DO OC – Quase metade dos documentos de Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC na sigla em inglês, as metas de cada país para o Acordo de Paris) publicados entre 2019 e março de 2023 inclui explícita ou implicitamente planos para manter ou aumentar a produção de combustíveis fósseis, o que vai na contramão das metas do Acordo de Paris e dos esforços para barrar o aumento da temperatura global. A conclusão é de um relatório publicado pelo Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI) no dia 14 de junho, que avaliou uma centena de NDCs de países que produzem combustíveis fósseis, inclusive o Brasil.
As NDCs publicadas entre 2019 e 2023 são as de “segunda rodada”, ou seja, fruto da atualização das metas de cada país (que, segundo as regras do tratado, deveriam ser sempre para aumentar a ambição em relação às anteriores). Na primeira rodada, que compreende os documentos publicados entre 2015 e 2019, um terço seguia a linha de continuidade ou aumento na produção de fósseis. Já em relação às estratégias de longo prazo, que miram a neutralidade em carbono no meio do século, mais de um terço segue essa direção.
NDCs e estratégias de longo prazo são documentos nos quais governos comunicam os planos para conter as mudanças climáticas no processo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). O primeiro é exigido pelo Acordo de Paris e o segundo é voluntário. Pesquisadores do SEI analisaram 103 NDCs de primeira rodada, 95 NDCs de segunda rodada e 31 estratégias de longo prazo.
Para Fernanda Carvalho, coordenadora de política global para clima e energia na WWF Internacional, a situação é bastante problemática. “Essas NDCs, principalmente as de segunda rodada, foram apresentadas com metas que seriam até 2030. Ou seja, até 2030 a gente tem um grande número de países que, nas suas obrigações com o clima, não está se comprometendo com a eliminação de combustíveis fósseis”, diz.
Carvalho lembra que o relatório-síntese do IPCC apresentado em março foi enfático ao dizer que os combustíveis são grandes emissores de gases de efeito estufa. A especialista espera que o Global Stocktake – um balanço estabelecido pelo Acordo de Paris para “avaliar o progresso coletivo para alcançar o propósito do Acordo [de Paris] e seus objetivos de longo prazo” – dê uma indicação para a revisão das metas. O primeiro balanço começou na COP26 (26ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas) e deve ser concluído na COP28, que está marcada para o fim do ano nos Emirados Árabes Unidos.
“A gente espera que o Global Stocktake dê recomendações fortes de que os países têm que considerar isso [a redução e eliminação dos combustíveis fósseis] nas NDCs”, argumenta a especialista. “As NDCs podem ser revistas em qualquer tempo. O ciclo normalmente seria de cinco em cinco anos, mas como a gente não está seguindo a trajetória para a [temperatura global] não passar 1.5ºC, há justificativa [para rever]”, completa.
O relatório do SEI mostra que alguns dos maiores produtores de combustíveis fósseis, como Estados Unidos, Canadá, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita falam em reduzir as emissões da produção ao diminuir a liberação e queima de metano, melhorar a eficiência de aquecedores usados para extração de óleo, trocar o transporte de carvão feito por caminhões para ferrovias e construir nova infraestrutura de extração usando as “melhores tecnologias”. No entanto, não indicam a intenção de reduzir o volume de produção. Somente na última década, os EUA, maior produtor mundial de petróleo, dobraram sua produção de óleo e gás.
Outros países comunicam explicitamente planos para continuar ou aumentar a extração de combustíveis fósseis. Na primeira rodada, o objetivo aparecia em 12 NDCs, mas saltou para 23 na segunda. Em estratégias de longo prazo aparece em seis. Entre os países estão a Austrália (carvão), o Japão (gás) e o Reino Unido (petróleo e gás).
A estratégia de longo prazo da Austrália, por exemplo, prevê que a produção de combustíveis fósseis será 35% menor em 2050 do que em 2020, devido a mudanças na demanda global, mas indica que a exportação de gás e carvão australianos irá além de 2050. Não são indicadas políticas governamentais para a diminuição.
Por outro lado, são poucos os documentos que incluem informações sobre a restrição ou redução gradual da produção de combustíveis fósseis. Foram dois países na primeira rodada, cinco na segunda e 12 países e a União Europeia (UE) no longo prazo.
A França assume na estratégia para 2050 o compromisso de eliminar gradualmente a extração de combustíveis fósseis até 2040, além de não renovar licenças de exploração de combustíveis fósseis e extinguir as concessões existentes em território francês para além de 2040.
Já a União Europeia, da qual a França faz parte, cita que a maior parte da mineração de carvão do bloco será interrompida até 2050. No entanto, na NDC de segunda rodada é superficial ao dizer apenas que “a produção e o consumo de combustíveis fósseis da UE continuarão a diminuir”.
Brasil não cita combustíveis fósseis
O Brasil, que está entre os 15 maiores produtores de petróleo do mundo, não cita combustíveis fósseis na NDC. Segundo Carvalho, o país não pode ignorar o quanto a própria produção contribui para as mudanças climáticas. “[Combustíveis fósseis] precisam ser tratados em uma atualização ou nova NDC. Claro que o desmatamento é a nossa maior fonte de emissão [de gases poluentes], mas não é a única”, diz.
Leonardo Nascimento, pesquisador de políticas climáticas no New Climate Institute, na Alemanha, comenta que, no momento, o foco da comunidade internacional para a diminuição da produção é o grupo de países ricos grandes produtores. No entanto, isso não é um sinal verde para que nações como o Brasil continuem investindo e aumentando a produção de combustíveis fósseis.
“Em algum momento, o Brasil também vai ter que fazer essa transição. A pergunta é se o Brasil quer continuar nessa trajetória de desenvolvimento que depende altamente de combustíveis fósseis, com emissões, mesmo que não seja no território [o Brasil é um exportador], ou quer mudar essa trajetória de desenvolvimento”, diz.
Para o pesquisador, é importante que o Brasil mude o posicionamento e invista em indústrias que são adequadas para um futuro sustentável. “O Brasil desde agora tem como se tornar um polo para essas tecnologias [sustentáveis]. O Brasil tem um potencial enorme para outras fontes de energia”.
Energia: emissões fósseis seguem aumentando, mesmo com crescimento de renováveis
Um relatório lançado na última segunda-feira (26/6) mostra o resultado prático da falta de comprometimento: em 2022, as emissões de gases de efeito estufa resultantes da queima de combustíveis fósseis continuaram subindo, apesar do aumento recorde nas energias renováveis. O aumento nas emissões fósseis foi de 0,8% em 2022, na comparação com 2021.
Os combustíveis fósseis seguem como líderes isolados no consumo de energia no mundo, representando 82% do total (mesma média do ano anterior). No entanto, como o consumo mundial de energia aumentou 1,1% em 2022 (um crescimento pequeno, se comparado aos 5,5% de aumento registrados em 2021), isso significa que em números absolutos mais combustíveis fósseis foram queimados.
A participação das renováveis no consumo subiu cerca de 1% em relação a 2021, chegando a 7,5% do total. A alta foi puxada, principalmente, pelas energias solar (que registrou aumento de 25% em relação ao ano anterior) e eólica (aumento de 13,5%). O estudo não considerou a energia hidrelétrica entre as renováveis. Os dados são do Energy Institute, que pela primeira vez liderou a pesquisa anual sobre a indústria de energia no mundo. Feito desde os anos 1950, o levantamento era conduzido pela petroleira British Petroleum.
Ao jornal The Guardian , Juliet Davenport, presidente do Energy Institute, destacou que o perfil do consumo de energia vai na contramão das metas climáticas pactuadas internacionalmente: “Apesar do significativo crescimento da energia eólica e solar no setor, o total de emissões de gases de efeito estufa relacionadas à energia aumentou mais uma vez. Nós ainda estamos caminhando na direção oposta do que exige o Acordo de Paris”, afirmou. (PRISCILA PACHECO E LEILA SALIM)
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