A construção de um complexo eólico em Canudos, na Bahia, tem dividido pesquisadores sobre os riscos que o empreendimento poderá trazer à arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), uma das espécies mais raras do mundo e em perigo de extinção.
Construído pela multinacional francesa Voltalia, o empreendimento está sendo erguido a cerca de 40 km do principal refúgio da espécie e em área que pode ser utilizada como rota para sua alimentação.
O projeto, já iniciado, prevê a instalação de 28 turbinas eólicas em um primeiro momento e outras 53 em uma segunda fase. O empreendimento contará com uma rede de transmissão de energia de 50km, que passará pelos municípios de Canudos e Jeremoabo. Toda eletricidade produzida será vendida para a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), em um contrato já fechado pelos próximos 20 anos.
A empresa garante que medidas mitigadoras estão sendo tomadas para evitar a morte e minimizar os impactos que as turbinas possam ter na avifauna local, especialmente sobre a arara-azul-de-lear, mas ainda não há consenso entre especialistas sobre os riscos associados.
Colisão com turbinas
A arara-azul-de-lear tem o hábito de realizar longos voos diariamente, que podem chegar a até 80 km, para se alimentar em áreas vizinhas ao seu dormitório. Aos pares ou em bandos, a espécie sai ao amanhecer e voa em alta velocidade em alturas relativamente elevadas, entre 80 e 150 metros. Ao final da tarde, retornam de várias direções.
Pelo projeto da Voltalia, as turbinas a serem instaladas no local vão alcançar 105 metros de altura e terão pás de 85 metros de comprimento por 66 de largura, capazes de varrer uma área de 150 metros de diâmetro.
Sendo a A. leari uma ave de médio a grande porte – elas têm cerca de 900 gramas e chegam a 75cm de comprimento – o temor é que suas características físicas e de comportamento de voo aumentem a chance de colisão com as turbinas.
“Um único evento de colisão poderá incidir na morte de muitos indivíduos e comprometer a viabilidade populacional da espécie em pouco tempo”, diz Gláucia Drummond, superintendente da Fundação Biodiversitas, entidade que há 30 anos mantém uma área particular de 1.500 hectares na região, onde é realizado um programa de conservação da arara-azul-de-lear.
A probabilidade de acidentes com a espécie foi apontada no próprio Parecer Técnico do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), o órgão responsável pelo licenciamento da obra, mas faltam dados que indiquem o risco real para as A. leari.
E é justamente a falta de dados um dos pontos centrais desta história.
Licenciamento simplificado
Não existem estudos, no Brasil nem no mundo, sobre o impacto que turbinas eólicas podem ter em psitacídeos, família de aves da qual as araras-azuis-de-lear fazem parte. As pesquisas existentes são voltadas majoritariamente para aves migratórias e aves de rapina, que possuem características físicas e comportamentais muito distintas da A. leari.
Esta lacuna de informações poderia ser, ao menos parcialmente, preenchida se um Estudo de Impacto Ambiental e um Relatório de Impacto Ambiental completos fossem feitos, defende a Biodiversitas, assim como determina a lei ambiental brasileira.
Segundo norma definida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), empreendimentos que pretendem se instalar em áreas de ocorrência de espécie ameaçada de extinção e endemismo restrito devem obrigatoriamente apresentar estes documentos.
Apesar da exigência expressa em lei, o Inema aprovou o projeto somente com a apresentação do licenciamento simplificado.
((o))eco cobrou, por vários dias, um posicionamento do órgão ambiental da Bahia sobre a inexigência do EIA-RIMA, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.
Em nota, a Voltalia Energia do Brasil disse que “possui todas as licenças necessárias para a fase atual do parque eólico e que já realizou e permanece realizando os diversos estudos para avaliação e monitoramento de potenciais impactos na região, com propostas de ações de controle e preservação, reafirmando seu compromisso com o meio ambiente”.
Medidas de mitigação e acompanhamento
Apesar de não ter solicitado o EIA-RIMA, o Inema determinou que a concessão da licença prévia à Voltalia fosse condicionada à criação de um programa de conservação para a arara-azul-de-lear. Para isso, a multinacional contratou a empresa de consultoria Qualis, que conta com uma das maiores especialistas no país sobre a espécie, a bióloga Érica Pacífico.
Segundo Érica, a Voltalia está comprometida em mitigar ao máximo os impactos sobre as araras e tem aceitado e implementado todas as orientações que são fornecidas a ela.
“Temos consultado muitos especialistas em colisões, em mitigação em parques eólicos, lido muitos artigos, e todas as medidas de mitigação que propomos, incluindo as de alta tecnologia, eles assumem, porque querem trabalhar com risco zero de acidentes com araras”, disse Érica a ((o))eco.
Dentre as medidas propostas pela Qualis e que já estão sendo implementadas pela empresa estão a mudança das rotas de acesso ao parque eólico, para que não haja trânsito próximo a áreas mais sensíveis, e o aterramento da rede de média tensão, a fim de evitar eletrocussões .
Além disso, segundo a pesquisadora, a empresa se comprometeu a adotar outras ações, como pintar as pás das turbinas para torná-las mais visíveis durante o dia, e instalar luzes piscantes para aumentar a visibilidade noturna. Também já está estabelecido que as turbinas serão desligadas nos horários de lusco-fusco, pela manhã e ao final da tarde, quando a visibilidade é menor.
“Combinar o horário de operação das turbinas com a probabilidade de passagem das araras é uma medida eficaz, porque é possível fazer a previsão da movimentação das aves, mesmo com a variação que existe ao longo do ano e entre anos”, diz.
Érica informa que já foi iniciado um trabalho de monitoramento de longo prazo, para que as informações sobre as rotas usadas pelas araras fiquem mais claras, mas que “ainda não há evidência de que [o local em que serão instaladas as turbinas] seja um ponto de passagem importante”.
A alta vulnerabilidade da espécie e o impacto que uma única perda pode representar para sua população, no entanto, fez a Fundação Biodiversitas solicitar que estudos prévios mais aprofundados fossem feitos antes de o complexo ser, de fato, instalado.
“Em função da incapacidade, reconhecida pela empresa, de se prever os efeitos dos aerogeradores sobre as araras, propomos que estes estudos sejam antecipados e que a Licença de Instalação fique condicionada à apresentação e análise de seus resultados”, dizia um ofício enviado em abril passado pela Fundação à Secretaria de Meio Ambiente da Bahia e ao Inema. O documento nunca foi respondido.
O ideal, diz a Biodiversitas, é que uma amostra da população das araras fosse marcada e monitorada por ao menos seis meses, para analisar a forma como elas atravessam a área, em qual horário e como se comportam ao encontrar um obstáculo. Somente com tais dados seria possível indicar se as medidas propostas pela empresa serão, de fato, efetivas.
“No Brasil a eólica é uma energia relativamente nova, que a gente apoia, porque temos que mudar nossa matriz energética, mas não pode ser a qualquer custo, de qualquer jeito. Tem lei para isso e a lei tem que ser respeitada”, diz Glaucia Drummond.
Érica Pacífico, por sua vez, salienta que, tão importante quanto realizar estudos prévios, é garantir o monitoramento ao longo de todo tempo de operação do complexo. “Aquele ponto pode não ser rota hoje, mas daqui a 20 anos, se a população das araras aumenta e ali passa a ser rota, eu quero que ainda não colida nenhum arara naquela localidade”, diz.
Arara-azul-de-lear
Espécie endêmica da caatinga baiana, entres os rios São Francisco e Vaza-Barris, a arara-azul-de-lear já esteve criticamente ameaçada de extinção, com população reduzida a 40 indivíduos na natureza pela ação do comércio ilegal internacional de animais silvestres.
Ela foi descoberta em 1823, quando diversos exemplares foram enviados para zoológicos na Europa, mas quase nada se sabia da procedência e sua área de ocorrência. Nem mesmo quando ela foi descrita cientificamente em 1856, através de uma pele em museu, cuja origem era somente descrita como “Brasil”.
Demorou um século para que os pesquisadores desvendassem o mistério de sua procedência. Em 1950, o ornitólogo Olivério Mario de Oliveira Pinto “redescobriu” a espécie após uma expedição ao Nordeste, ao encontrar um exemplar cativo na cidade de Juazeiro, na Bahia. Desta expedição, se definiu a área provável de distribuição da A. leari.
No final da década de 1970 e ao longo de 1980, a população das araras foi realmente localizada em uma área muito reduzida da caatinga baiana. Atualmente, quase a totalidade da população das araras-azuis-de-lear encontra-se dentro da Estação Ecológica do Raso da Catarina, local de sua morada.
A população estimada da espécie é de 1.263 araras na natureza. No entanto, o número atual de indivíduos maduros, em idade reprodutiva, não passa de 250, o que não é suficiente para que o risco de extinção seja eliminado. “A perda de um único casal desta espécie implica em, aproximadamente, 1% de sua população reprodutiva, o que pode ser considerado um impacto significativo”, diz o trecho do parecer técnico do próprio Inema.
A espécie é classificada como “em perigo de Extinção” pela União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN) e figura nas listas vermelhas oficiais de fauna ameaçada de extinção do Estado da Bahia e na lista oficial brasileira. A A.leari é alvo de conservação da iniciativa internacional Aliança para Extinção Zero (Alliance for Zero Extinction) e de sua correspondente nacional, a Aliança Brasileira para Extinção Zero (BAZE). Além disso, o Raso da Catarina é considerado um hotspot para conservação.
Por todos esses motivos, pesquisadores da Fundação Biodiversitas pediram a suspensão imediata do licenciamento, com indicação de locais alternativos para instalação do complexo eólico, ou o condicionamento da concessão das licenças de instalação e operação à conclusão dos estudos prévios, para evitar que exemplares sejam perdidos.
O pleito dos pesquisadores também conta com o apoio da sociedade civil: um abaixo assinado contra a instalação do Complexo em Canudos já conseguiu cerca de 50 mil assinaturas.
A multinacional, por sua vez, além de garantir que trabalha com o objetivo de que nenhum exemplar seja perdido, tem investido recursos expressivos em programas e ações paralelas que dificilmente seriam implementadas com os recursos das iniciativas nacionais, como o Programa de Conservação do Licuri, principal alimento das araras, e ações socioambientais. Além disso, a empresa estuda a possibilidade de transformar em área protegida a região de Barreiras, berçário da A. leari frequentemente saqueado por traficantes de animais silvestres.
A Voltalia Energia do Brasil tem grandes planos de expansão. Em junho passado, a empresa registrou na Agência Nacional de Energia Elétrica o requerimento de outorga (DRO) para instalação de usinas eólicas em outra cidade do sertão baiano , a cerca de 100 km do atual empreendimento.
O complexo eólico em Canudos será uma grande oportunidade de a empresa mostrar seu comprometimento com o meio ambiente e com as espécies ameaçadas brasileiras. E ela vai precisar desse selo de aprovação: a cidade em que a multinacional quer expandir seus negócios é local de endemismo da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), espécie ainda mais vulnerável que a arara-azul-de-lear, extinta na natureza há 21 anos, reduzida a menos de 200 exemplares em cativeiro e alvo de um programa internacional que visa sua reintrodução nas matas do município de Curaçá, o mesmo que a Voltália pretende instalar suas futuras turbinas.
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O post “Pesquisadores temem que complexo eólico na Bahia coloque em risco arara-azul-de lear” foi publicado em 15th July 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco