Por Renato Santana*, especial para o Observatório da Mineração
Edição: Maurício Angelo
Talvez seja difícil para a sociedade não-indígena entender o tamanho da violação a que o povo Mura está submetido no caso da gigantesca mina de potássio em Autazes, no Amazonas, centro de uma disputa entre uma empresa canadense, a Potássio do Brasil, do grupo Forbes & Manhattan e os direitos indígenas previstos na Constituição.
Na primeira matéria, mostramos que a empresa conta com o apoio direto do governo de Jair Bolsonaro para destravar o projeto e que a mineradora ignorou totalmente a consulta prévia necessária e começou a operar. Além disso, quer determinar o que é ou não terra indígena segundo os seus interesses econômicos.
Para ilustrar, imagine a sua casa. Nela viveram os seus bisavós, seus avós, seus pais ao se casarem e agora você vive nela com a sua família. Os ossos de seus antepassados jazem neste chão. Imagine então que, pela morosidade do governo, você não conseguiu regularizar a documentação da casa, erguida em um tempo de funcionamento jurídico diferente.
Aproveitando essa brecha, uma construtora diz que a casa não é sua e passa a fazer medições e a planejar no terreno, sem autorização prévia, alguma outra construção supostamente de interesse coletivo. O governo a ajuda criando medidas para legalizar o ato ilegal em curso. Para tentar facilitar as coisas, a construtora começa a te pressionar, tentar convencer seus familiares com dinheiro, o que gera conflitos internos.
Vereadores e prefeito se dirigem à vizinhança, seduzidos por promessas da construtora e do governo, e falam a respeito de um desenvolvimento estimado que o bairro terá – tratam como certo os benefícios. Por conta disso, a sua família passa a sofrer ameaças nas ruas por impedir o progresso do bairro. Seus filhos são constrangidos na escola.
É mais ou menos isso o que está acontecendo com os Mura. A diferença crucial é que a Terra Indígena (TI) Soares/Urucurituba se estabelece como um direito originário e de usufruto exclusivo do povo Mura, conforme a Constituição Federal.
No meio da disputa, a Potássio do Brasil pegou carona em uma interpretação jurídica descartada por especialistas para tentar definir, por si só, o que é e o que não é Terra Indígena (TI).
Foto de destaque: Alass Derivas – @derivajornalismo para a APIB / Cobertura Colaborativa ATL 2022
Direito indígena é anterior à formação do estado brasileiro
Mas o que realmente é esse direito originário e como ele foi constituído? Precisamos voltar ao Período Colonial para entender este percurso. O Observatório da Mineração entrevistou o advogado Bruno Moraes, professor substituto na Universidade Federal do Pará (UFPA), que possui vasta experiência no tratamento jurídico de terras indígenas e conflitos socioambientais.
O advogado explica que o reconhecimento dos direitos dos povos originários não é ato constitutivo de direto. As ordenações pombalinas, no século 19, reconheciam e traziam essa argumentação de que os povos indígenas eram legítimos detentores de direitos sobre os seus territórios porque os ocupavam antes do estabelecimento da ordem jurídica do Império. A coroa portuguesa deveria respeitar e demarcar esses territórios como medida de reconhecimento desse direito, não de constituição.
Essa legislação, do século 19, foi retomada posteriormente, por diferentes ordens jurídicas da República, durante o século 20, caso da Constituição Federal de 1947, até chegar à Constituição de 1988, “que reconhece no artigo 231 o direito dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Ela traz uma palavra que é significativa: os direitos dos povos indígenas são originários. Ou seja, esses direitos antecedem a própria ordem jurídica constitucional”.
Isso foi lembrado por Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Apib, na abertura do ATL 2022, maior mobilização indígena do Brasil, que reúne neste momento mais de 6 mil indígenas em Brasília.
“O presidente declarou guerra aos povos indígenas. Nosso direito é anterior à invasão dos portugueses e a formação do estado brasileiro. Tem um pacote de maldades no Legislativo que envolvem retrocessos de direitos consolidados, inclusive de cláusulas pétreas da Constituição”, disse Tuxá.
A terra já é indígena independente de demarcação
A Constituição de 88 estabelece, no mesmo artigo 231, a nulidade de qualquer título de propriedade ou posse incidente sobre territórios a serem demarcados. “Se o título é nulo quer dizer que ele não deveria existir em primeiro lugar. A terra já é indígena independente de uma demarcação. Essa é a diferença entre reconhecimento e constituição de direito. A demarcação é um ato de reconhecimento de direito”, frisa Moraes.
A Potássio do Brasil, ao contrário, tenta aproveitar a burocracia do estado, com o apoio do governo Bolsonaro, para passar por cima dos direitos indígenas.
O Decreto 1775/1996 diz que o ato de reconhecimento de uma terra indígena pelo ministro da Justiça é uma declaração “porque não se trata de uma constituição, mas de um reconhecimento. Ele declara, reconhece a existência do direito originário sobre a terra. Nesse sentido, as terras indígenas precisam ser reconhecidas como tal independente do ato administrativo do Estado”, diz.
Moraes ressalta que no caso dos Mura a TI está na fase de esperar a criação de Grupo de Trabalho pela Funai para dar início ao processo administrativo de reconhecimento da TI Soares/Urucurituba. “Perceba que o Estado irá apenas delimitar a TI. Reconhecer quais são os limites dela. Não constitui-la”, afirma.
Indigenato é reconhecido pelo STF
Há jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto a isso. No Acórdão da PET 3388, caso da TI Raposa Serra do Sol, é possível ler diversas manifestações dos ministros, tanto no julgamento ordinário quanto no julgamento dos embargos de declaração no mesmo processo, o reconhecimento do Indigenato como fundamento do direito dos povos indígenas.
O ex-ministro Carlos Ayres Britto, relator da PET, reconheceu o Indigenato como fundamento da ordem jurídica que trata das terras indígenas.
Processos envolvendo outras terras também reafirmam o Indigenato bem como o Recurso Extraordinário com repercussão geral, em trânsito no STF, que “debate estatutos desse Indigenato, mas o princípio do Indigenato é mantido, ele é consenso, tanto na doutrina quanto na jurisprudência brasileira”, explica.
“Se há uma reivindicação Mura pela TI, ela se sustenta sozinha independente do reconhecimento ou não do Estado. A Potássio teria que respeitar e entender essa reivindicação como um ato de direito. Precisa haver Consulta Prévia para ter uma certa segurança jurídica sobre a presença da empresa no território, antes de mais nada”, analisa Moraes. O advogado ressalta isto deve ocorrer independente da ocupação ser indígena. Se fossem comunidades extrativistas, elas deveriam ser consultadas.
Ameaças e coerções
Um dos Mura ouvido pelo Observatório da Mineração pediu para não ser identificado. Afirmou, porém, que precisou se afastar do caso Potássio depois de sofrer ameaças e ter a vida acossada por diferentes agentes. O fato se repetiu em mais algumas tentativas de entrevista, com os Mura preferindo não conceder o depoimento alegando também que suas palavras vêm sendo distorcidas a ponto de um boato correr dando conta de que o Conselho Indígena Mura (CIM) estava a favor da exploração mineral.
O episódio serviu para acirrar os ânimos internos, estratégia comumente usada para a imposição de grandes empreendimentos em terras indígenas, como no caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.
Para citar o boato mais recente, uma notícia informou que a juíza se dirigiu ao território Mura para averiguar se, de fato, o CIM estava favorável ao empreendimento antes mesmo da consulta.
“Por esse motivo decidimos parar de falar com os jornalistas. Falamos algo e acaba saindo diferente da nossa fala. Isso acaba nos enfraquecendo. É muito ruim. Está acontecendo muito ultimamente. Parece que decidiram nos atacar com tudo. A juíza inspecionou, mas não para verificar o que o boato diz. Ela só investigou se a Potássio vem fazendo pressão”, afirma um indígena Mura que preferiu não se identificar.
“Nosso receio é que aconteça como em outros empreendimentos que impactaram terras indígenas. Vem a prostituição, a doença, os preconceitos, a depredação ambiental que mexe com nosso Bem Viver e nosso sagrado. São muitos exemplos de projetos desse nível. Aqui alaga as duas aldeias que estão mais próximas da mina. Até citei para um dos diretores da Potássio: como é que o senhor diz que tem algo bom sendo que o senhor não conhece nosso território? Sabemos onde alaga, seca, onde tem os peixes, o nosso sagrado. Onde vai colocar esse sal de potássio? Já há um impacto dos bois criados na região”, analisa Milena.
A indígena já esteve com representantes da Potássio algumas vezes. Em uma delas, Milena diz que colocou água num copo e sal. Pediu para que o representante bebesse e ele não quis.
Depois emendou: ”como vamos poder sobreviver atacando a Mãe Natureza se dependemos dela? Os animais, as pessoas. Minha aldeia é a aldeia mais distante, mas o rio passa aqui na frente e escorre para cá. O diretor ofereceu dinheiro para que a gente pudesse sobreviver. Será que é assim, chega na casa dos outros oferecendo dinheiro pra gente ir sobreviver em outro lugar? Se o pai Tupã deixou (mineral) debaixo da terra, tem que deixar lá”.
Milena, no entanto, entende que tudo isso deve ser levado para as reuniões de consulta para que os Mura tomem a melhor decisão. Nessas rodadas, a Potássio deverá mostrar o que prepara de contrapartida e outros convidados, como pesquisadores da UFAM, deverão tratar de quais impactos os Mura terão de lidar caso aprovem a permanência da Potássio no território indígena.
Projeto tem que ser paralisado até a demarcação, defende pesquisador
“O projeto da Potássio tem que ser paralisado até a demarcação. Na minha opinião, só a partir daí é que a Consulta Prévia deve ser realizada”, nos aponta o pesquisador Renildo Viana.
Viana escreveu uma tese na UFAM tratando da mineração no território Mura . A tese é o resultado do doutorado em Sociedades e Culturas na Amazônia e do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, coordenado por Alfredo Wagner.
“Procurei discutir o ponto de vista dos Mura a respeito da mineração de potássio. Estabeleci a territorialidade, sobretudo na TI Soares/Urucurituba, e como a mineração impacta essa territorialidade, as vidas”. A tese traz as origens dos conflitos, quais direitos estão sendo violados e as consequências para a vida do povo Mura com o empreendimento.
O pesquisador aponta que o Protocolo de Consulta é muito importante para os povos indígenas para tratar questões que podem afetá-los de forma direta. Trata-se de um instrumento para enfrentar interesses externos: tanto do Estado quando da iniciativa privada.
“Há diversos projetos na Amazônia em que as comunidades não foram consultadas. Defendo que o Protocolo de Consulta seja uma ferramenta de resistência para que os seus direitos sejam respeitados”, afirma.
O pesquisador aponta que os Mura tem uma grande representatividade em Autazes e municípios próximos. “Essas terras são fragmentadas, não são contínuas. Estão em fases distintas do procedimento administrativo. Formam ilhas, digamos assim. Lá no Lago do Soares estima-se que existam 600 indígenas Mura, conforme o Conselho Indígena Mura”, diz.
No Lago do Soares há diversos braços de rio, os igarapés. Nesses locais estão concentradas a maior parte das famílias Mura. Pescam, colhem, caçam e praticam extrativismo. Da mesma forma ocorre na Vila de Urucurituba. Juntas formam a Terra Indígena reivindicada desde 2003. “Nesse espaço a mineradora quer fazer a instalação de um porto, Vila de Urucurituba, e a planta da mina no interior do Lago do Soares”, explica.
Ele aponta que os Mura ocupavam um grande território no século 16. A colonização e os massacres levou os Mura a ter perder território e integrantes. Quando os Mura se aliaram aos revolucionários cabanos, sofreram ainda mais perseguição. “Já há uma presença muito anterior dos Mura nesses territórios reivindicados. Então é inconstitucional dizer que não é uma Terra Indígena”, encerra.
Consulta Prévia ignorada por canadenses desde o início
No processo impetrado na Justiça Federal, o MPF afirmou que não existiu o processo de Consulta Prévia, Livre e Informada, segundo o que estabelece a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.
Também que o órgão ambiental competente era o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), e não o IPAAM, para expedir e reconhecer o processo de licenciamento ambiental. Portanto, a licença 54/2015 do IPAAM devia ser declarada nula.
No dia 7 de março de 2017, a audiência de conciliação determinou: a) a suspensão por seis meses do licenciamento ambiental, para que fosse realizado o processo de consulta prévia ao povo Mura; b) a Potássio do Brasil estava proibida de ter qualquer contato para convencer ou cooptar indígenas do povo Mura; c) que fosse elaborado o protocolo de consulta do povo Mura e d) a fixação de uma multa de R$ 50,000.00 por episódio de descumprimento da paralisação do licenciamento e contato por parte da empresa Potássio do Brasil com os Mura.
“Prosseguiu-se nas reuniões para elaboração dos cronogramas do processo de construção do protocolo, sendo tudo devidamente informado dentro do processo judicial. E em dezembro de 2017 foi solicitado pela empresa Potássio do Brasil que fosse realizada uma assembleia ou reunião em que seria decidido pelo povo Mura a metodologia e o instrumento que deveria ser realizado previamente ou o Protocolo de Consulta ou diretamente um plano de consulta que iria determinar o processo de consulta específico para o povo decidir a respeito da exploração de silvinita em Autazes”, explica Carla Judith Cetina Castro, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua junto aos Mura desde 1990.
De 20 a 22 de fevereiro de 2018, foi realizada uma assembleia, quando o povo Mura decidiu primeiro elaborar o Protocolo de Consulta prévia. A reunião teve a participação de aproximadamente 300 Mura. Os indígenas aprovaram qual seria a metodologia e representatividade na elaboração do seu protocolo.
“Assim também ratificaram o nome do assessor para elaboração do protocolo, datas, pessoas que iriam participar, organizações que poderiam participar, e as aldeias que devem ser consultadas, incluindo as que se encontram nos municípios de Autazes e Careiro da Várzea” relembra a advogada.
Depois dessa assembleia, o povo Mura começou a construir seu Protocolo de Consulta concluído em agosto de 2019 e apresentado em Audiência Pública para a Justiça Federal. Estava tudo pronto para que se desse início ao processo de consulta, conforme estabelecia o protocolo “TRINCHEIRAS: YANDÉ PEARA MURA – Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas”, mas a pandemia provocada pelo novo coronavírus impediu que fossem realizadas as reuniões de pré-consulta.
“Essas reuniões de pré-consulta, como o protocolo do povo Mura estabelece, tratam-se de uma série de reuniões regionais e locais, assim como uma Assembleia Geral, que terá o objetivo de decidir, por exemplo, se medidas administrativas ou legislativas devem ser reconhecidas pelo processo de consulta”, explica a assessora do Cimi.
Outro exemplo contido no Protocolo permite aos Mura decidirem se querem ou não conhecer o empreendimento no processo de consulta caso o impacto seja alto ou deve ser conhecido em outras instâncias como em Conselho Local ou Distrital de Saúde. Se não existir consenso sobre estes impactos, os Mura podem decidir passar pelo processo de Consulta Prévia.
A visita dos peritos judiciais no dia 29 de março de 2022 ocorreu, inclusive, para checar se as paralisações estão em vigor e se a Potássio vem respeitando as determinações da Justiça Federal.
Potássio usa argumento de “geração de empregos” para destravar projeto
Em resposta ao Observatório da Mineração, como mostrado na primeira matéria da série , a Potássio do Brasil insistiu em afirmar que o projeto está fora de terras indígenas, que a Constituição autoriza mineração em TI’s, que não faz incidência política e que apoia a consulta prévia ao povo Mura. Questões desmentidas pelos fatos.
Sobre as propagandas levadas à região de Autazes dando conta de uma lista enorme de benefícios para a população, a Potássio disse que “no campo da geração de emprego e renda, a Potássio do Brasil, durante a fase de construção da planta fabril (período de cerca de três anos), irá gerar, em média, 2.600 empregos diretos e vários indiretos, na região, em outros estados brasileiros e, até mesmo, no exterior. Já na fase de operação da fábrica de fertilizantes de Cloreto de Potássio serão criados cerca de 1.300 postos de trabalho diretos e 16.900 indiretos. Esta fase de operação tem duração prevista para mais de 23 anos”.
O argumento do “desenvolvimento econômico” é sempre usado em todos os projetos do setor mineral para justificar a implantação de um novo empreendimento, ignorando os custos socioambientais que durarão por décadas.
Estudo do Instituto Escolhas provou , por exemplo, que indicadores como PIB per capita, saúde e educação não têm alteração significativa para quem vive nos municípios onde se explora ouro e diamante na Amazônia Legal.
No caso de Autazes, o “desenvolvimento” ideal, segundo as lideranças indígenas ouvidas pela reportagem, seria, antes de tudo, que os direitos conquistados pela Constituição de 1988 fossem respeitados e a tese do Indigenato, reconhecida pelo STF, também.
*Renato Santana é jornalista com quinze anos de experiência em reportagens e assessoria de comunicação. Há pouco mais de dez anos cobre a questão indígena e socioambiental. Venceu o Prêmio Wladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na edição de 2010.
*Maurício Angelo é fundador, diretor-executivo e editor do Observatório da Mineração.
Fonte
O post “
” foi publicado em 7th April 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração