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O governador de São Paulo, o bolsonarista de formação militar Tarcísio de Freitas (Republicanos), já demonstrou em público sua completa indiferença a respeito das denúncias de violações de direitos humanos que marcam duas operações da Polícia Militar paulista na Baixada Santista. Deflagradas após policiais militares terem sido assassinados, as operações Escudo e Verão mataram, somadas, 84 pessoas desde julho do ano passado.
Indiferença, no caso de um governador que se apresenta como avalista das ações da sua Polícia Militar, denota aderência.
“O pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não tô nem aí”, ironizou Tarcísio em 8 de março. Ele consegue fazer brincadeira com dezenas de mortos. Naquele dia, a Conectas Direitos Humanos anunciou que iria, em parceria com a Comissão Arns, denunciar ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suíça, “as operações letais e a escalada de violência policial na Baixada Santista”.
O brincalhão Freitas, um inimigo das câmeras corporais que comprovadamente ajudam a reduzir as mortes provocadas por policiais, e também as mortes dos seus próprios policiais, deu de ombros. Ao microfone, ele deu pleno apoio político ao resultado dos supostos “confrontos armados” – na verdade, alegações que os policiais apresentam ao justificar as mortes e que deveriam ser devidamente checadas de forma independente.
“Eu acompanhei muito de perto essas operações”, afiançou o governador. “Não me parece ser o que está acontecendo [abusos contra os direitos humanos]. […] A gente vai fazer o que é correto […] A gente tem uma polícia profissional que merece todo nosso respeito. Não tem bandido na polícia […]. Tem uma turma profissional pra caramba.”
O governador disse que tem recebido nas ruas a seguinte manifestação: “‘Tarcísio, muito obrigado pelo que vocês estão fazendo, nunca ninguém fez isso’. Eu ouvi isso no Judiciário”.
São inúmeras e volumosas as dúvidas sobre as operações. Suspeitas divulgadas em reportagens jornalísticas, como as feitas por esta Agência Pública .
Em fevereiro passado, um relatório feito pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo e por organizações da sociedade civil denunciou pelo menos cinco casos de execução sumária por policiais militares, além de um caso de “tentativa de execução, duas invasões ilegais de domicílio e seis casos de abusos policiais” em apenas três dias da Operação Escudo.
Em 6 de março, o G1 revelou que corpos de vítimas da PM na Baixada têm sido levados a hospitais a fim de evitar a chamada “perícia de local” das mortes. Quando o corpo é retirado do lugar em que tombou, a perícia tem enormes dificuldades para dizer, em síntese, se houve ou não uma execução.
A PM, em nota, disse que iria apurar a denúncia. Contudo, no mesmo dia o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, não reconheceu “nenhum excesso ” nas operações.
De um lado diz-se que vai se apurar, do outro já se sabe que não ocorreu nada de errado. Declarações como essas de Tarcísio e de Derrite dão a certeza de que não é possível aguardar, de parte do governo de São Paulo, uma resposta completa, e nem mesmo isenta, para todas as denúncias que brotam de vários lados.
Investigações de homicídios são, de modo geral, atribuição da polícia estadual e do Ministério Público nos estados. Entre as exceções está a chamada federalização, que tecnicamente leva o nome de Incidente de Deslocamento de Competência, o IDC, e pela qual a Polícia Federal, o Ministério Público Federal (MPF) e a Justiça Federal podem assumir casos de competência original dos estados.
Pela lei brasileira, o procurador-geral da República é a única autoridade habilitada a ajuizar um IDC no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o único foro competente para julgar o pedido.
Em setembro passado, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou um julgamento importante sobre esse assunto. Ao julgar duas ações diretas de inconstitucionalidade movidas por associações de magistrados (números 3.486 e 3.493), o tribunal validou a norma constitucional que permite o deslocamento, para a Justiça Federal, dos casos que envolvem graves violações dos direitos humanos.
A possibilidade da federalização foi inserida na Emenda Constitucional n. 45, de 2004, a chamada Reforma do Judiciário, com apoio das organizações de direitos humanos e em sintonia com as recomendações de organismos internacionais. De lá para cá, apenas dez casos foram levados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao STJ. Desses, apenas a metade foi aceita pelo tribunal, segundo números citados pelo relator, o ministro Dias Toffoli, em seu voto.
É um número ínfimo se comparado à enormidade de violações de direitos humanos registradas no Brasil. Revela como a prática está muito longe de ser incorporada à lista das prioridades da PGR.
No seu voto, Dias Toffoli citou um julgamento no STJ, em 2010, sobre a federalização que menciona três elementos “como de necessária configuração para a adoção dessa medida excepcional”: “grave violação dos direitos humanos; risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas na apuração do ilícito”.
Tarcísio “Tô Nem Aí” Freitas não deu resposta efetiva sobre as mortes na Baixada Santista, tanto que as organizações de direitos humanos tiveram que levar a denúncia à ONU.
A jurisprudência apoiaria um IDC para poder retirar do governo de São Paulo a competência da apuração das mortes na Baixada. Em 2013, por exemplo, o STJ acolheu uma solicitação da PGR para deslocar de Goiás três investigações sobre crimes supostamente praticados por policiais. A PGR disse que o governo de Goiás “não só era omisso a respeito da violência como atuava para legitimar a atuação policial violenta”. É só substituir Goiás por São Paulo que cabe certinho.
Em 2022, o STJ decidiu federalizar a investigação de homicídios ocorridos em 2006 na cidade de São Paulo no caso que ficou conhecido como Chacina do Parque Bristol (cinco pessoas mortas por encapuzados), parte do “Maio Sangrento” cometido por agentes da segurança pública em represália a ataques da facção criminosa PCC, o Primeiro Comando da Capital.
Sem nenhum registro anterior de destaque no MPF por atuação em defesa dos direitos humanos, o procurador da República Paulo Gonet foi indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao comando da PGR e tomou posse em 18 de dezembro passado.
Nos anos 1990, como integrante da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos na ditadura civil-militar (1964-1985), Gonet votou contra o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de vários militantes da esquerda e opositores da ditadura.
Em uma nota de repúdio à nomeação de Gonet na PGR, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) listou no ano passado alguns casos em que o atual procurador-geral votou contra: Antônio Ferreira Pinto, Augusto Soares de Cunha, Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Edson Luís de Lima Souto, Edson Neves Quaresma, Eremias Delizoicov, Jeová Assis Gomes, José Campos Barreto, Marcos Antônio da Silva Lima, Neide Alves dos Santos, Ornalino Cândido da Silva, Otávio Soares Ferreira da Cunha, Otoniel Campos Barreto, Ronaldo Mouth Queiroz e Zuleika (Zuzu) Angel Jones.
Segundo a CNN, Gonet já “escreveu artigos se posicionando contra a descriminalização do aborto” e “de maneira contrária à política de cotas”.
Certa feita Gonet foi definido pela bolsonarista Bia Kicis como “conservador raiz” e “cristão”. Em 2019, chegou a ser cotado para comandar a PGR durante o governo de Jair Bolsonaro e foi levado por Kicis para uma conversa com o então presidente.
Tem essas credenciais a única pessoa legalmente autorizada a pedir uma investigação da Polícia Federal sobre as chacinas em São Paulo. Desde que tomou posse, em dezembro, Gonet não ajuizou nenhum IDC no STJ (os dois últimos IDCs foram ajuizados pela PGR quatro dias antes da posse de Gonet). Também não se ouviu dele publicamente nenhuma palavra sobre as mortes na Baixada Santista e a ação da polícia.
Um dos cinco pedidos de federalização rejeitados pelo STJ desde 2004 foi o caso dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro. O julgamento do pedido ocorreu em 2020.
Só no ano passado, três anos depois, a Polícia Federal entrou no caso e trouxe um relatório final com diversas conclusões, provas e indícios que serão avaliados pelo Judiciário, indicando, pela primeira vez, indícios sobre os supostos mandantes.
Uma lição do caso Marielle é que certas investigações promovidas pelas polícias de estados governados por políticos avessos à pauta dos direitos humanos, como Tarcísio de Freitas em São Paulo, devem ser federalizadas. Em casos de homicídio, quando as provas se perdem mais rapidamente, a transferência da apuração deveria ser agilizada. A postura inerte do atual procurador-geral da República sobre os crimes na Baixada indica que tal lição não foi assimilada por quem deveria. Cadê Gonet?
Fonte
O post “Paulo Gonet, chefe da PGR, assiste inerte às chacinas de SP” foi publicado em 10/04/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública