Em mais uma tentativa bolsonarista de minimizar a gravidade dos acontecimentos do 8 de janeiro e que não encontra respaldo na maioria da população brasileira, conforme pesquisas DataFolha e Quest , o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) apresentou nesta segunda-feira (14) um pedido de urgência para um projeto de lei que propõe anistia aos condenados pela invasão dos prédios dos Poderes em Brasília em 2023.
A urgência do PL da anistia que elimina formalidades e acelera o processo para que o projeto seja discutido no plenário, sugere a anulação das penas para aqueles condenados por atos de depredação , em 8 de janeiro, e para os envolvidos em uma tentativa de golpe de Estado que buscava impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para manter o candidato derrotado Bolsonaro no poder.

O pedido de Sóstenes contou com 264 assinaturas — eram necessárias 257 para que o requerimento fosse aceito – e a inclusão na pauta depende agora do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
Diante deste cenário de pressão para anistiar crimes contra o Estado e as possíveis consequências para a democracia, o podcast Pauta Pública desta semana entrevistou o filósofo Vladimir Safatle, professor livre-docente da Universidade de São Paulo que, em 2018, no período em que Jair Bolsonaro viria a ser eleito presidente, havia alertado que “quando você não acerta as contas com a história, a história te assombra”, em referência a outra Anistia, a de 1979, que concedeu perdão a todos os que cometeram crimes políticos ou conexos na Ditadura Militar (1964-1985).
Safatle avaliou à época que a eleição de Bolsonaro poderia representar um golpe militar em marcha no país, com características próprias, que poderia acontecer a qualquer momento: “O Brasil vai viver os próximos meses e os próximos anos com essa espada de Dâmocles na cabeça, [o golpe] pode acontecer a qualquer momento”.
Agora, sete anos depois, Safatle afirma que conceder perdão a golpistas do 8 de janeiro de 2023 seria repetir o erro histórico de um país que, desde a redemocratização, acumula ataques à democracia, rompimentos institucionais e crises políticas marcadas pela impunidade.
Sendo um dos autores do manifesto Anistia Nunca Mais, uma petição pública que exige um Tribunal Popular da Pandemia – e a punição dos crimes do governo Bolsonaro, o filósofo defende que uma punição exemplar será simbólica para a democracia do Brasil, “seria a primeira vez na história que o Brasil daria uma resposta minimamente firme contra um golpe de Estado, um elemento histórico importante para, pelo menos, preservar o país de certas coisas ou para lutar melhor.”
A seguir, os principais trechos da entrevista que estará disponível em podcast na próxima sexta-feira, 18 de abril.
O PL protocolou, na segunda-feira, 14, pedido de urgência para o projeto da anistia, com apoio de siglas da base de Lula, passando na frente de pautas urgentes de interesse da população. Como você vê isso?
Isso mostra como esse partido não é nada mais do que uma associação que visa normalizar crimes contra o Estado, essa é a sua função, ele [PL] normaliza o que pode ser o pior de todos os crimes possíveis, que é crime contra o estado democrático, então acho que isso mostra, afinal de contas, o que esse partido é um elemento fundamental de desordem social, só isso, não está preocupado com ninguém, nem com nada relacionado à população de maneira mais concreta.
Existem indícios de que o ex-presidente Jair Bolsonaro participou do planejamento de um golpe de Estado, da tentativa de assassinato do presidente eleito, do seu vice, e do ministro do Supremo, Alexandre de Moraes. Ainda assim, uma parcela da sociedade apoia o político. O que isso significa?
Significa que todas as vezes que você teve alguma possibilidade de uma mobilização popular para constituição de uma sociedade um pouco mais igualitária e com um pouco de soberania popular, o golpe apareceu. Ou seja, esse tipo de violência é um elemento constituinte da direita brasileira. Eles operaram assim em 1964, na passagem do Estado Novo e da República Velha. Ou seja, esse é um elemento naturalizado do processo.
Por isso, a punição das pessoas envolvidas no golpe de Estado, não vai parar a direita. Não é disso que se trata, trata-se de outra coisa. Eles vão continuar, eles têm força orgânica, o governo tem problemas estruturais, eles crescem em torno desses problemas com apoio da direita dita liberal, porque não existe isso de Direita Democrática, né? Então bem, isso faz parte da sociedade brasileira. Agora, e essa Direita ela se alia organicamente aos setores mais violentos e reacionários da direita. Nesse caso, ela vai se aliar à extrema direita.

Caso eles ganhem o ano que vem [eleições de 2026], você vai ver esse movimento macabro de que vários ministros do Lula vão aparecer como ministros do governo de extrema direita. Então, eu insisto nisso para dizer, essa dinâmica, ela vai continuar. Aí você precisa de uma resposta política, que não está ocorrendo. Não vai adiantar uma resposta jurídica. Mas a resposta jurídica, ela tem uma função, que é dizer ‘nós não vamos ficar parados diante de um golpe de Estado’. O erro do Brasil foi esse. O Brasil passou de 1945 a 1964 com algumas tentativas de golpe de Estado e nenhuma dessas pessoas foi presa ou desarmada.
Você tem uma história contínua de instabilidade produzida pelas forças armadas, porque as forças armadas do Brasil é uma força de desordem nacional. Ela é o eixo da força da desordem nacional. E isso vai continuar, então seria a primeira vez na história que você dá uma resposta minimamente firme contra um golpe de estado. Seria muito importante. Isso não vai resolver o problema com a extrema direita. Mesmo Bolsonaro preso, tem uma fila de pessoas que podem ocupar esse lugar e que vão ocupar. Você pode ter certeza. Mas pelo menos você teria um elemento histórico importante para preservar o país de certas coisas ou pelo menos para a gente lutar melhor, pelo menos isso.
Nas manifestações a favor de Bolsonaro, cartazes diziam: ‘Abaixo a justiça, sim a anistia’. No caso, anistia para os atos de 8 de janeiro, para quem esteve envolvido na tentativa de golpe de estado. É correto afirmar que para uma parcela da população o conceito de justiça é opcional?
Sim, para uma parte dela, porque essa parte da população que se junta à extrema direita, ela sabe que, digamos, o recurso à lei é um recurso estratégico, é um recurso instrumental, meramente retórico. Por isso, tudo o que for feito para penalizar as pessoas que se envolveram em uma tentativa de golpe de Estado explícita, é absolutamente legítimo.
Não foi uma baderna. As pessoas não estavam lá se manifestando livremente. Elas quebraram os três poderes, elas invadiram os três poderes, a Polícia Militar permitiu essa invasão. Essas pessoas tiveram autorização para fazer, sabe, para expor a população brasileira, a vulnerabilidade da democracia no seu sentido mais concreto, do termo, invadindo os prédios, para que você criasse condições para que o governo fosse obrigado a editar uma Lei de Garantia de Ordem e que passasse literalmente o governo para as Forças Militares e as Forças Armadas. Essa era a questão.
Se a Polícia Militar não é garantia de nenhuma lei e ordem, ela é a figura da desordem. E a gente viu isso muito claramente no governo Bolsonaro. Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal, ou seja, esses efetivos policiais, que eles foram mobilizados para desordem nacional.
Então é absolutamente necessário e legítimo que essas pessoas sejam punidas. Eu diria que é a condição para que a democracia brasileira consiga ser preservada de uma maneira ou de outra e não só as pessoas que estavam lá, mas principalmente o setor empresarial que financiou o processo, que financiou toda essa organização. Incluídos o setor militar e o setor político. Porque o que acontece? Esse setor político que estava envolvido, ele começa a legislar em causa própria. Ele está lá no congresso, são deputados, e senadores, essas pessoas deveriam ter sido afastadas. Não tem nenhuma razão mais forte dentro de uma democracia para você afastar alguém do que atentado contra a democracia. Tentativa aberta, clara de golpe de Estado. Você tem até a minuta do golpe.
E um dos pontos do Manifesto Anistia Nunca Mais você fala sobre desmilitarização do Estado. Por que isso é importante?
Eu fiz parte de um grupo de ativistas, que foi responsável por essa campanha que ocorreu logo no início do governo Lula, que era uma campanha por a Anistia Nunca Mais, ou seja, pela responsabilização penal de Bolsonaro e não só do Bolsonaro, mas dos membros do seu governo, dos seus apoiadores, seus apoiadores no mundo empresarial por crimes contra a democracia e crimes contra a saúde pública, vinculado às negligências abertas da gestão do Covid-19, né? E de fato, uma das pautas importantes desse nosso debate era ter a consciência, digamos, de que o estado brasileiro era muito permeado por forças militares ainda hoje. Quer dizer, a gente viu muito claramente isso no governo Bolsonaro. Foi um governo militar, na verdade, um governo militar que se serviu das estruturas civis. Era um projeto dos militares, que ainda existe, que ainda está presente no Brasil, eu lembro muito claramente anos atrás, eu escrevia falando do risco de um golpe militar do Brasil e eu tinha que ouvir uma série de chacotas, dizendo que isso era um absurdo, que isso era um troço completamente delirante, sendo que a gente tava vendo muito claramente a dinâmica de um golpe militar em curso. Hoje, eu acho que ninguém mais tem dúvida, de que o Brasil não só teve sob o horizonte de um golpe militar, mas ele continua sobre esse horizonte. Depois do dia 8 de janeiro, o mínimo que a gente esperava era que houvesse uma espécie de depuração das Forças Armadas como a gente viu no governo da Colômbia, do Petro, que ao assumir o governo, afastou praticamente 70 militares da alta cúpula. Porque era a maneira que ele tinha de garantir que o núcleo político das Forças Armadas não estaria em atuação. Isso não aconteceu no Brasil.
Fonte
O post “PL da Anistia: Vladimir Safatle defende punição para preservar a democracia” foi publicado em 15/04/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública