O mundo globalizado em que vivemos é marcado por um dramático aumento na atividade humana na Terra e por uma maior movimentação de pessoas e mercadorias ao redor do globo. Como consequência, outros seres vivos têm viajado junto conosco, muitas vezes pegando carona de forma acidental, ou em outras situações sendo levadas propositadamente e introduzidas fora da sua área natural de ocorrência. Muitas dessas espécies introduzidas acabam nem conseguindo sobreviver no novo ambiente. Mas algumas delas conseguem se dispersar e estabelecer novas populações além do ponto onde foram introduzidas.
Essas são as chamadas espécies exóticas invasoras, atualmente reconhecidas como uma das maiores ameaças à biodiversidade e responsáveis por imensos impactos econômicos e dramáticos impactos sociais em todo o mundo. Você certamente conhece ou já ouviu de muitas ou de algumas delas – o mexilhão-dourado (Limnoperma fortunei), o javali (Sus scrofa), o mosquito-da-dengue (Aedes aegypti), a tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus) e boa parte das plantas ornamentais que usamos nos nossos jardins são exemplos de espécies exóticas invasoras. Temos hoje mais de 450 espécies exóticas invasoras no Brasil, algumas delas com importância econômica e que devem ser manejadas corretamente por quem as produz para que tenhamos nossos objetivos de sustentabilidade atingidos.
A disseminação de um agente causador de doença infecciosa, como vírus e bactérias, pode ter muito em comum com o processo de invasão biológica. Em primeiro lugar, podemos transportar esses agentes para além da sua área de distribuição natural e introduzi-los em novas áreas, nas quais eles não chegariam naturalmente. Por razões diversas, que vão desde aumento da conversão de áreas naturais até o tráfico e consumo de animais silvestres, nosso contato com esses agentes tem sido mais frequente. Como nós e as mercadorias que compramos e vendemos viajam cada vez mais e para lugares cada vez mais remotos, o número de agentes viajando também aumenta.
Como as viagens são cada vez mais rápidas, a chance de sobrevivência em viagens mais curtas tende a ser maior do que em viagens mais longas. Uma vez chegando, o estabelecimento desses agentes nas novas áreas vai depender que consigam lidar com as condições ambientais nessas regiões de ocorrência, o que inclui o potencial de encontrar outros tipos de hospedeiros. Uma vez sobrevivendo e conseguindo reproduzir, a próxima etapa é a disseminação ou o espalhamento a partir de pessoas infectadas, com ou sem sintomas, dependendo do agente. A descrição que acabo de fazer é muito semelhante a um processo de invasão biológica.
É claro que nem todos os agentes são levados para fora da sua área de distribuição natural para áreas distantes, e muitas doenças acabam ficando contidas nas regiões onde evoluíram. Outra grande diferença que vejo entre os dois processos é que o espalhamento de agentes causadores de doenças infecciosas é algo que chama muito mais a atenção das pessoas do que invasões biológicas, que ameaçam a biodiversidade, por razões óbvias. Porém, quando nos referimos a invasões biológicas, devemos também considerar o tema como algo de relevância para a saúde pública e para a produção agrícola, tendo em vista que várias das pragas nos nossos sistemas produtivos também são espécies exóticas invasoras.
Infelizmente os impactos à biodiversidade são deixados de lado de maneira geral, apesar de espécies exóticas invasoras serem consideradas uma das cinco maiores causas de perda de biodiversidade, juntamente com mudanças climáticas, conversão de habitats, poluição e sobreexploração de recursos naturais.
Mas o ponto para o qual quero chamar a atenção tem relação com nossa capacidade de prevenção. É evidente que quando conseguimos implementar estratégias preventivas contra a chegada de espécies exóticas invasoras, os custos são muito mais baixos do que depois que a espécie já se estabeleceu e se espalhou. Há uma estimativa de que para cada um dólar gasto em prevenção, 14 dólares que seriam gastos em controle são economizados. Além de representar uma economia imensa para os cofres públicos que são mantidos por todos nós, ainda não temos os impactos negativos associados aos processos de invasão biológica.
Transpondo essa lógica para a pandemia da Covid-19, toda a discussão com relação ao achatamento da curva só existe porque deixamos o vírus chegar e se espalhar rapidamente, mas nunca paramos para discutir o que deveríamos ter feito para que a curva nem existisse. Não estou desmerecendo aqui todo o esforço que vem sendo feito para que a curva seja achatada, de modo a dar uma sobrevida ao nosso sistema público de saúde. Muito pelo contrário. Sabemos que prevenir é muito mais barato e efetivo do que remediar, e a melhor forma de fazermos isso é entendendo as causas e implementando medidas preventivas para que essas espécies nem viagem, nem cheguem, nem tenham a chance de se estabelecer em novos locais. Esse mesmo raciocínio é válido tanto para doenças infecciosas emergentes quanto para invasões biológicas.
Neste sentido, devemos lançar mão de evidências científicas sobre esses problemas sistêmicos, de modo a encontrar formas de reduzir nossa pressão sobre sistemas naturais e implementar medidas de biossegurança que reduzam nossa vulnerabilidade. Considerando o caminho que temos trilhado até agora, é muito provável que uma próxima doença já esteja a caminho. Para podermos contar nossa história de outra maneira, precisamos reinventar nossa relação com a natureza de modo a reduzir problemas sistêmicos que ameacem o nosso próprio bem-estar. Essa reinvenção é também um dos nossos maiores desafios no presente.
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O post “Pandemias, invasões biológicas e o mundo que queremos” foi publicado em 19th April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco