Em um momento de intensas transformações e de conflitos internacionais, a escolha do novo líder da Igreja Católica Romana gera uma grande expectativa. A morte de Jorge Bergoglio, o papa Francisco, primeiro sumo pontífice latino-americano e jesuíta, deixou um legado reformista, como a bênção para casais homoafetivos, o perdão às mulheres que fizeram aborto, que antes eram excomungadas e o reconhecimento de que a Igreja deve se envergonhar a pedir perdão às vítimas de abuso sexuais cometidos por padres.
A escolha de um novo pontífice, após um papado reformista e em meio ao avanço da extrema-direita pelo mundo, abre um novo capítulo político para a instituição. As movimentações para as eleições no Vaticano já estão em andamento e o episódio do Pauta Pública da semana fala sobre os desdobramentos desse momento histórico. O entrevistado é o Frei Betto — frade dominicano, escritor e assessor de movimentos pastorais e sociais — que acompanhou de perto os principais marcos do papado de Francisco e analisa o atual papel político da Igreja Católica.
De acordo com o frade, a conjuntura atual de guerras e conflitos internacionais exige um papa bem preparado, com habilidades diplomáticas para governar a instituição religiosa que congrega mais de um bilhão de fiéis pelo mundo. “Se tivermos um papa obtuso, sem visão global, sem conhecimento dessa conjuntura internacional, realmente nós teremos aí um retrocesso vergonhoso”, afirma Frei Betto.
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 165
A reforma de Francisco e a disputa política no Vaticano – com Frei Betto
Qual a sua avaliação do período de papado do Francisco?
O papa Francisco realmente veio para implementar as decisões do Concílio Vaticano II, que ocorreu entre 1962 e 65, e que até agora ficaram por serem implementadas. Uma ou outra coisa os papas anteriores fizeram, mas não estruturalmente. O Francisco queria mudar a igreja estruturalmente. Então, ele ensaiou vários avanços, por isso que ele convocou inúmeros sínodos. O que é um sínodo? O sínodo é justamente a instância inferior ao concílio, aquela que tem autoridade para implementar.
O Francisco poderia ter feito isso sem convocar ninguém, porque ele era o único monarca absoluto do Ocidente. O que é o monarca absoluto? No Oriente há vários, entre eles o rei da Arábia Saudita. É uma pessoa que tem o poder e não há nenhuma instância abaixo que possa censurá-la, julgá-la, condená-la, etc. Essa é a figura do papa. Só que o Francisco era um democrata. Então, ele não queria impor. Ele queria criar consensos e dar alguns avanços importantes.
Primeiro papa a fazer uma encíclica em defesa dos direitos da natureza, Laudato Si, (do latim louvado sejas) Francisco não só descreve a degradação ambiental, como aponta as causas, dizendo que ela não resulta do desequilíbrio climático, resulta da exploração predatória dos recursos do planeta pelos grandes grupos econômicos, que vitimiza sobretudo os mais pobres.
Na pauta de costumes, Francisco foi muito revolucionário. Acolheu os homossexuais e obrigou os sacerdotes a batizarem filhos e filhas de casais homoafetivos, liberou a bênção para esses casais, não conseguiu liberar a bênção com um caráter sacramental, como acontece na igreja com casais heterossexuais.
Ele também avançou na questão dos divorciados, permitindo que os divorciados possam ter um novo casamento na igreja. Avançou também na questão do aborto, ou seja, não liberou o aborto, em determinadas circunstâncias, como muitos queriam, mas permitiu que as mulheres que abortam fossem absolvidas pelos seus confessores e antes isso não era possível. O aborto era um fator de exclusão da comunhão católica.
O Papa Francisco tentou quebrar a forte misoginia que marca a tradição da Igreja Católica. Ele nomeou várias mulheres para funções importantes no Vaticano, mas não conseguiu que a mulher tivesse acesso ao sacerdócio. É uma luta que nós continuamos e esperamos que o novo Papa venha a fazer avanços importantes nesse sentido. Também queria acabar com o celibato obrigatório no segmento ocidental da Igreja Católica. Aqui há uma explicação a ser feita.
A Igreja Católica Roma congrega 24 segmentos históricos. 23 são do Oriente. Em todos os 23, os sacerdotes podem ou não é facultativo contrair matrimônio. O que não se admite é que seja nomeado bispo, para ser bispo tem que ser celibatário. Só o segmento ocidental, que é majoritário, romano, é que tem a obrigação de celibato, que tem a obrigação de celibato para todos os sacerdotes.
Ele também foi um crítico contundente do capitalismo, embora nunca tenha usado esse nome. Mas em todos os documentos, todas as encíclicas, ele critica vigorosamente usando metáforas. Imperialismo internacional do dinheiro, a globalização da supremacia econômica e reitera a importância de se buscar um novo modelo econômico para a humanidade, que ele chamava de economia de Clara e Francisco [movimento inspirado em Francisco de Assis e Santa Clara, que busca uma abordagem humanitária para a economia]. Chegou a convocar eventos com economistas de todo mundo para debater esse modelo pós-capitalista de sociedade.
Ele deixa um legado muito forte sobretudo na sua opção pelos pobres, que já estava simbolizada desde o primeiro dia quando ele escolheu o nome de Francisco e o seu testemunho de um homem aberto a todas as religiões, não só as cristãs e a todas as pessoas sem preconceito, sem discriminação.
O momento político que estamos vivendo, de campanhas de desinformação, avanço da extrema-direita, do neofascismo e do ultraconservadorismo. Como o momento interfere na escolha de um novo papa?
É uma conjuntura muito desfavorável a escolha de um papa progressista. Porque a pressão desses líderes conservadores será muito grande. Pressão que só ocorrerá antes das portas do conclave se fecharem, porque aí dentro do conclave é impossível qualquer tipo de pressão, a não ser interna.
Não podemos esquecer que hoje a maioria dos bispos e sacerdotes são das safras de João Paulo II e Bento XVI, que somadas resultam em 34 anos. Então, havia muitos bispos e cardeais que não concordavam com a linha de Francisco. Daí, a minha previsão é que nós teremos um conclave atribulado. Creio que pode haver também um fator surpreendente, que é justamente pelo fato de haver uma ascensão da direita no mundo, e os cardeais optarem por um fator de equilíbrio, que seria um papa progressista.
Possivelmente haverá um bom número de cardeais a favor de um cardeal africano, porque desde o século quinto, não há papa africano E hoje o catolicismo mais cresce na África. Acontece que, na minha opinião, os cardeais africanos são conservadores. Então a ala franciscana não vai querer que seja um africano conservador, vai querer alguém que dê continuidade à linha do Francisco.
Portanto, a minha conclusão é que será um papa italiano. De novo, o papado voltará às mãos dos italianos. Eles não se conformam de terem perdido, desde a eleição de João Paulo II e, ao mesmo tempo, tem pelo menos cinco cardeais italianos que são muito identificados com a linha de Francisco e pode ser que um deles seja o eleito. É a minha previsão.
Quais seriam as consequências reais da eleição de um papa conservador?
No Oriente, no mundo oriental, mesmo na África, a figura do papa não tem muita importância, mas no Ocidente, sim. É uma figura simbólica, tradicional, histórica, muito reverberada pela grande mídia e o domínio do mundo está no Ocidente, não no Oriente, com exceção da China, que hoje é uma potência. Mas o domínio ideológico, cultural, econômico vem do Ocidente, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.
Daí, o peso que o papado tem, porque as figuras e os líderes desses países ocidentais metropolitanos, gostem ou não, eles pelo menos respeitam o papa. Eles podem não concordar, podem falar mal, mas respeitam. Quando o papa decide ir a esses países, nenhum deles cria obstáculo, porque se sabe da importância política que tem a visita de um papa e até econômica.
Agora, de outro lado, existem coisas na Igreja que são questões adquiridas. Nenhum papa vai conseguir acabar com a Teologia da Libertação [corrente nascida na América Latina, na década de 1970, busca interpretar a fé cristã à luz da realidade social, especialmente da pobreza e da opressão, e defender os direitos dos pobres e oprimidos]. Isso já está entranhado já na teologia daqueles que atuam junto aos pobres, não tem como fazer retroceder. Tanto que o João Paulo II ensinava a condená-la e não conseguiu. Ele conseguiu censurá-la como Bento XVI, mas não condená-la. E, no fim, ele teve até que fazer uma autocrítica, quando num dos documentos ele disse que a teologia da libertação era imprescindível para a igreja da América Latina.
É verdade que hoje ela existe também na África, na Ásia e mesmo em setores mais populares da Europa. Então, a essa conflitividade que tem hoje vai exigir um papa bem preparado que tenha espírito e habilidades diplomáticas, isso é fundamental, porque senão o retrocesso será brutal. Se tivermos um Papa obtuso, sem visão global, sem conhecimento dessa conjuntura internacional, realmente nós teremos aí um retrocesso vergonhoso até, eu diria. Vamos esperar que os cardeais tenham bom senso e elejam alguém que seja digno de representar uma instituição que tem tanto peso e congrega 1 bilhão e 300 milhões de fiéis.
Fonte
O post “Papa sem visão global será retrocesso vergonhoso, diz Frei Betto” foi publicado em 29/04/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública