A restauração de populações de espécies silvestres pode ser uma das funções identificadas no planejamento de um programa de conservação ex situ. Uma população pode ser restaurada a partir da reintrodução de indivíduos para restabelecer a espécie em parte de sua área onde ela foi extinta, ou a partir da suplementação para reforçar demograficamente e/ou geneticamente uma população existente. Neste contexto, a reintrodução e a suplementação podem ser ferramentas importantes de conservação. Entretanto, essas ferramentas não devem ser empregadas sem critérios técnicos bem fundamentados, ancorados nas melhores práticas da Biologia da Conservação e respaldados em análises de especialistas. Mas muitas vezes essas ferramentas são usadas quando sequer se tem conhecimentos básicos necessários, como a identificação da causa dos fatores que levaram a espécie ao declínio ou extinção local (e principalmente eliminação e correção dessa causa) ou como avaliação da área que se pretende reintroduzir ou suplementar indivíduos (como a confirmação da extinção, a quantidade de indivíduos que já existem na área e a capacidade de suporte da área).
As diretrizes da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) apresentam dois principais motivos pelos quais essas ferramentas podem e devem ser utilizadas: (1) quando a população for muito pequena, portanto, os níveis populacionais críticos e a recuperação através de crescimento natural pode ser perigosamente lenta; e (2) quando são necessárias trocas artificiais e imigração para manter a viabilidade genética em populações isoladas ou ilhas geográficas. Ainda assim, é preciso assegurar que a não viabilidade da população que já existe no local seja decorrente de fatores genéticos ou demográficos e não de manejo incorreto da população ou de sua área.
A reintrodução pode ser usada para restaurar espécies que tenham sido local ou globalmente extintas, mas onde os fatores da extinção foram eliminados ou controlados. Não deve ser feita se a extinção foi provocada por mudanças no hábitat que o tornam inviável para a espécie, ou se os fatores que levaram a espécie à extinção não foram controlados a níveis aceitáveis ou eliminados. Alguns objetivos da reintrodução são: melhorar a sobrevivência a longo prazo da espécie, restabelecer uma espécie chave em um ecossistema, manter ou recuperar a biodiversidade natural, alcançar benefícios econômicos a longo prazo ou conscientização sobre conservação (no entanto, este último não se justifica sozinho).
A suplementação só deve ser feita se a causa da redução tiver sido removida ou reduzida a níveis aceitáveis e se não houver possibilidade de crescimento natural. Deve previamente ser investigada a capacidade de suporte da área. Se a área comporta uma população viável, identificar por que o tamanho da população está reduzido. Às vezes pode ser suficiente implementar ações para ajudar a população residente a se expandir até o tamanho desejado ou por exemplo eliminar a remoção de indivíduos ou recuperar o habitat, e usar suplementação apenas se isto falhar. Com um bom manejo populacional a suplementação pode não ser necessária, portanto, não deve ser feita sem cuidadosa análise prévia.
A harpia ou gavião-real (Harpia harpyja) é a maior águia das Américas Central e Sul, ocorre em baixas densidades nas florestas tropicais do sul do México ao nordeste da Argentina, e possui distribuição mais ampla nas florestas Amazônica e Atlântica brasileiras. Essa águia depende de floresta, se alimenta principalmente de presas arborícolas, nidifica em grandes árvores de dossel emergentes, retorna à mesma árvore para a nidificação e requer grandes extensões de floresta para sobreviver. A perda de hábitat é a principal ameaça a conservação dessa espécie, que está classificada como quase ameaçada globalmente e como vulnerável à extinção no Brasil.
A maioria os estudos sobre harpia realizados no Brasil foram conduzidos pelo Projeto Harpia. O projeto iniciou suas atividades em 1997, após a descoberta de um ninho de harpia em Manaus-AM. Em 1999, o projeto começou a mapear e monitorar novos ninhos em outras localidades na Amazônia. Em 2005, o projeto estendeu suas atividades para a Mata Atlântica. Hoje, o projeto atua em todo o Brasil e conta com uma rede de colaboradores na coleta de dados dos ninhos, atividades de educação ambiental e difusão do conhecimento científico com objetivo de conservar a harpia e outras águias florestais, com uma grande equipe de parceiros e colaboradores.
Em 2017 foi realizado o “Workshop do Programa de Conservação do Gavião-real no Brasil: Analise de Viabilidade Populacional e Estratégias de Conservação do Gavião-real (Harpia harpyja) na Mata Atlântica e Amazônia” organizado em conjunto com o CPSG Brasil (Grupo Especialista em Planejamento para a Conservação – IUCN), que ocorreu em Linhares, no Espírito Santo. À partir dos resultados deste workshop, o projeto incorporou um programa ex situ para trabalhar a conservação de forma integrada com o programa in situ. Os principais objetivos do programa ex situ seriam a reabilitação e soltura de indivíduos removidos da natureza por incidentes ou crimes ambientais e o estabelecimento de um programa de manejo cooperativo para criar uma população de segurança, preservando opções para estratégias de conservação futuras.
Existem mais de 140 harpias em criadouros legalizados no Brasil e mais de 50 no exterior, com grande potencial para um programa de manejo cooperativo, com troca de experiências e de animais. Em 2018, um outro workshop internacional foi promovido pelo Projeto Harpia, intitulado “I Workshop do Programa de Cativeiro do Projeto Harpia, .realizado em Foz do Iguaçu, no Paraná, para o planejamento das ações de conservação integrada, que contou com a participação de pesquisadores de campo, instituições de conservação, zoológicos do Brasil e do exterior e representantes do governo.
Durante o último workshop foi extensivamente discutida a reintrodução de harpias, e entre os argumentos positivos e negativos elencados estão:
Positivos:
(1) Repopular hábitats onde harpias ocorriam historicamente, mas foram eliminadas;
(2) Controle de presas arborícolas, como macacos, com grandes tamanhos populacionais;
(3) Existe um plantel disponível e reprodução bem-sucedida em cativeiro;
(4) As solturas podem engajar as comunidades, contar uma boa história e inspirar o pertencimento e ajuda na arrecadação recursos para a conservação;
(5) Desenvolvimento de pesquisas e obtenção de mais dados (dispersão, uso de hábitat, alimentação, reprodução, etc…)
Negativos:
(1) As principais ameaças a harpia são difíceis de serem eliminadas, como perda de habitat devido ao desmatamento das florestas, e a remoção de indivíduos da natureza devido aos conflitos com humanos, como caça, captura e corte seletivo da árvore do ninho com filhote pela exploração madeireira;
(2) A capacidade de suporte do ambiente pode ser insuficiente para as necessidades da espécie (local e por bioma), pois um indivíduo necessita de grandes áreas de florestas com presas adequadas para sua sobrevivência e reprodução;
(3) Risco de mistura de indivíduos de populações com variabilidade genética diferente, por falta de conhecimento da origem e variabilidade das matrizes dos criadouros;
(4) Os estudos anteriores feitos na Panamá mostraram que as solturas foram eficientes na sobrevivência, pois as harpias se alimentaram na natureza, mas não foi registrada a reprodução desses indivíduos, o que levanta dúvidas se a soltura desses animais contribuirá para a restaurar o tamanho efetivo populacional;
(5) Desvia a atenção do problema real da conservação da harpia, no caso, a perda de habitat e a remoção de indivíduos da natureza.
Com esses pontos levantados, no workshop foi definido que antes de se pensar em solturas de harpias é necessário organizar um grupo de trabalho que conduza as discussões e estudos sobre o tema. Foi dúvidas se a reintrodução é uma ferramenta necessária à conservação da espécie neste momento. As únicas experiências de soltura no Brasil foram de aves resgatadas e reabilitadas, que são a maior demanda de conservação do objetivo do programa ex situ hoje (por exemplo, somente no ano de 2020, três harpias foram removidas da natureza e estiveram sob a atenção do Projeto Harpia), nunca de aves nascidas em cativeiro.
Os argumentos a favor da reintrodução até o momento são questionáveis, especialmente se considerarmos alguns pontos: (1) harpias estão sendo redescobertas onde eram consideradas extintas (por exemplo, no Rio Grande do Sul) e ou encontradas onde não havia registros (por exemplo, no noroeste da Argentina); (2) a grande maioria das presas arborícolas de mamíferos que são presas de harpia, como macacos e preguiças, estão ameaçados de extinção, principalmente na Mata Atlântica; (3) a reintrodução e suplementação não devem ser feitas só porque existem animais excedentes ou disponíveis em cativeiro, a oportunidade não deve ser mais importante que a necessidade em conservação; (4) soltar animais apenas para apelo popular e financeiro, sem fundamentos técnicos, pode gerar consequências ecológicas desastrosas.
Contudo, a ideia de realizar um projeto piloto de soltura de harpias nascidas em cativeiro com o objetivo de gerar conhecimento pode ser relevante. Entretanto, requer no mínimo que a área da soltura bem conhecida e controlada, sem ameaças para a espécie e no qual os indivíduos soltos sejam monitorados de forma adequada e considerando a possibilidade que os indivíduos soltos possam ser capturados se necessário. Entretanto, essa ação pode concorrer com a atenção e recursos que deveriam ser dados às outras ações efetivas de pesquisa e conservação, e ir na contramão das necessidades de conservação da espécie.
Dessa forma, o Projeto Harpia não é favorável a reintrodução ou suplementação de harpia sem um planejamento adequado, sem perguntas claras a serem respondidas e sem que conhecimentos prévios necessários sejam obtidos.
Considerando que os recursos para conservação são escassos, o Projeto Harpia atua no sentido de investir recursos e trabalho nas ações que são prioritárias e efetivas na conservação da espécie, identificadas por elementos técnicos, conhecimento científico e ampla discussão com especialistas. O programa ex situ do projeto criou uma rede de segurança para os resgates, reabilitação e devolução das harpias para o local de onde foram removidas na natureza e está organizando um programa de manejo cooperativo dos animais que estão mantidos em cativeiro, pois identificou que esses são as principais funções de conservação de uma população ex situ.
As harpias em zoológicos podem colaborar para as atividades de educação e sensibilização ambiental, além de arrecadação de recursos para ações de conservação da espécie. Pesquisas com os animais em cativeiro também são de fundamental importância, pois podem revelar aspectos da biologia que dificilmente seriam obtidos nos estudos in situ.
O estabelecimento de uma população de segurança demograficamente e geneticamente viável e manejável poderá preservar opções para estratégias de conservação futuras de reintrodução e suplementação, se as outras estratégias não forem suficientes para a conservação da espécie. Para isso, inclusive, a população ex situ precisa ser melhor estudada. Recomendamos que essas sejam as estratégias da conservação da harpia no presente. No momento, a reintrodução de harpias não é prioridade para a sua conservação, mas é potencial para o futuro.
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O post “Reintrodução de harpias: é esse o caminho e o momento?” foi publicado em 26th August 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco