Logo após a revelação do furto de 21 metralhadoras do arsenal de guerra do Exército em Barueri (SP), militares colocaram panos quentes no caso ao afirmar que as armas desaparecidas estariam “inservíveis” e só funcionariam após manutenção. Em junho de 2020, porém, o próprio Exército publicou abertamente nas redes sociais uma série de vídeos didáticos com técnicas de manutenção e uso de um dos modelos furtados no último dia 10 de outubro – capaz de disparar 550 tiros de alto calibre por minuto – e ninguém foi responsabilizado pelo conteúdo, que deveria ser de uso interno dos militares.
Os vídeos ficaram públicos por mais de três anos em contas oficiais do Exército no Facebook e YouTube, sem qualquer restrição, como revelado pelo site Sociedade Militar . Com acesso ao material, removido das redes sociais pelo atual comando militar dias após o crime em São Paulo, a Agência Pública apurou quem eram os oficiais responsáveis pela obra – por comandarem batalhões e grupamentos que elaboraram os vídeos, afinal.
Militares de brigadas e batalhões subordinados ao Comando Militar do Sul, no Rio Grande do Sul, produziram as videoaulas ensinando modos de calibragem, manutenção e operação para metralhadoras Browning .50 – modelo cobiçado pelo crime organizado e que estava entre as armas levadas do arsenal militar em São Paulo. À época da produção dos vídeos didáticos, o Comando Militar do Sul estava sob responsabilidade do general Valério Stumpf Trindade, chefe do Estado-Maior do Exército até abril passado , quando ele passou para a reserva.
Os vídeos consultados pela Pública mostram que a iniciativa foi liderada pelo 3º Grupamento Logístico do Exército , que publicou o conteúdo em seu perfil no Facebook no dia 29 de junho de 2020. À época, o grupamento era comandado pelo então coronel de cavalaria Marcelo Lorenzini Zucco – irmão do deputado federal Zucco (Republicanos-RS), que presidiu a recente CPI contra o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no Congresso.
Ainda no governo Bolsonaro, o militar Zucco virou comandante da 1ª Brigada de Infantaria de Selva, em Roraima. Era ele, afinal, quem comandava tropas na mesma região onde o garimpo avançou como nunca contra os indígenas Yanomami .
Em 2022, Marcelo Zucco foi cobrado durante uma audiência no Congresso por supostamente não combater efetivamente o garimpo ilegal, como relatado pelo observatório De Olho nos Ruralistas . Zucco voltou para o Comando Militar do Sul recentemente, quando foi nomeado como adido do Comando em maio passado, já no governo Lula.
O único militar que aparece nomeado nos vídeos é o major Jonas Chaves de Almeida, que foi promovido a tenente-coronel ainda no governo Bolsonaro, em 23 de agosto de 2022, como mostra o Diário Oficial da União . À época, ele era chefe de armamento do 3º Grupamento Logístico do Exército, organização subordinada à 3ª Região Militar e ao Comando Militar do Sul.
Em um dos vídeos, o militar explica que “o Exército Brasileiro conta com três modelos distintos de metralhadora .50” e que, juntamente com o 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, o 3º Grupamento Logístico faria “os vídeos de instrução apresentando as diferenças e as formas de manejo e preparação para o tiro” dessas armas.
“Nos próximos vídeos desta série, iremos verificar com mais detalhes todos os cuidados e os procedimentos a serem adotados com cada um dos modelos do armamento”, afirma ainda o major, ao fim do conteúdo – com 4 minutos e 34 segundos de duração. O Exército só tirou o material de suas redes sociais após a notícia sobre o furto das metralhadoras, o pior do tipo registrado desde 2009 , dentre as quais havia 13 metralhadoras Browning .50.
Oficiais foram promovidos ou para a reserva
Como anunciado pelo major Jonas nos vídeos, além de ser exibido por meio das logomarcas oficiais dos grupamentos e batalhões, o material teve apoio de outros braços do Comando Militar do Sul.
A série de vídeos sobre a metralhadora Browning .50 foi feita com apoio do Comando da 3ª Região Militar, então liderado pelo general de divisão Riyuzo Ikeda; do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, do então coronel Marcos Paulo Moreira da Silva; e do 3º Batalhão de Suprimento, do então tenente-coronel Jason Silva Diamantino.
Atualmente, o ex-comandante da 3ª Região Militar Riyuzo Ikeda trabalha como gerente de programa estratégico no Departamento de Educação e Cultura do Exército no Rio de Janeiro.
Riyuzo Ikeda foi nomeado para o cargo no Rio de Janeiro em 21 de setembro passado pelo atual comandante do Exército, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva. O militar trabalha no regime de Prestação de Tarefa por Tempo Certo – manobra usada à exaustão durante o governo Bolsonaro para conceder bônus salarial a militares que iam para a reserva. Conforme o Portal da Transparência, seu salário-base gira em torno de R$ 18 mil .
O ex-comandante do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado coronel Marcos Paulo Moreira da Silva, por sua vez, entrou para a reserva remunerada do Exército em novembro de 2022, de acordo com o Diário Oficial da União . O militar passou à reserva “a pedido”, ou seja, por vontade própria, mantendo seu salário – pouco mais de R$17 mil, segundo o Portal da Transparência .
O ex-comandante do 3º Batalhão de Suprimento Jason Silva Diamantino segue na ativa, tendo sido promovido já no governo Lula ao cargo de coronel intendente . Atualmente, ele trabalha como diretor de contabilidade no Comando do Exército em Brasília, segundo o Diário Oficial da União, com vencimentos mensais na casa dos R$17 mil – conforme o Portal da Transparência .
A Pública perguntou ao Exército qual era a justificativa para disponibilizar tais conteúdos ao público em geral por mais de três anos. Além disso, questionou se a divulgação dos vídeos foi autorizada pelos comandantes das organizações militares envolvidas no caso e se o atual comandante da Força, general Tomás Miné Ribeiro Paiva, achava correta a decisão de manter tais vídeos abertos na internet por mais de três anos.
Em resposta, o Centro de Comunicação do Exército disse que os vídeos eram destinados aos oficiais do Comando Militar do Sul, “em virtude das peculiaridades e cuidados com o aquele tipo de armamento”, e que os conteúdos “foram removidos atendendo às orientações de segurança”.
Os militares disseram ainda que estariam tomando ações para “evitar que outros materiais dessa natureza voltem a circular”, sem mais detalhes. O Exército também não informou se algum procedimento interno de investigação foi – ou será – aberto para apurar responsabilidade de oficiais da ativa e da reserva pelo caso.
Fonte
O post “Os militares por trás de vídeos ensinando como usar e manter metralhadoras do Exército” foi publicado em 25/10/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública