O Brasil se comprometeu a restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030, como parte dos compromissos voluntários assumidos para o cumprimento do Acordo de Paris. A gestão integrada da paisagem parte do princípio que é preciso ocupar uma determinada área levando em consideração a maior aptidão do local. Mas qual seria o modelo ideal que equilibraria a conservação da biodiversidade em áreas antrópicas? Essa foi a pergunta que norteou o trabalho de um grupo de pesquisadores que acabou de publicar um estudo no jornal científico Ecology Letters.
“Sugerimos que esta paisagem deve ser composta por no mínimo 40% de florestas nativas, porém esse total de habitat pode ser formado por diferentes fragmentos florestais desde que 10% do total esteja presente em um remanescente contínuo. Isso é um ponto primordial pois grandes manchas florestais devem garantir a permanência de espécies que possuem extensas áreas de vida, como é o caso da onça-pintada”, explica José Carlos Morante-Filho, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e um dos autores do estudo.
Já em áreas produtivas, os pesquisadores recomendam que pelo menos 60% da área de produção seja formada por culturas menos agressivas ao meio ambiente, como as produções agroflorestais de cacau e café. Esse modelo garantiria, assim, a conservação de espécies florestais e a manutenção de importantes serviços ambientais para a população humana.
Em entrevista a ((o))eco, os pesquisadores José Carlos Morante-Filho e Maira Benchimol, ambos docentes do departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), detalha o estudo. Leia a entrevista na íntegra:
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Como os fragmentos florestais podem ajudar na conservação de espécies?
Em muitas partes, os fragmentos florestais são os únicos habitats restantes para espécies que vivem e necessitam dos recursos provenientes da floresta. Essa relação de dependência é ainda mais forte em algumas regiões do planeta e para alguns grupos taxonômicos. Por exemplo, as florestas tropicais abrigam uma exuberante biodiversidade, com uma alta riqueza de espécies e endemismo que não pode ser observado em outros ecossistemas terrestres. Alguns animais, como os primatas, são extremamente dependentes desse habitat. Estima-se, por exemplo, que 94% dos primatas existentes são dependentes das florestas. Apesar dessa grande importância, as florestas sofrem anualmente altas taxas de desmatamento, levando a uma redução e fragmentação do habitat. Esse péssimo cenário pode ser visualizado na Mata Atlântica brasileira, que vem sendo degradada desde o descobrimento do Brasil. Embora esse bioma tenha sido drasticamente reduzido – restando cerca de 15% da sua vegetação original – a Mata Atlântica abriga uma singular biodiversidade que está confinada a pequenos e isolados remanescentes florestais.
Além disso, paisagens com muitos fragmentos, e portanto, com maior cobertura florestal, podem conter diferentes condições ambientais e recursos (alimento, abrigo, locais de nidificação) capazes de manter alta diversidade de espécies. Também é esperado que a distância entre os fragmentos seja reduzida conforme aumenta o número de fragmentos na paisagem. Isso gera consequências positivas pois as espécies terão que percorrer distâncias menores para conseguirem acessar diferentes fragmentos. Portanto, a manutenção dos fragmentos florestais em diferentes regiões do planeta é fundamental para reduzirmos as extinções de espécies e assim preservarmos a biodiversidade.
O que o estudo mediu? Qual foi a conclusão?
Décadas de pesquisas tem gerado muita informação destinada a conservação da biodiversidade em paisagens antrópicas, porém a aplicação prática desses conceitos, muitas vezes contraditórios, é ainda um desafio para tomadores de decisão. Assim, nesse novo estudo, nós buscamos criar uma paisagem “ideal” com propósito de conservar espécies nativas, mas também providenciar importantes serviços ambientais para a população humana. Sugerimos que esta paisagem deve ser composta por no mínimo 40% de florestas nativas, porém esse total de habitat pode ser formado por diferentes fragmentos florestais desde que 10% do total esteja presente em um remanescente contínuo.
Isso é um ponto primordial pois grandes manchas florestais devem garantir a permanência de espécies que possuem extensas áreas de vida, como é o caso da onça-pintada. Também recomendamos que a área produtiva da paisagem, ou seja, no máximo 60%, seja formada por culturas menos “agressivas” para biodiversidade, como é o caso das plantações de árvores de interesse comercial e agroflorestais de cacau e café. Ainda, recomendamos fortemente a manutenção de corredores ripários [nas margens de rios] e, se possível, o uso de cercas vivas, pois esses elementos podem facilitar a dispersão das espécies dentro da paisagem ou mesmo servir de habitat suplementar. Além de maximizar a persistência de espécies nativas da fauna e flora, acreditamos que esse modelo de paisagem pode fornecer diversos benefícios para a sociedade, como controle climático, provisão do abastecimento de água, bem como favorecer a produção agrícola via polinização de diversas culturas e controles de pragas efetuado por espécies nativas.
Por que é importante preservar a cobertura florestal? Quanta floresta precisa ser mantida?
Para conservar a biodiversidade que ainda está presente nos fragmentos florestais localizados em paisagens antrópicas. Na verdade, a cobertura florestal está diretamente relacionada a disponibilidade de recurso, como alimento, abrigo e parceiros reprodutivos, especialmente para aquelas espécies que dependem da floresta. Portanto, paisagens mais florestadas poderão abrigar mais espécies e com populações maiores, reduzindo assim o risco de extinção e garantindo que a biodiversidade seja mantida a longo prazo. Além disso, muitos estudos têm demonstrado que importantes processos ecológicos são executados de forma mais efetiva em paisagens mais florestadas. Por exemplo, a dispersão de sementes, que é efetuada por inúmeras espécies (como macacos, aves, entre outros), será mais eficaz em regiões mais florestadas que abrigam uma comunidade de animais frugívoros mais diversificada. Esse processo é fundamental, pois auxilia o recrutamento das plantas e, portanto, a regeneração natural da floresta.
Muito se discute quanto de floresta nós precisamos conservar em uma dada região. Para muitos a resposta será: quanto mais melhor. Embora correta, essa resposta dificulta a execução eficaz de medidas de conservação. Pensando nisso, nós reunimos informações provenientes de estudos teóricos e empíricos desenvolvidos em diferentes regiões do planeta e com diversos grupos taxonômicos, e sugerimos que no mínimo 40% de cobertura florestal seja mantido em uma dada paisagem para garantir a persistência de espécies, especialmente aquelas que dependem de recursos provenientes da floresta. Porém, esperamos que uma paisagem com 40% de floresta também possa manter espécies generalistas de habitat, ou seja, aquelas que podem persistir tanto em habitats florestais quanto abertos.
É importante também ressaltar que a quantidade mínima de floresta (40%) que estamos sugerindo pode variar de acordo com algumas situações. Por exemplo, em paisagem dominadas por matrizes antrópicas, como áreas urbanas, monoculturas e/ou pastagem, possivelmente precisaremos manter uma quantidade maior de floresta devido aos efeitos adversos ocasionados por esses ambientes sobre as espécies que ocorrem em remanescentes florestais.
Como a floresta deve ser organizada na paisagem?
Sugerimos que 10% da cobertura florestal total esteja reunida em uma única área protegida e contínua, com o objetivo de manter espécies que possuem grande área de vida [os espaços por onde transitam as espécies] e evitam se movimentar por matrizes abertas, como áreas agrícolas. Assim, esperamos que um grande fragmento florestal possa manter as populações viáveis de espécies com necessidades ecológicas específicas, como grandes mamíferos. Além disso, grandes fragmentos são menos afetados pelos efeitos oriundos das matrizes que os circundam – também chamado de efeito de borda.
O restante da cobertura florestal, isto é 30%, pode ser alocado em fragmentos florestais menores amplamente distribuídos pela paisagem. Isso certamente reduzirá o isolamento entre eles, facilitando, portanto, a utilização de diferentes fragmentos pelas espécies. Também é importante que esses fragmentos captem a heterogeneidade ambiental existente na paisagem, ou seja, que estejam localizados em diferentes tipos de solo, relevo, ou outras características que possibilitem o estabelecimento de espécies distintas.
Qual o papel dos corredores de vegetação e outros elementos semi-naturais da arborização na conservação da biodiversidade?
No nosso estudo, enfatizamos a importância de priorizar a preservação e restauração de faixas de vegetação, especialmente as ripárias [também conhecida como mata ciliar ou faixa ribeirinha, a vegetação de beira de rio] , assim como outros elementos semi-naturais (como cerca-vivas e árvores isoladas) na paisagem. Tanto estas faixas de vegetação como os elementos semi-naturais funcionam como corredores ecológicos, isto é, eles conectam fragmentos florestais onde as espécies florestais vivem e permitem consequentemente que os organismos se movimentem entre estas áreas. As faixas ripárias são essenciais para preservação de espécies florestais que dependem de corpos d’água para reprodução, incluindo insetos, anfíbios e peixes. Adicionalmente, as faixas de vegetação e os elementos semi-naturais atuam como recursos complementares para muitas espécies, incluindo comida, água e abrigo.
Por que as florestas em regeneração são tão importantes para a conservação da vida selvagem? Pode citar um exemplo?
As florestas que estão se regenerando, especialmente em terras abandonadas há bastante tempo, podem aumentar a biomassa de árvores e reter uma maior diversidade de espécies. Um estudo demonstrou que em regiões tropicais, é necessário em média 66 anos para que o estoque de biomassa acima do solo em uma floresta em regeneração se recupere em 90%, e 50 anos para que o número total de espécies de árvores seja recuperado. Assim, estas áreas que já se encontram em um estágio avançado de regeneração (mais de 50 anos) são adequadas para muitas espécies especialistas de floresta.
Como os assentamentos humanos e a infraestrutura devem ser gerenciados?
Estradas são elementos que apesar de ocuparem um pequeno espaço da paisagem, possuem fortes efeitos negativos sobre a biodiversidade – incluindo o atropelamento de diversas espécies, especialmente répteis e anfíbios. Cercas entre a estrada e a vegetação natural tem um alto poder de mitigar estes atropelamentos e são inclusive obrigatórios em alguns países. Também sabemos que a existência de comunidades rurais é muito comum nas paisagens antrópicas, e que os moradores possuem uma relação muito estreita com os remanescentes florestais – caçam e retiram a madeira frequentemente. No entanto, a caça não é aleatória, com as espécies de maior porte sendo mais fortemente afetadas. Assim, muitas espécies podem desaparecer localmente por pressões humanas. Recomendamos assim que programas de educação ambiental sejam realizados com os moradores locais no entorno dos fragmentos. Ademais, a execução das leis ambientais para proibir a caça e a retirada ilegal de madeira também são essenciais. Para isso, é necessária uma governança estruturada, recursos financeiros significativos e baixa corrupção. No entanto, é importante frisar que isto não se aplica para comunidades indígenas e ribeirinhas que dependem da caça para subsistência. Assim, aspectos sócio-ecológicos precisam ser considerados.
Como essas paisagens sustentáveis podem beneficiar o ser humano?
Os benefícios podem ser diversos. Por exemplo, manter alta cobertura florestal pode ajudar na regulação climática. Isso não é apenas um benefício que as florestas podem provir para o homem, pois práticas agrícolas mais sustentáveis, como as agroflorestas, podem contribuir para essa regulação. Por exemplo, no sul do estado da Bahia, as agroflorestas de cacau, localmente conhecidas como cabrucas, são extremamente importantes para a biodiversidade e também para a economia local. Esse sistema, por manter parte das grandes árvores nativas, que têm a função de sombrear as plantas de cacau, mantém uma certa similaridade estrutural com as florestas, permitindo assim que diversos animais as usem. Ainda essas árvores nativas executam o importante papel ecológico de capturar o carbono da atmosfera, contribuindo para a regulação climática da região. As florestas também são fundamentais para regulação da qualidade e quantidade de água, um item essencial para a população humana. Diversos estudos têm destacado que as altas taxas de desmatamento das florestas tropicais terão graves consequências para os regimes de chuvas ao longo planeta terra, diretamente reduzindo a quantidade de água disponível para a população e também para produção de alimento. Portanto, manter paisagens mais florestadas pode contribuir para provisão de água e assim ter um benefício direto para a sociedade. Outro importante papel das florestas está relacionado à produção agrícola. Diversos animais que habitam as florestas podem atuar com polinizadores de culturas agrícolas ou mesmo contribuir com o controle de pragas que afetam a produção. Portanto, esse desenho de paisagem que estamos propondo pode garantir a biodiversidade e também os serviços providenciados por ela que são essenciais para a população humana.
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Víctor Arroyo‐Rodríguez Lenore Fahrig Marcelo Tabarelli James I. Watling Lutz Tischendorf Maíra Benchimol Eliana Cazetta Deborah Faria Inara R. Leal Felipe P. L. Melo Jose C. Morante‐Filho Bráulio A. Santos Ricard Arasa‐Gisbert Norma Arce‐Peña Martín J. Cervantes‐López Sabine Cudney‐Valenzuela Carmen Galán‐Acedo Miriam San‐José Ima C. G. Vieira J.W. Ferry Slik A. Justin Nowakowski Teja Tscharntke. Designing optimal human‐modified landscapes for forest biodiversity conservation . Ecology Letters, 2020. Doi: 10.1111/ele.13535
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O post “Paisagem “ideal” possui 40% ou mais de floresta nativa” foi publicado em 15th June 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco