“Comecei a ler com 4 anos de idade. Meu pai e minha mãe sempre me incentivaram a aprender mais e mais”, lembra Gelson Henrique, hoje aos 20 anos. Filho de pai carioca e mãe baiana, Gelson cresceu ao lado de quatro irmãos no bairro de Campo Grande, na periferia oeste da cidade do Rio de Janeiro .
Sua mãe fez curso técnico em contabilidade e seu pai, que trabalhava como motorista de caminhão de lixo, só teve oportunidade de voltar ao ensino médio no ano passado. Mesmo assim, os dois sempre encorajaram os filhos a seguir os estudos e a ter uma profissão.
“Meus irmãos mais velhos conseguiram entrar na faculdade, mas eu fui o primeiro a conseguir matrícula numa universidade pública”, orgulha-se Gelson. Ele está no terceiro ano da faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, na Baixada Fluminense.
Infância na periferia
Quando menino, Gelson estudou na escola pública de seu bairro. Ele se lembra de ir a pé para a escola durante todo o ensino fundamental. Cresceu brincando na rua com as outras crianças.
“Havia uma praça no nosso bairro – o que não é muito comum nas periferias – e essa praça fez toda a diferença em nossa vida”, diz. “Tivemos uma infância pobre. Eu e meu irmão levávamos dois biscoitos cada um para o lanche da escola. Mas nunca passamos fome em casa. Tenho uma lembrança feliz de criança.”
Mas, durante a adolescência, Gelson começou a perceber as barreiras de ser um menino negro, de escola pública, de periferia. “Percebi um mundo desigual, percebi o racismo à brasileira, que impede a gente de sonhar com outros lugares”, conta Gelson.
Percebeu que não teve o direito de viver a cidade. Nunca soube, por exemplo, o que era um museu. Não era algo ao alcance de uma família pobre, que vivia na periferia. “Descobri que há toda uma estrutura que não quer que a gente ascenda. Mas também percebi que não existo sozinho. A pele preta traz toda uma ancestralidade.”
E Gelson decidiu abraçar as oportunidades de enfrentar tudo isso.
Vontade de saber mais
Ainda na escola, despertou para a vontade de saber mais. Sempre interessado em novidades, inscreveu-se em um estágio na Fundação da Infância e Adolescência (FIA) do governo estadual.
Entre outros projetos, participou da DHTV – um laboratório de produção audiovisual com adolescentes. Bateu na porta da diretoria para poder participar de encontros do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente.
Conheceu a Plataforma dos Centros Urbanos, iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que visa fortalecer a participação de crianças e adolescentes na promoção de seus direitos, especialmente os mais afetados pelas desigualdades dentro das cidades.
Quando terminou a escola, pensou em arrumar emprego em alguma loja, mas sabia que, se começasse nesse tipo de emprego, não conseguiria sair. E ele queria algo mais. Seus pais ficaram desempregados e a situação piorou. Teve então a chance de atuar em projeto audiovisual do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) que mobilizava jovens que haviam passado pelo sistema socioeducativo.
Muitas barreiras
Gelson nunca pensou que conseguiria chegar a uma universidade pública. “Fazem a gente acreditar que a universidade pública não pertence a nós, jovens, negros, das favelas e periferias”, afirma.
“Quando vi o meu nome, não acreditei. Passei graças à política afirmativa de garantir oportunidade a alunos negros, de baixa renda, vindos da escola pública”, afirma, declarando ter orgulho de ser cotista. Diz ter certeza de que a política de cotas está mudando a história do país.
Depois de conquistar uma vaga, chegou a hora de superar outros desafios. Não é fácil estudar durante o dia, sem poder trabalhar. “Muitas vezes penso em desistir, pois preciso começar a me sustentar e ajudar em casa”.
Ir e voltar todo dia para a faculdade é outra barreira. Demorando quase duas horas para chegar ao campus, o jeito foi batalhar uma vaga no alojamento da universidade para economizar tempo e dinheiro. Hoje, Gelson fica de segunda a sexta-feira no campus e volta para casa no final de semana.
Com o curso de Ciências Sociais, Gelson pretende se preparar para participar de debates sobre políticas públicas e sobre a importância da participação dos jovens e adolescentes.
Em 2018, Gelson e outros quatro amigos criaram o projeto Ci-Joga – um dos finalistas do Geração que Transforma – iniciativa global do UNICEF que visa alavancar soluções criadas por jovens.
O projeto recebeu então um recurso-semente para dar vida à ideia. Foram organizados grupos focais com alunos, familiares e equipes escolares para discutir ações, e foram realizadas atividades escolares para fomentar a participação política de jovens e adolescentes.
“O mais importante foi confirmar que a participação de adolescentes é urgente”, resume Gelson, que agora sonha em levar a proposta para mais escolas e outros bairros da cidade.
Direito de viver
É com essa vivência que Gelson embarcou, a convite do UNICEF, para a Conferência sobre as Cidades Amigas da Criança, realizada em Colônia, na Alemanha, de 15 a 18 de outubro. Junto com outros jovens e adolescentes do mundo, Gelson discutiu como as cidades precisam se transformar para garantir o desenvolvimento pleno de cada criança e de cada adolescente.
“Para mim, cidade amiga da criança é uma cidade que não viole nossos direitos, começando pelo direito à vida, que hoje está ameaçado para um jovem negro”, declara.
Gelson não hesita em dizer que a desigualdade mais gritante de sua cidade é saber que os adolescentes e jovens negros, pobres, são as grandes vítimas de homicídio. Em todo Brasil, 32 meninos e meninas são assassinados por dia – segundo estimativa do UNICEF, a partir de dados oficiais de 2017. “Essa estatística fala de mim, dos meus amigos e precisamos mudar isso.”
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