, alguns pecuaristas têm receio de que usar o sistema de rastreabilidade sanitária também para a finalidade ambiental bagunce um controle de pragas que funciona bem. Há temor de que os produtores deixem de registrar as trocas entre fazendas por medo de serem bloqueados como fornecedores de frigoríficos – o que pode colocar em risco a cadeia toda, em caso de surgimento de uma doença contagiosa de grande difusão, como a febre aftosa.
Desafio é conectar sistemas públicos
O coração do sistema de rastreabilidade sanitária é a Guia de Trânsito Animal (GTA), um documento emitido sempre que um lote de animais é transportado de uma fazenda para outra, identificando quantidade, origem e destino do gado – é obrigatório até para transações feitas entre propriedades do mesmo dono. Na hipótese de aparecimento de uma doença contagiosa, as autoridades sanitárias conseguem recompor o caminho dos animais afetados e alertar as fazendas por onde eles passaram que estão suscetíveis ao problema, ou chegar à origem do foco para debelá-lo.
Essa mesma lógica poderia ser aplicada ao controle ambiental, recompondo o caminho do gado até o frigorífico e verificando se alguma das fazendas por onde ele passou teve desmatamento ilegal. “A GTA possui um enorme potencial para ampliar o alcance a fornecedores indiretos”, conclui em seu estudo a Proforest. Mas para isso ocorrer, é preciso uniformizar o uso da versão digital desse documento – já que alguns estados ainda utilizam papel para registrar a transação – e, mais importante, que haja um esforço para conectar o histórico destes documentos a cada lote de animais levados aos matadouros. Hoje, a única GTA que chega aos frigoríficos é a da última fazenda onde o gado passou.
Uma vez dado esse primeiro passo, outros sistemas públicos podem oferecer as informações complementares para identificar desmatamento ou trabalho escravo associado às fazendas mencionadas nas GTAs, assim como verificar se suas áreas se sobrepõem à unidades de conservação ou terras indígenas.
“O Brasil dispõe de todas as ferramentas necessárias para fazer o trabalho de combate ao desmatamento ilegal, à grilagem de terras. Todas as informações estão disponíveis, mas essa falta de integração é muito complicada. Nós construímos nestas últimas décadas um ferramental fantástico de informações, de inteligência de administração e governança, mas não os integramos”, lamenta Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG).
A polêmica do sigilo
O problema é que embora os dados de GTA e do CAR existam e sejam públicos, seu acesso é restrito, o que inviabiliza a criação de um sistema transparente de consulta e checagem da origem do gado abatido na Amazônia brasileira. É por isso que até hoje os frigoríficos não avançaram no monitoramento do que acontece além das porteiras de seus fornecedores diretos, embora os acordos sejam claros na extensão de suas exigências, que incluem a cadeia completa, desde o nascimento dos bezerros até o abate.
“Quando um frigorífico recebe um carregamento de cabeças de gado para o abate, vai junto a GTA da última fazenda, aquela que está vendendo o lote. Então a empresa consegue verificar todos os dados daquela propriedade, fazer o mapeamento, a adequação ambiental. Mas ela não recebe as GTAs das fazendas anteriores, que venderam para aquela última, porque a Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará) entende que cabe sigilo sobre esse documento”, explica o procurador da República Ricardo Negrini, do MPF do Pará.
Esse é o maior entrave para que as GTAs possam estar conectadas entre si. “Esses documentos contêm informações de caráter privado e são protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que impede a publicação destas GTA’s”, informou o Ministério da Agricultura e Pecuária ao ((o))eco. Para entender a restrição, basta analisar o sistema do Ibama , que permite ao internauta consultar online todas as multas que o órgão aplica, incluindo o CPF ou CNPJ do autuado, o valor, o município e o detalhamento da infração. A lista de áreas embargadas é ainda mais específica e traz, inclusive, a localização da fazenda no mapa.
Nada disso acontece com a Plataforma de Gestão Agropecuária, do Governo Federal, na qual estão armazenadas as guias de trânsito emitidas pelos estados. A única consulta pública possível é a de autenticidade de GTA, mas para isso é preciso ter o código de barras do documento. Na Adepará também é assim , mas o número solicitado para consulta é o de série. Ou seja, é preciso conhecer de antemão a GTA a ser consultada, o que depende da colaboração do pecuarista. Para piorar só é possível checar uma GTA de cada vez.
Em 2015, o MPF emitiu uma recomendação à agência , pedindo transparência às GTAs, que deveriam ser disponibilizadas no formato de lista pública e em sua íntegra. O próprio Ministério da Agricultura e da Pecuária se comprometeu a dar transparência para o sistema de GTAs em seu plano de dados abertos na versão 2018/2019 , mas recuou no último momento .
O argumento central para manter o acesso restrito reverbera a justificativa dos produtores rurais, de que a exposição desses dados implicaria “na revelação de transações comerciais que colocam em risco a segurança física e patrimonial dos produtores, de seus familiares e seus colaboradores, além de expor as estratégias de negócios, tanto para o mercado doméstico como para o mercado internacional, com riscos de prejuízos para as atividades da defesa agropecuária e às economias dos Estados”.
Cinco ferramentas para superar obstáculo
O impasse preocupa tanto ambientalistas como o agronegócio e as redes de varejo. De um lado, os defensores da natureza tentam evitar que a Amazônia perca sua capacidade de regeneração e se torne uma savana – coisa que está próxima de acontecer segundo a ciência. Produtores rurais e indústrias estão penando com a pressão de investidores internacionais, que calculam o impacto do desmatamento não apenas na imagem de seus negócios, mas também sobre sua rentabilidade. Já se sabe que empresas com maior risco socioambiental tendem a ser menos rentáveis e mais expostas a perdas financeiras. Por fim, os supermercados se preocupam com ameaças de boicote dos consumidores e, também, com sanções de investidores, quando suas redes são internacionais.
Foi a partir da convergência entre esses pontos de vista que nasceu, em 2015, o Grupo de Trabalho dos Fornecedores Indiretos (GTFI), reunindo todos esses segmentos ao redor da mesma mesa. E as ideias começaram a aparecer. “Há praticamente um consenso de que a utilização das informações das GTAs e sua integração com a base de dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) é a solução mais promissora para a rastreabilidade ambiental”, assegura Pedro Burnier, integrante da ONG Amigos da Terra e coordenador do GTPI.
Os debates no grupo levaram ao desenvolvimento de diversas ferramentas que trabalham a partir do conjunto de dados públicos já disponível e enfrentam a questão do sigilo das GTAs sob diferentes abordagens.
Visipec é uma plataforma nascida do esforço conjunto entre National Wildlife Federation (NWF), Universidade de Wisconsin-Madison, AudioVisual Preservation Solutions (AVP) e Amigos da Terra. Esta ONG também integra um segundo grupo de instituições que estão envolvidas com o projeto Conecta: parcerias para a pecuária responsável. A iniciativa é liderada pela Partnerships for Forests (P4F), The Nature Conservancy e Safetrace, além de contar com o apoio do Sebrae e da consultoria CPQD, que desenvolve uma solução para garantir a confidencialidade do sistema.
A terceira iniciativa é da empresa NicePlanet , que já presta consultoria para a Minerva no rastreamento dos fornecedores diretos – está inclusive desenvolvendo uma ferramenta de verificação para a empresa utilizar em suas operações no Chaco paraguaio, onde a cobrança por conformidade socioambiental também cresce .
Além das soluções desenvolvidas pelo terceiro setor e empresas especializadas, as próprias indústrias de carne estão desenhando ou aperfeiçoando modelos semelhantes para ampliar a rastreabilidade – sempre com o uso de dados públicos já disponíveis. Marfrig e Minerva já anunciaram adesão às ferramentas das ONGs, enquanto a JBS optou por um sistema próprio, muito semelhante ao que propõe a plataforma do projeto Conecta. A Marfrig também decidiu retomar uma ideia antiga da casa, chamada Request for Information (RFI, em português, Pedido de Informação).
Técnica computacional ou colaboração
Em comum, as soluções postas sobre a mesa se baseiam em listas públicas de embargo e autuações por trabalho escravo, nos bancos de dados de áreas protegidas e em imagens de satélite do INPE para checar a conformidade socioambiental das propriedades. A consulta a esses sistemas é feita a partir das informações registradas nas GTAs e no CAR das propriedades.
A diferença é a forma de obtenção: enquanto o Visipec utiliza inteligência computacional e automação para driblar os bloqueios e acessar os sistemas públicos da GTA e CAR, o projeto Conecta e a NicePlanet, assim como o RFI da Marfrig e a Plataforma Verde, da JBS, apostam no fornecimento dessas informações de forma voluntária pelos produtores.
“O pecuarista assina um compromisso e se disponibiliza a passar os dados que alimentam nossa base. São produtores que entendem o valor em manter a reserva legal da fazenda, então nossa plataforma empodera esse sujeito, para que ele possa tentar capitalizar isso a seu favor, ganhando poder de barganha nas negociações com os frigoríficos”, explica Luiz Henrique de Almeida, da P4F.
Obter os dados de GTA e CAR de forma voluntária foi a saída encontrada pela maioria das ferramentas para superar um impasse gerado pela escolha do Visipec em extrair as informações a partir de técnicas computacionais. A interpretação de que os dados não são obtidos de forma oficial, embora sejam oficiais, gera preocupação com o sigilo das informações, mesmo que os líderes da iniciativa se esforçem em esclarecer que nada fazem de ilegal.
“Embora Visipec utilize os bancos de dados públicos, é importante ressaltar que a ferramenta não armazena todas as informações contidas nessas bases. Este é um equívoco comum. Visipec conecta fornecedores indiretos e diretos a partir de informações sobre as propriedades, não sobre pessoas. É a mesma análise feita para verificações de conformidade usadas atualmente nos monitoramentos do CPP e do TAC. Isso significa que muitos dos problemas potenciais em torno dos dados pessoais confidenciais são irrelevantes ou podem ser facilmente gerenciados”, garante Simon Hall, da National Wildlife Federation, uma das ONGs envolvidas com o desenvolvimento da solução.
Embora não esteja livre de controvérsias, a técnica da raspagem de dados é também utilizada e defendida por pesquisadores. Foi com esse método que um grupo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderado pelo professor Raoni Rajão, revelou que ao menos 17% da carne brasileira exportada para a União Europeia foi produzida em áreas desmatadas nos estados do Pará e Mato Grosso. O estudo foi publicado na revista Science .
“O próprio MPF utiliza essas informações de CAR e GTA para checar as auditorias dos frigoríficos signatários do TAC”, corrobora Rajão. “Claro que não é simplesmente publicar os dados públicos brutos, porque isso pode causar reclamações. Mas é importante que os órgãos federais e estaduais, a academia, trabalhem com esse dado e entreguem as informações que a sociedade requer: basicamente, saber se há ou não desmatamento, e para isso não é necessário revelar os nomes das pessoas envolvidas”, complementa o pesquisador.
Por isso, uma das recomendações do estudo da Coalizão Brasil é que as ferramentas adotem estratégias que garantam a confidencialidade das informações, citando como exemplo o uso da tecnologia blockchain – que está no coração das estratégias de monitoramento desenvolvidas pela P4F e pela JBS. É uma técnica que separa em blocos invioláveis de dados as informações de cada transação, aumentando sua segurança.
Adesão de pecuaristas é incerta
A dependência do fornecimento voluntário dos dados de GTA e CAR pelos próprios pecuaristas também acarreta suspeitas. É essa a aposta do projeto Conecta, da ferramenta do NicePlanet e dos sistemas próprios da JBS e da Marfrig. O diagnóstico da Proforest a respeito do Request for Information, da Marfrig, salienta que esse formato é restrito: permite chegar apenas um passo atrás da cadeia de fornecimento de gado. “Caso haja outros fornecedores intermediários entre a origem inicial (cria) e final (engorda), é possível que o sistema não alcance essas propriedades”.
O fato de retroceder apenas até o primeiro elo antes do fornecedor direto não é o principal problema, porque segundo os estudos do GTFI, 48% do desmatamento ocorre nesta parte da cadeia. Justamente por isso, poderá ser difícil convencer os fornecedores diretos a oferecerem os dados de suas compras porque isso fatalmente reduzirá suas opções de negócio – já que terão que excluir todos os seus fornecedores com irregularidades ambientais.
É o que mostram as experiências já existentes. Apesar de efetiva no controle do desmatamento, a ferramenta da NicePlanet não conseguiu avançar a uma segunda etapa por falta de adesão de pecuaristas após três anos de testes. O próprio diretor sócio da empresa, que também é criador de gado, recusou-se a aplicar o sistema em sua propriedade porque isso “dificultava” seu procedimento de compra: “Eu sou pecuarista de engorda e o animal magro é minha matéria prima. Porque eu iria criar uma restrição para mim, encarecer [a compra], se isso não fosse me trazer nada, somente o resultado da pesquisa?”, admite Jordan Timo Carvalho.
O projeto Conecta não ignora esse problema, mas aposta em outras formas de atrair o pecuarista. Além de acreditar que a adesão ao sistema pode significar o “empoderamento” dos produtores que estão regulares, aumentando seu poder de negociação com os frigoríficos, o grupo de organizações formulou uma parceria com o Sebrae, que oferece capacitação para fazendeiros melhorarem a gestão de suas propriedades e aumentarem a lucratividade da produção. “Para participar das atividades e treinamentos, há a condição de que esse produtor assine o compromisso de disponibilizar as informações que alimentam nossa base de dados”, explica Luiz Henrique de Almeida. Atualmente, o projeto já está em operação em fazendas de São Félix do Xingu no Pará e 85 pecuaristas já assinaram o compromisso.
A JBS informou que a adesão à Plataforma Verde será obrigatória para todos os fornecedores diretos da empresa até 2025, mas acena com promessa de assistência técnica e jurídica para regularizar indiretos que tenham vontade de se incorporarem na cadeia. É também essa a principal aposta da Marfrig para convencer seus fornecedores.
O fato de os pequenos pecuaristas acabarem marginalizados por não terem condições de investir em tecnologia para readequação de suas fazendas acende outro alerta: eles podem acabar abastecendo frigoríficos menores, que estão fora dos acordos públicos e, no limite, são até irregulares. “Note que quanto mais qualidade é exigida do produtor rural, mais marginalizados ficam os produtores pequenos e médios, fomentando um mercado informal. A probabilidade desse produto ficar no mercado interno é imensa”, alerta Taciano Custodio, chefe de Sustentabilidade da Minerva Foods.
“A complexidade da cadeia permite que produtores excluídos por irregularidades sempre encontrem compradores para seus animais, frustrando os objetivos dos sistemas de rastreabilidade”, complementa o diagnóstico da Coalizão Brasil.
É nessa lacuna que entra uma iniciativa que está sendo desenvolvida pela ONG Imaflora, que pretende dar maior transparência aos acordos setoriais de controle da origem da carne produzida na Amazônia. O Boi na Linha vai implementar protocolos de padronização das exigências feitas aos frigoríficos para poder comparar seu desempenho – coisa que hoje não é simples. “Queremos mostrar quem tem TAC assinado, quais plantas estão cobertas, se as empresas assinaram os acordos em mais de um estado e se estão fazendo auditorias”, explica Lisandro Nakaki de Souza, coordenador da iniciativa.
Análise de risco e mudança de mentalidade
Para o Proforest, o segredo para ampliar o controle da cadeia da pecuária não está em escolher apenas um dos métodos, mas em uma combinação entre todas as possibilidades existentes no Brasil. “O mais apropriado seria pensar em estratégias de rastreabilidade e monitoramento socioambiental adaptadas a diferentes especificidades”, sugere a Proforest. Exemplo: se o frigorífico faz suas compras em áreas com taxas elevadas de desmatamento, e onde se concentram pequenos produtores de cria com baixa produtividade, a rastreabilidade individual pode fazer diferença nos resultados. Mas essa técnica não precisa ser aplicada a fornecedores diretos de grande porte que estejam localizados em regiões com baixos índices de desmatamento.
Um modelo a ser seguido é o Sistema de Verificação de Legalidade da Madeira desenvolvido pela Bolsa Verde Rio, que cruza dados como capacidade produtiva de uma região com informações sobre multas aplicadas, imagens de satélite e auditorias de campo e assim identifica se uma compra apresenta risco maior ou menor de incluir madeira ilegal na carga. “Os procedimentos de verificação incluem a legalidade documental, a veracidade da informação e a consistência dos dados, identificando indícios de irregularidades ou fraudes”, assinala o estudo.
Os frigoríficos já estão lançando suas ferramentas de análise de risco. Marfrig anunciou a criação de seu Mapa de Mitigação de Risco, e a Minerva promete ter o diagnóstico de sua cadeia fechado até o final deste ano. Enquanto isso, o MPF incorporou nas auditorias do TAC da Carne um cálculo de produtividade máxima para dificultar a lavagem de gado – quando o boi ilegal é vendido com o documento de uma fazenda regularizada.
Ao fim e ao cabo, o que está no horizonte da cadeia da pecuária brasileira estabelecida na Amazônia é uma mudança de mentalidade. “A indústria está entendendo que precisa atender à demanda, que quer um produto mais sustentável. Então o foco que hoje é de competição por fornecedores, vai ter que ser de qualidade do produto. Vão precisar incluir esse atributo e passar a decidir as compras a partir dele ao invés de estruturar a cadeia de fornecimento pelo preço mais barato ou pelo maior volume”, conclui Luiz Henrique de Almeida, da P4F.
Esta reportagem integra uma série que investiga a relação entre o mercado financeiro e a indústria da carne no Brasil. Se você quiser entrar em contato com a reportagem para oferecer alguma sugestão de abordagem, basta escrever para quemfinanciaodesmatamento@gmail.com.
Em direção ao desmatamento zero
Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation
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O post Satélites, mapas e trajeto do boi: saída para reduzir desmatamento já opera no Brasil apareceu primeiro em ((o))eco .
Fonte
O post “Satélites, mapas e trajeto do boi: saída para reduzir desmatamento já opera no Brasil” foi publicado em 29th September 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco