Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui .
Nesta semana, participei como mediadora de uma mesa sobre ditadura promovida pela Companhia das Letras no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Fiquei surpresa, porque em uma terça-feira à noite tinha gente de todas as idades no auditório, que não era grande, mas ficou quase cheio.
Soube pela jornalista Luiza Villaméa, que estava na mesa para falar do livro A Torre – o cotidiano das mulheres encarceradas na ditadura, que houve mais dois eventos sobre a ditadura só naquele dia. Ao que tudo indica, a fala do presidente Lula sobre não “remoer” o passado provocou o efeito contrário na sociedade civil.
Há muito ainda para investigar sobre a ditadura, apesar do “sumiço” da maior parte dos documentos das Forças Armadas desse período. A jornalista Laura Mattos, que estava na mesa para falar de O herói mutilado, por exemplo, pesquisou mais de 2 mil documentos oficiais para contar a saga de Roque Santeiro, a novela de Dias Gomes que marcou a redemocratização brasileira ao estrear na Globo em 1985.
Dez anos antes, em 1975, Roque Santeiro sofreu censura da ditadura – e dessa vez na cara dos telespectadores que assistiram à abertura da esperada primeira novela em cores na TV. Em seguida, porém, em vez das aventuras do falso herói e de sua “fogosa viúva, a que era sem nunca ter sido”, assistiram a um editorial tenso, lido pelo apresentador do Jornal Nacional Cid Moreira narrando o veto da Censura Federal à novela das 8.
Foi quando o peso da censura apareceu claramente para milhões de brasileiros, completamente privados de informação sobre o que de fato acontecia no país. Embora a maioria dos jornais tivesse apoiado o golpe em 1964, com o endurecimento do regime, a partir de 1968, passaram a sofrer na própria carne a violência da ditadura, submetidos à censura prévia a ponto de inviabilizar as edições.
Para ficar em um número, que consta no documentário Mordaça no Estadão, de José Maria Mayrink: entre setembro de 1972 e janeiro de 1975 foram censurados 1.136 textos nos dois principais jornais do grupo Estado de S.Paulo – Estadão e Jornal da Tarde.
No lugar das informações que não podiam circular – até as notícias sobre a epidemia de meningite no país em 1972 foram cortadas –, os editores decidiram sinalizar para os leitores que estavam sendo censurados. No Estadão, os espaços brancos das matérias censuradas eram preenchidos principalmente com poemas de Camões; no Jornal da Tarde, com receitas de bolo.
Mesmo depois que o governo do general Ernesto Geisel retirou a censura prévia dos jornais e emissoras de TV, jornais “alternativos”, como se chamavam à época os veículos produzidos por jornalistas fora das grandes empresas, continuaram a ser apreendidos e jornalistas, enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Um processo que se estendeu à redemocratização. Até mesmo a novela Roque Santeiro, “aclamada como um ícone da volta da liberdade de expressão acumulou 597 páginas na Divisão de Censura de Diversões Públicas”, escreve Laura Mattos.
Nem mesmo a Constituição Cidadã conseguiu pôr um ponto final na censura ao entronizar a liberdade de expressão, como observa Mattos. “Se na ditadura o martelo de juízes se somava à caneta do governo, após a Constituição de 1988 a ‘judicialização’ da censura recrudesceu.”
Nesta quarta-feira, uma decisão judicial manteve censura que vigora desde setembro passado, quando fomos obrigadas a retirar do ar uma reportagem publicada em junho de 2023 sobre denúncias de violência doméstica contra o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). “Assim como todas as nossas matérias, a reportagem em questão foi feita com base em documentos judiciais e fontes que deram seu depoimento sobre os fatos, com propósito informativo e de interesse público”, diz a nota da Agência Pública publicada na quinta-feira.
A liberdade de expressão é uma luta permanente em um país em que poderosos sempre encontram guarida para garantir “o direito ao esquecimento”, esse não fundamental, como o direito à memória e à verdade, mas defendido pelo relator do processo na 6a Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em seu parecer a favor da censura à reportagem:
“[…] imputando ao autor suposto estupro praticado em novembro de 2006 sob pena… nós estamos em 2024, 18 anos atrás, reesquentando novamente matéria espero que a comissão do novo código civil insira e traga o direito ao esquecimento, porque nós estamos com discurso num país cristão de perdão, mas o esquecimento que é o fato não está sendo praticado, lamentavelmente por uma parte da imprensa nesse país. Provavelmente amanhã eu serei chamado de censor e vou ter que dizer isso aqui: não sou censor e nunca fui a favor da censura, porque pela minha idade eu sei o que que a Revolução de 64 fez em termos de censura neste país” (grifo meu).
O desrespeito à liberdade de imprensa através da censura mereceu notas de repúdio de associações de jornalistas como a Abraji e a Ajor e repercutiu em diversos veículos. Mas seguimos proibidas não apenas de publicar a reportagem, mas também de outros conteúdos relacionados ao caso, incluindo a abordagem do tema por esta coluna.
É por isso que encerro a coluna hoje com uma homenagem aos jornalistas que tentaram denunciar a censura durante a ditadura. Só não transcrevo a receita de biscoitos de goma de Maragogi, doce típico alagoano, porque em tempos de internet basta publicar o link .
Bom apetite!
Fonte
O post “Receita de biscoitos de goma de Maragogi” foi publicado em 06/04/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública