O argumento central de toda grande mineradora e siderúrgica para justificar a implantação de um projeto em determinado local é o suposto impacto econômico positivo que aquela operação irá gerar.
Quando se trata da participação que cada setor representa no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, a soma de todos os bens e serviços produzidos no país, é comum que tentem inflar os números.
O melhor estudo disponível, porém, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2021, dá a exata medida do quanto a mineração e a siderurgia significam: a mineração representa míseros 1,2% do PIB, considerando toda a IEM (Indústria Extrativa Mineral) e a siderurgia 1,9%, considerando toda a ITM (Indústria da Transformação Mineral), sendo no total 3,1%, diz o estudo .
Para manter esse gigantesco parque industrial funcionando de ponta a ponta da cadeia, no entanto, o setor minero-siderúrgico consome 11% da eletricidade produzida no Brasil, de acordo com o Balanço Energético Nacional (BEN).
Os dados do BEN mais recente, de 2021, indicam um consumo final de 61 mil gigawatts-hora (GWh) envolvendo os setores de ferro-gusa e aço, ferro ligas, mineração e pelotização e não ferrosos e outros da metalurgia.
Sobre o consumo total de 540 mil gigawatts-hora no Brasil, isso representa 11% da eletricidade produzida. Percentual que se mantém razoavelmente estável nos últimos anos.
Quando comparado com a realidade de 2011, a proporção era ainda maior: a mineração e a siderurgia chegavam a 16% do consumo total brasileiro 10 anos atrás.
Mesmo reduzido, por fatores como o processo de desindustrialização, a crise econômica e a pandemia, os 11% que a cadeia minero-siderúrgico consome hoje são extremamente significativos comparado aos 3% que representam no PIB brasileiro.
Para Bruno Milanez, doutor em política ambiental e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), esse consumo de eletricidade é desproporcional à participação do setor minero-siderúrgico no PIB.
Além disso, como boa parte dos materiais produzidos são exportados – mais de 80% no caso do minério de ferro , por exemplo – estamos exportando também energia mineral.
“Boa parte do que a gente consome de energia aqui e não está sendo disponibilizado para a sociedade, tá sendo disponibilizado especialmente para os chineses e para os europeus na forma de material e consumo de energia”, afirma Milanez.
Indústria paga energia mais barata que o cidadão
As grandes empresas e suas entidades representativas gostam de exaltar a “competitividade” do setor. Porém, isso só é possível por uma série de benefícios fiscais que mineradoras e siderúrgicas desfrutam.
Estudo coordenado e revelado pelo Observatório da Mineração em maio mostrou, por exemplo, que mineradoras podem deixar de pagar US$ 1,26 bilhão por ano em impostos apenas na exportação de minério de ferro.
São muitos os benefícios cruzados que as empresas recebem, desde a esfera municipal até a federal.
O caso da energia não é exceção e a tarifa paga pela indústria é fartamente subsidiada, com casos que chegam a 30% de desconto ou mais em relação ao que eu e você pagamos na tarifa comercial.
“Parte da competitividade do setor no mercado internacional é garantida não por mérito em si, mas por conta das benesses que o governo fornece. O custo não é rateado proporcionalmente por quilowatt-hora, não é igual para todo mundo. Se para eles é mais barato, para gente fica mais caro”, afirma Milanez.
No atual momento em que o país passa, com crise hídrica, aumento substancial das tarifas para o consumidor, contratação de térmicas poluentes e privatização da Eletrobras, esse peso é ainda mais relevante.
Levantamento recente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace) mostra que os brasileiros pagam cerca de R$ 12 bilhões por mês em tributos e subsídios na conta de luz. Nos últimos 4 anos, durante o governo Bolsonaro, houve um aumento de 47% no valor das taxas e encargos.
O custo da eletricidade no Brasil está entre os mais altos do mundo.
Clarice Ferraz, diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina) , lembra que um dos indicadores usados nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU é justamente a intensidade energética do país. Ou seja, quanto de energia é consumida para gerar uma unidade de PIB.
Em países não tão dependentes do extrativismo, com economia baseada mais em serviços, esse indicador tende a ser melhor. Mas o Brasil vai na direção contrária da eficiência energética.
A economia brasileira permanece essencialmente dependente de exportar commodities, em especial minério de ferro, petróleo e soja, os três produtos que lideram o ranking de exportação.
“A gente fica a serviço de fornecer o minério e a energia necessária para a mineração, que vai ser exportada. Nesse arranjo econômico perverso, as exportações não geram receitas para o estado, principalmente em função da Lei Kandir”, lembra Ferraz.
De fato, mineradoras pagam pouco ou nenhum imposto de exportação. A Lei Kandir, aprovada em 1996, previa uma compensação financeira para os estados.
Após décadas de discussão e várias ações de governos estaduais no Supremo Tribunal Federal (STF), que deu ganho de causa aos estados, o Congresso criou em 2021 um fundo que prevê R$ 65 bilhões para compensar os estados com as perdas acumuladas. Esse montante, porém, será distribuído até 2037.
Sobre os ODS da ONU, relatório elaborado pelo GT Agenda 2030 , que reúne 60 organizações da sociedade civil, apontou que o Brasil alcançou os piores indicadores ambientais e socioeconômicos desde o início da série histórica, em 2017.
O estudo analisa a partir de dados oficiais a implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no país. De acordo com o levantamento, 80,35% das 168 metas analisadas estão em retrocesso, ameaçadas ou estagnadas e 14,28% tiveram progresso insuficiente.
Uso de carvão na fabricação de aço subiu 11,8%. Política energética na contramão.
Uma das fontes de energia mais poluentes possíveis, o carvão vive um novo “boom” no Brasil, alimentado pelo governo de Jair Bolsonaro e programas do Ministério de Minas e Energia.
Além disso, a indústria continua massivamente dependente do carvão. O uso de carvão mineral na fabricação de aço subiu 11,8% em 2021 comparado a 2020, segundo o Balanço Energético Nacional.
Em 2021 o Brasil também importou 25% mais carvão quando comparado a 2020. Os principais fornecedores são a Colômbia e os Estados Unidos.
Jair Bolsonaro sancionou em janeiro pelo menos R$ 3,3 bilhões de subsídios para usinas a carvão até 2025 , em conta a ser paga diretamente por todos os consumidores de energia do Brasil.
Em agosto de 2021 o Ministério de Minas e Energia lançou um “programa sustentável” para o carvão mineral nacional , com o objetivo de manter a indústria em funcionamento e substituir antigas termelétricas por novas.
Com isso, estão previstos R$ 20 bilhões em investimentos em carvão no Brasil nos próximos 10 anos, com apoio financeiro e fiscal direto da União.
O foco do programa é justamente a continuidade da atividade de mineração de carvão na região Sul do Brasil, que concentra 99,97% da reserva de carvão mineral brasileira. Isso equivale, celebra o MME, a um potencial de abastecimento elétrico de 18.600 MW durante 100 anos de operação.
O setor carbonífero teve forte influência na definição das metas do Programa Mineração e Desenvolvimento (PMD), como mostrei em dezembro de 2020 .
O pacote de privatização da Eletrobras incluiu ainda a contratação de novas térmicas poluentes e uma conta salgada para o consumidor, que começa em R$ 52 bilhões .
Essas movimentações também vão contra as metas da Política Nacional de Mudanças Climáticas, que incluem alcançar 45% de renováveis na matriz energética em 2030, com expansão para o uso de fontes de energia não fósseis e alcançar 10% de ganhos de eficiência no setor de eletricidade em 2030.
Para Clarice Ferraz, do Ilumina, tudo isso “é um absurdo completo” e o que acontece no Brasil é diferente do que ocorre no resto do mundo, que também tem apostado forte no carvão, piorando a crise climática e colocando em risco o Acordo de Paris.
“O que acontece aqui é uma distorção no mercado e é um governo age contra a transição energética, contra o desenvolvimento sustentável”, critica.
Celio Bermann, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), concorda que os rumos atuais estão equivocados.
“Transformaram a política energética nacional num balcão de negócios, é disso que se trata hoje. O Ministério de Minas e Energia não planeja e dá uma atenção técnica aos negócios que privilegiam as grandes corporações”, crava Bermann, em entrevista.
Apesar do cenário ruim, é possível e necessário mudar a política energética brasileira em um novo governo a partir de 2023, ressalta Ferraz.
“É possível. Se vai fazer ou não será determinado politicamente. Mas as pessoas precisam saber que é possível. Sem energia você morre, sem energia não tem nada. Se não reverter os rumos atuais, terá que explicar por que não fez”, diz.
“Sustentabilidade” da indústria é vista com ceticismo
Eu procurei o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa as maiores mineradoras do país e o Instituto Aço Brasil, representante das maiores siderúrgicas.
Sobre o consumo de 11% de eletricidade, o IBRAM me respondeu que isso “é devido aos materiais que produzimos para desenvolvimento econômico, ambiental e social do país, pode ser considerado relativo. O aço e os agregados para construção civil possibilitam o desenvolvimento e continuidade da infraestrutura; e para a ampliação do uso de energia limpa, somos os principais fornecedores de materiais que permitirão essa ampliação”.
Ainda de acordo com o IBRAM, “o setor tem investido para aumentar ainda a sua eficiência energética” e tem como meta “a redução no consumo de energia até 2030 e o aumento da matriz renovável”.
O Instituto Aço Brasil não respondeu às questões enviadas. Em seu site, porém, o Instituto alega, entre outras questões de difícil solução, reconhece, que a indústria do aço já “reduziu significativamente seu consumo de energia ao longo dos anos (60% de redução do consumo específico desde 1960, de acordo com a Worldsteel 2019) através da maximização do uso de gases de processo e medidas de conservação de energia”.
Celio Bermann, da USP, ressalta que é “extremamente cético” em relação ao “greenwashing” desses anúncios, que segundo ele “marca a conduta e o procedimento de forma geral das empresas relacionadas ao setor minero-siderúrgico”.
Para Bermann, o mundo assiste de forma absolutamente passiva a crise climática.
“A humanidade tem de garantir não é para as gerações futuras as condições de habitabilidade do planeta. Isso está acontecendo hoje. Estamos perdendo a noção temporal da gravidade do presente”, lembra.
A capacidade de reação das empresas e a vontade real de mudanças do mundo corporativo é “um elemento extremamente negativo”, diz o professor. “As empresas não estão interessadas em promover uma inflexão no processo de crise climática que vivemos”, finaliza Bermann.
Fonte
O post “Representando 3% do PIB, setor minero-siderúrgico consome 11% da eletricidade no Brasil” foi publicado em 26th julho 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração