As chuvas no médio curso do rio Araguaia costumam chegar em outubro, mas em 2019 uma grande seca se alastrou até fevereiro de 2020. Quão estranho foi observar pessoas ateando fogo no Cerrado em pleno mês de janeiro! Aqui no Cantão, ariranhas estavam procriando em suas tocas, mas os incêndios queimaram vários barrancos, e muitos filhotes não sobreviveram. As chuvas só chegaram em fevereiro, e com magnitude fora do normal: o rio do Coco, onde se situa nossa base de pesquisas no Cantão, e cujo baixo nível até então nos causava preocupação, de repente chegou a subir cerca de 25 centímetros por dia, com uma diferença de mais de 6 metros somente entre final de janeiro e março. Os ninhos de solta-asa (Hypocnemoides maculicauda) e de jacús-cigana (Opisthocomus hoazin), construídos nos galhos das árvores acima da água, acabaram submersos e muitas ninhadas se perderam.
Esses exemplos, entre muitos, servem de indicador alarmante das alterações que estamos vivendo. De todo lado nos chegam as notícias do caos ambiental: aquecimento, derretimento, resfriamento, tormentas, extinções. A Natureza, que até aqui era uma vítima calada dos nossos malfeitos, está reagindo. Não podemos mais ignorar seus sinais. Finalmente um de seus alertas vermelhos chamou a atenção, por meio do COVID-19.
Esse vírus surgiu a partir do consumo legal de animais silvestres na China, vendidos em mercados chamados de “wet markets” ou “mercados molhados”, por causa do sangue dos animais abatidos ali mesmo, correndo pelo chão. Falamos de cachorros, macacos, cobras, morcegos, sapos, tartarugas, pangolins, cigarras, porquinhos-da-índia, ratos-de-bambu, texugos, ouriços, lontras, civetas e até filhotes de lobo, empilhados vivos em gaiolas, defecando uns sobre os outros, aguardando o momento de serem cruelmente abatidos ali mesmo, em total insalubridade.
Infelizmente, grande parte dos animais silvestres consumidos como alimento ou remédio na Ásia ainda provém de unidades de conservação mal fiscalizadas ou mal gerenciadas ao redor do mundo. Por conta desse desatino, o pangolim-chinês (Manis pentadactyla) se encontra classificado como Criticamente Ameaçado (CR) pela IUCN. O pequeno e carismático primata da foto acima é o lóris lento (do gênero Nycticebus). Loris são vendidos em mercados chineses para uso medicinal e para consumo, ou para serem criados como animais de estimação. Seus dentes são removidos com métodos cruéis, usando alicates ou até mesmo cortadores de unhas, para que possam ser vendidos sem o risco de mordida. Na China, três parques são responsareis por manter 80% da população do ameaçado N.pigmaeus, mas mesmo nelas a especie é arrebatada pelo tráfico ilegal, local e internacional. O Rinoceronte Branco do Norte da África (Ceratotherium simum cottoni) cujas supostas virtudes medicinais atribuídas pelos asiáticos a seu “chifre” alimentaram uma implacável caça ilegal, foi levado à extinção, com os últimos 15 animais em vida livre sendo abatidos no Parque Transfronteiriço de Limpopo, Moçambique, em 2013.
Não bastasse a metade de todas as espécies de tubarão de alto mar enfrentar risco de extinção por causa do comércio de sua carne e pele, recentemente foi deflagrado o tráfico ilegal de pepinos-do-mar para a China, extraídos de santuários marinhos de todo o mundo, inclusive do Parque Estadual da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Em pouco tempo várias espécies da holotúria ficaram ameaçados de extinção.
O governo chinês alega que baniu a venda de animais silvestres. Se esses mercados tornarão a abrir ou não, dependerá do surgimento de uma nova consciência mundial sobre nossa relação com nossos companheiros não-humanos nessa viagem que chamamos Vida.
E não apenas na forma que os consumimos como alimento ou suposta medicina. Em nome do avanço da ciência, terminamos por perpetrar grande sofrimento a muitos animais: em laboratórios de pesquisa para benefício humano, animais são submetidos a atrocidades que lhes causam enorme dor e aflição; dezenas de milhares de cães são dissecados vivos para estudos, sem nenhum tipo de anestesia; muitos tipos de primatas, por serem tão “parecidos” conosco, são os mais usados em estudos de comportamento nos quais são submetidos a todo tipo de privação (materna, social, alimentar, de água, de sono etc.), inferência de dor para observações do medo, choques elétricos para aprendizagem e indução a estados psicológicos estressantes.
Diante da hipocrisia do egocentrismo humano, que, do alto de sua autoproclamada superioridade, aceita como normal que animais sejam submetidos a práticas repugnantes porém inaceitáveis para nossa espécie, penso que a Natureza quer combater o “vírus Homem” que a abate. Devemos ouvi-la e entender que embora não reaja na hora, mais cedo ou mais tarde Ela se vinga.
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O post “Precisamos mudar a forma como lidamos com a Natureza” foi publicado em 22nd April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco