Os freios invisíveis que atrapalham o avanço das ações contra as mudanças climáticas
O Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, criado em 2014, passou por uma revisão este ano após um adiamento de dois anos devido à pandemia. Aprovada e sancionada em julho de 2023, a nova lei vale até 2029 e introduz a dimensão climática pela primeira vez, incorporando princípios do Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas) e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o que é considerado um avanço por especialistas.
Porém, algumas diretrizes do documento vão na contramão da meta de reduzir em 50% as emissões de gases de efeito estufa até 2030. Entre elas, estão a possibilidade de aumentar vagas para automóveis em edifícios localizados em áreas com grande oferta de transporte público e a mudança da destinação de 30% do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), antes exclusivamente orientado à mobilidade sustentável, para gastos gerais, incluindo melhorias no asfalto, o que beneficia o transporte individual.
Especialistas ouvidos pela reportagem de Um Só Planeta, que faz um balanço do plano sob a perspectiva ambiental, criticam ainda a falta de efetividade das medidas previstas. O Fundo Municipal de Parques, criado em 2014, por exemplo, não foi regulamentado e, dos cerca de 160 parques previstos, apenas 16 foram implementados até agora.
Para os analistas, é preciso vontade política, fiscalização, além de indicadores mais claros para que seja possível acompanhar avanços e retrocessos na transformação do plano em políticas públicas – e cobrar por mudanças.
Aumento de emissões
“Apesar de se propor a ser um plano diretor alinhado à emergência climática, os instrumentos previstos por ele estão desalinhados com o necessário para a adaptação e a redução de emissão de gases de efeito estufa”, resume a arquiteta e urbanista Hannah Machado, coordenadora do grupo de trabalho sobre questões ligadas à emergência climática e cidade no IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo).
O PDE libera uma vaga de garagem a cada 60m² de área construída por apartamento localizado próximo à infraestrutura de transporte coletivo. A unidade precisa ter, no mínimo, 30m² para que a construtora disponibilize uma vaga de garagem sem ter que pagar ao poder público por isso. No plano anterior, de 2002, não existia limite mínimo para a concessão de vagas. Apesar de estabelecer limites, o novo documento acaba incentivando a construção de apartamentos maiores, de alto padrão, e, consequentemente, de mais vagas de garagem, ampliando o impacto socioambiental, defende Machado.
“Ao invés de viabilizar o acesso de pessoas de menor renda à moradia perto do transporte de alta capacidade, a construção de edifícios com apartamentos maiores e mais vagas atende às necessidades das pessoas mais ricas, que são as que possuem carro”, argumenta. “Além disso, a possibilidade de construir mais vagas vai na contramão do que é necessário fazer para reduzir a emissão de gases de efeito estufa.”
Na cidade, a maior parte das emissões (61%) tem origem no transporte, de acordo com o Plano de Ação Climática municipal, cuja meta é diminuir pela metade as emissões até 2030. Para atingir o objetivo, o plano prevê a necessidade de reduzir 25% das viagens realizadas por carro e de 57% de veículos movidos a combustíveis fósseis.
“São ações que precisam de mudanças estruturais e o plano diretor é uma mudança estrutural sistêmica para que as pessoas se sintam mais encorajadas a andar de transporte coletivo e ativo do que individual motorizado”, afirma.
Outra medida do plano que vai na contramão da redução de emissões é a alteração do Fundurb. Enquanto o fundo destinava 30% do seu recursos exclusivamente para o transporte sustentável, incluindo melhorias em calçadas, ciclovias e corredores de ônibus, a parcela passa agora a ser aplicável a qualquer obra de infraestrutura de transporte, incluindo pavimentação e recapeamento.
“Isso induz o uso do carro por meio de alocação de recursos”, aponta a especialista. “É um retrocesso na perspectiva da agenda climática.”
A revisão aumentou o raio onde podem haver construções de grandes edifícios próximas ao transporte coletivo. O raio, de até 500 metros a partir de estações de trem e metrô e de 250 metros a partir de corredores de ônibus, foi ampliado a 700 e 400 metros, respectivamente. Chamada de adensamento, a estratégia visa concentrar mais pessoas em um menor espaço. O objetivo é ampliar a oferta de edifícios mais altos nos eixos de transportes, aproximando os habitantes da infraestrutura urbana e visando diminuir as emissões com deslocamentos, além de evitar habitações irregulares em áreas de preservação ambiental e nos limites de represas, nos extremos do município.
Os especialistas aprovam a medida, mas ponderam que o adensamento tem acontecido apenas em áreas elitizadas da cidade, visadas pelo mercado imobiliário e onde apenas a população mais rica da cidade, que se locomove majoritariamente de carro, pode arcar com os custos. Assim, enquanto bairros que já são caros de se morar, como Pinheiros, recebem ainda mais construções, áreas periféricas, como as zonas Sul e Leste, seguem com ofertas escassas de moradia e de transporte.
“Corredores de ônibus que a prefeitura não vai entregar no próximo ano e o próprio metrô, que está com as obras atrasadas, ampliariam significativamente eixos de adensamento de habitação na cidade caso fossem concluídos”, defende Igor Pantoja, coordenador de relações institucionais do Instituto Cidades Sustentáveis e da Rede Nossa São Paulo.
De acordo com os especialistas, a ampliação da área de adensamento impacta na paisagem, reduzindo a quantidade de áreas verdes, além de interferir na distribuição de luz solar e aumentar as ilhas de calor.
“Apesar de o plano ter levado à constituição, na Lei de Zoneamento, de uma cota ambiental para incentivar empreendimentos mais verdes, trabalhos científicos mostram que há uma perda em termos de arborização e área verdes nas áreas de adensamento desde 2014”, aponta a arquiteta Luciana Travassos, professora de Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Segundo Travassos, a revisão perdeu a chance de alterar aspectos que minaram o sucesso de objetivos do plano ao longo desses nove anos.
“Foi uma revisão a serviço do mercado imobiliário ao invés de privilegiar uma melhor relação entre sociedade e natureza”, diz.
Legislativo e Prefeitura
O relator do projeto na Câmara Municipal, Rodrigo Goulart (PSD), admite que a revisão do plano aumentou a flexibilidade sobre o adensamento e as vagas de garagem, mas afirma que isso será compensado com uma maior arrecadação para o Fundurb no caso de as construtoras não seguirem as determinações. Ele se refere à outorga onerosa, uma contrapartida financeira paga ao município e que tem como destino o fundo. Ela é aplicada quando o interessado constrói acima dos limites definidos pelo plano.
“O que vimos no PDE de 2014 foi o oposto do adensamento desejado: a explosão de micro apartamentos e apartamentos grandes com duas ou três vagas nos eixos mais valorizados da cidade, sem nenhuma contrapartida. A revisão buscou corrigir isso”, afirma o vereador, acrescentando que o plano incentiva áreas construídas para habitações populares.
“Os ajustes que foram feitos possibilitam uma maior arrecadação do Fundurb e, consequentemente, um maior poder de investimento do setor público em infraestrutura de transporte e habitação para a população mais carente da cidade”, afirma o político. Além disso, diz ele, contrapartidas ambientais deverão ser incluídas na revisão da Lei de Zoneamento, atualmente em processo de revisão para regular e aplicar o PDE.
Sobre o aumento de vagas nos edifícios, o vereador argumenta que o uso do carro não está diretamente relacionado à oferta de vagas. “Outros fatores mais importantes precisam ser levados em conta para que a população deixe o carro na garagem”, diz. Já o secretário adjunto da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo, José Armênio de Brito Cruz, afirma que o PDE tem pouco poder de limitar o uso de automóveis diante de um modelo nacional industrial e rodoviarista.
“Não vamos proibir, mas, se quiser oferecer vaga para apartamento com menos de 30m², vai ter que pagar”, diz.
Cruz define o mercado imobiliário como um “parceiro”, já que, com as taxas cobradas pelas construções, é financiada a infraestrutura da cidade. Com os recursos da outorga onerosa, a secretaria previu no PIU (Projeto de Intervenção Urbana) do Setor Central que 220 mil pessoas – das 800 mil que devem se mudar para São Paulo até 2030 – morem no centro da cidade. “Assim, evitamos que 25% das pessoas vão para o espraiamento da cidade, ocupando áreas verdes e de mananciais. São ações que atuam diretamente sobre a mudança climática.”
Novidades do plano
Especialistas da área ambiental destacam como uma das principais inovações do plano a demarcação da zona rural da cidade, com a preservação de ecossistemas naturais e incentivo à agricultura orgânica. As Soluções Baseadas na Natureza (SBNs), obras de infraestrutura feitas com base na lógica natural, também são outra novidade. A estratégia substituiria, por exemplo, grandes reservatórios concretados, como os piscinões, por jardins de chuva, cuja permeabilidade do solo permite absorção de água, além de armazenar gás carbônico e reduzir o calor.
Também foi introduzido no PDE um incentivo à desapropriação de áreas privadas para sua transformação em parques urbanos. O documento previa, inicialmente, a criação de 167 parques – número reduzido para 146 na revisão deste ano. Segundo a prefeitura, a diminuição aconteceu pela inviabilidade de implementar alguns deles, enquanto outros foram enquadrados em categorias diferentes de áreas verdes. Na revisão, também foram removidos aqueles sob gestão estadual e que estavam duplicados. O plano previu o Fundo Municipal de Parques, um mecanismo inédito em que, a cada real doado pela sociedade civil, a prefeitura contribuiria com o mesmo valor para aquisição de parques.
Porém, a maioria das medidas não foi colocada em prática. Em nove anos de proposta, apenas 16 parques foram criados e o fundo ainda não foi regulamentado.
“O plano trouxe avanços importantes e chegou a ser pela ONU Habitat como iniciativa inovadora, mas falta regulamentação”, aponta Pantoja.
Entre os parques previstos estão os lineares, localizados às margens dos rios, com objetivo de aumentar a capacidade de absorver a água da chuva e evitar enchentes. Apesar de prevista, a proteção da várzea dos rios muitas vezes não acontece. No total, apenas dois parques do tipo foram criados.
“Observamos que as áreas do Arco do Tietê, situadas na várzea do rio Tietê e do Arco no entorno do Rio de Pinheiros também serão tratados como eixos destinados ao mesmo grau de verticalização pelo projeto até 2024, com adensamento com até 4 vezes a área dos terrenos e sem limites de gabarito”, afirma o engenheiro civil Ivan Maglio, pesquisador do LABVerde e de Adaptação Climática da USP.
Na opinião do especialista, o plano adota diretrizes causadoras de impactos ambientais ao atender e priorizar as pressões do mercado imobiliário. O secretário José Cruz rebate que projetos de intervenção urbana, que se seguem ao PDE, preveem diferenciais para as construções nas áreas de várzeas dos rios, como a exigência de uma maior capacidade de drenagem e fomento à cobertura vegetal nessas regiões.
Limites de aplicação
O plano diretor é parte do marco regulatório urbano, juntamente com a Lei de Zoneamento, que regula o uso de ocupação do solo. Esses instrumentos têm a função de orientar o desenvolvimento das cidades brasileiras, de acordo com o Estatuto da Cidade, de 2001. O plano é ainda seguido por outras leis, que levam as diretrizes à prática, como os planos municipais setoriais e os projetos de intervenção urbana.
“Para sair do papel, parques lineares e outros tipos de áreas verdes precisam de investimentos de diversos setores, incluindo habitação social e saneamento básico”, esclarece Travassos. De acordo com a arquiteta, é necessário que instrumentos jurídicos, orçamentários e de fiscalização deem sequência ao PDE para que o documento se materialize em ações. “Se esses instrumentos não estiverem estruturados, o plano acaba sendo muito limitado nas suas possibilidades de mudança.”
“O plano diretor tem ajudado nos avanços ambientais, mas depende muito da vontade política para implementá-lo e da cobrança da sociedade, pois não é uma questão automática”, diz Maglio. “Se não houver recursos de fato para essas áreas, podemos ficar com boas diretrizes, mas sem implantação de parques urbanos e unidades de conservação, arborização e medidas que reforcem a resiliência das cidades às mudanças climáticas.”
O secretário José Cruz admite que a implantação das diretrizes é um desafio para a administração pública e defende a pressão social. “No planejamento, estamos conseguindo recursos. O próximo desafio é conseguir velocidade de execução.”
Participar dos conselhos regionais de meio ambiente, que são deliberativos, ou seja, têm capacidade de decidir os rumos da cidade nesse tema, é apontado pelos especialistas como uma forma de pressão social pela efetivação das medidas do PDE. Para acompanhar a efetividade das medidas, eles defendem a criação de indicadores mais claros, que permitam monitorar com precisão o cumprimento das metas do plano.
“A prefeitura vai ser o principal indutor da disponibilização desses dados”, aponta Felipe Barcellos, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Segundo ele, os indicadores devem permitir verificar, por exemplo, se o adensamento nos eixos de transporte reduziu a necessidade de longas viagens e se houve diminuição das emissões de gás de efeito estufa por passageiro por quilômetro rodado. “É uma maneira de controle social e de ajuste dos caminhos, para que os planos possam ser revisados periodicamente.”
Avanços até aqui
No Diagnóstico da Aplicação do PDE, a prefeitura apresentou uma análise técnica da aplicação das diretrizes do plano de 2014 a 2021. Na área ambiental, o PDE deu origem a planos municipais de Conservação e Recuperação de Áreas Prestadoras de Serviços Ambientais (PMSA), de Arborização Urbana (PMAU), da Mata Atlântica (PMMA) e de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres (Planpavel). Os demais planos setoriais, incluindo o de Redução de Riscos, deverão ser formulados até 2025, de acordo com a gestão municipal.
Ainda segundo a prefeitura, na revisão, o plano passou a considerar o Marco Legal do Saneamento Básico na aplicação da Política de Saneamento Ambiental da cidade, além de incluir ações prioritárias para o Sistema de Drenagem. Pela primeira vez, o PDE prevê a elaboração de um Plano Municipal Hidroviário, que deverá integrar suas ações com a dos Planos Municipais de Mobilidade Urbana, Saneamento Ambiental Integrado, Drenagem e Gestão Integrada de Resíduos Sólidos.
Outro destaque do balanço é a efetivação do Programa de Pagamento por Prestação de Serviços Ambientais em Áreas de Proteção aos Mananciais. Previsto no PDE, o mecanismo foi efetivado em 2022 e permite que a prefeitura pague aos proprietários de imóvel por serviços prestados nas áreas de manancial.
Demais fontes consultadas: Alejandro Jorge Dorado, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados em Gestão Ambiental (IEAGA); José Ramos de Carvalho, presidente da Associação Paulista dos Gestores Ambientais (Apgam); Paula Freire Santoro, arquiteta e coordenadora LabCidade, da Universidade de São Paulo (USP); Tassia Botti, arquiteta especialista em Meio Ambiente e Sustentabilidade do IAB-SP
Fonte: UM SÓ PLANETA
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O post “Plano Diretor de SP aborda clima pela primeira vez, mas prevê medidas que aumentam emissões” foi publicado em 16/10/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Tratamento de Água