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“A fome é irmã da guerra seja ela travada com armas e bombas ou com tarifas e subsídios”, disse nesta semana o presidente Lula em evento promovido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em Roma, jogando mais uma vez os holofotes nesse assunto “delicado e perigoso”, como o definiu um dos primeiros intelectuais brasileiros a se debruçar sobre a fome, o geógrafo e diplomata Josué de Castro.
Logo no prefácio de “Geografia da Fome”, publicado inicialmente em 1946, Castro, citado por Lula no discurso em Roma, relata a dificuldade de encontrar obras acadêmicas sobre o tema, o que chamou de “conspiração do silêncio”. Foi neste mesmo ano que a FAO – que comemorou agora seus 80 anos – foi criada. Em 1951, Josué de Castro foi eleito presidente do conselho da FAO, e reeleito em 1953.
“Foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social – a revolução russa – nas quais pereceram 17 milhões de criaturas, 12 milhões de fome – para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo”, escrevia Castro, pouco depois do final da Segunda Guerra.
Àquela altura, não se tinha o número real dos mortos, hoje atualizado para mais de 50 milhões diretamente atingidos, além de estimados 28 milhões mortos pela fome e doenças decorrentes do conflito. O mundo ainda descobria as dimensões dos horrores desta guerra em que o holocausto matou 6 milhões de judeus e bombas nucleares foram detonadas pelos Estados Unidos em duas cidades no Japão.
Castro cita o constrangimento moral e “os interesses econômicos das minorias dominantes” como motivos para “escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno”. Hoje temos que ficar só com a segunda razão, já que a vergonha parece ter desaparecido da Terra depois de mais um genocídio – este em Gaza – agora transmitido em tempo real para boa parte da humanidade e utilizando propositalmente a fome como arma.
“A existência da fome é uma escolha política” é o título do artigo assinado por Lula e publicado, também nesta semana, em nove grandes jornais do mundo. Uma frase que Josué de Castro, que analisava a fome como fenômeno social, decorrente da organização econômica e política do país, certamente aplaudiria. Mas, talvez, com ressalvas.
Lula que fez da promessa de três refeições diárias para todos os brasileiros mote de campanha eleitoral e que agora pode capitalizar internacionalmente e dentro do país o fato de ter tirado o Brasil duas vezes do Mapa da Fome – a última recentemente – ainda governa uma população com cerca de 2,5% de famintos. E vai ter que lutar bastante para que a fome e a pobreza não voltem a crescer.
Explico: apesar do avanço, diante dos 4,2% (9 milhões) em estado de desnutrição entre 2020 e 2022, temos muita gente faminta para um país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, além de 35 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, ou seja, que comem de forma insuficiente em termos de quantidade e qualidade.
Mais do que isso, a desigualdade, fator apontado pelo próprio presidente para explicar a fome, não diminuiu. Ao contrário. Basta olhar para o 0,1% mais rico do país, com renda de 1,75 milhão anuais, que detém 12,5% da renda nacional.
São 5 milhões de desnutridos contra 200 mil milionários que viram a curva de seus rendimentos se acelerar em nível bem superior às outras faixas de renda. Entre 2017 e 2023, enquanto os super ricos tiveram 58% de aumento em seus rendimentos, o PIB cresceu 1,8% e a renda das famílias 1,4%. E isso se repete pela pirâmide, com a taxa de crescimento diminuindo à medida que a renda decresce – ou seja, para a maioria.
Mesmo que as políticas públicas e os programas sociais tragam mais arroz e feijão para os mais pobres, o fosso social entre os mais ricos e mais pobres só se aprofundou. Como será isso a médio e longo prazo?
Para complicar mais um pouquinho, temos as mudanças climáticas, com secas, enchentes e incêndios, trazendo com elas a fome e a pobreza; e a depredação ambiental que afeta sobretudo a Amazônia, a maior parte dela situada na região Norte, apontada pelo IBGE como a mais faminta do país. Em 2024, 37,7% dos domicílios do Norte do país estavam em situação de insegurança alimentar – dentre eles 6,3% na forma mais grave.
“Um planeta mais quente será também um planeta com mais fome”, disse também o presidente Lula em Roma, e as imagens de comunidades ribeirinhas e indígenas privadas de peixe e com roças incendiadas durante a seca do ano passado na Amazônia ainda estão na cabeça dos mais atentos.
Pior do que isso, como revelou a tragédia Yanomami e de outros povos indígenas e ribeirinhos, elas também sofrem com a desnutrição e o envenenamento na água e nos peixes dos rios contaminados pelo garimpo e por agrotóxicos e sofrem com a vulnerabilidade da floresta aos incêndios, agravada pelo desmatamento.
Enquanto isso, no país dos privilégios trava-se uma batalha entre o Ministério do Meio Ambiente e o agro em torno da atualização do Plano Clima, em que o país se compromete a reduzir 67% das emissões de gases estufa em 10 anos. Isso porque, pela primeira vez, o governo incluiu o desmatamento no cálculo das emissões do agro, além daquelas resultantes da atividade em si, como o metano dos rebanhos.
Com isso, o setor tornou-se responsável por 70% das emissões do país e obrigado a se comprometer a uma redução de 54% até 2035 de acordo com o Plano Clima.
O pessoal do agro tem espalhado a notícia de que o governo estaria revendo os cálculos e que fará um abatimento de 30% na sua conta de emissões. O Ministério do Meio Ambiente confirma que está de fato revendo os cálculos, podendo haver “realocação de emissões”. Diz, porém, que a revisão não é para atender ao agro, mas para incluir sugestões da população que vieram pela Internet. Também nega qualquer tipo de porcentagem definida.
Vamos esperar que nem o agro, nem o governo envergonhem o país anfitrião da COP30 que, aliás, como lembramos no episódio desta semana do Bom dia, Fim do Mundo, será realizada na capital do Pará, o estado mais faminto do país.
Fonte
O post “Precisamos falar sobre a fome e o agro na COP30” foi publicado em 17/10/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública