Depois de estudar tigres e leões, tentar aprender sobre a pouco-conhecida vida da onça-pintada me pareceu um caminho natural na minha carreira. Procurei por possíveis lugares para realizar um estudo da espécie na Venezuela, Suriname, Argentina, e no Brasil. Nesse último país, me foi sugerido o Pantanal Matogrossense. No Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF – o precursor do IBAMA e do ICMBIO) em Brasília, tive a sorte de conhecer em 1975 José Manuel de Vasconcelos, um consultor ambiental português à época contratado pelo instituto. Com um grande conhecimento sobre a fauna e sendo um conservacionista devotado, ele me encorajou a voltar no ano seguinte para participar de um levantamento de grandes mamíferos. Assim fiz, retornando em junho de 1976.
José Manuel e eu voamos de Brasília para o oeste, até a cidade de Cuiabá, onde nos esperava James Dietz, um norte-americano que estava no Brasil para estudar o lobo-guará. Em um táxi-aéreo, continuamos o voo para o sul até Poconé, uma pequena cidade na borda norte do Pantanal. Mais um voo nos levou até a pista de pouso da fazenda São João. Havia várias casas brancas da fazenda em uma curva do rio Cuiabá. O gerente não se encontrava no momento e esperamos o seu retorno embaixo de uma enorme mangueira em que caturritas faziam uma algazarra. Quando retornou, ele generosamente permitiu que ficássemos hospedados na sede da fazenda, construída em estilo espanhol, com altas colunas em arco e com o piso em cerâmica antiga. Teddy e Kermit Roosevelt haviam ficado nessa mesma casa. Fotos ampliadas de animais africanos, incluindo elefante, búfalo, e outros, adornavam o hall de entrada, e havia uma foto de Teddy também. O quarto usado por ele ainda estava preservado como era em 1913, fui informado, contendo uma cama de casal, uma poltrona, uma cômoda com um porta-velas, um lavatório, um armário, uma mesa de cabeceira, e uma pia. Nas paredes, há três aquarelas—a de uma flor azul em forma de sino, a de uma flor Genciana, e a de uma flor amarela. Fiquei parado sozinho no quarto, em silêncio, absorvendo um pouco do passado.
Contudo, o mundo lá fora tinha mudado consideravelmente. Muito do que era então mata em volta das casas tinha sido convertido em pastagens com gramíneas exóticas como Panicum. Para evitar que os campos se alagassem durante a estação das cheias, muitos quilômetros de aterros tinham sido construídos. Isso teve consequências inesperadas, como descobri quando visitei a área posteriormente. Por impedir que a água da enchente na estação das chuvas se espalhassem na área da fazenda, os diques faziam com que as fazendas em solo mais baixo fossem mais alagadas, causando a morte do gado por afogamento e fome. Sem os nutrientes trazidos pela inundação anual, a produtividade das pastagens diminuiu. Com isso, os fazendeiros passaram a utilizar fertilizantes que são então drenados para os rios e baías, fazendo com que os nutrientes aumentem o crescimento das plantas, obstruindo cursos d’água e causando um declínio nas populações de peixes. Pesticidas tóxicos são pulverizados em plantações de soja e outras lavouras na periferia do Pantanal, alguns deles tão perigosos para humanos que o seu uso foi proibido na Europa e na América do Norte. No entanto, companhias como a Bayer e a Monsanto ainda os produzem e exportam para o Brasil, onde as leis são mais lenientes.
Em busca da área de estudo ideal
Meu objetivo em 1976 era principalmente encontrar uma área para estudar a onça-pintada. Nós havíamos encontrado pegadas delas na fazenda São João, mas José Manuel e eu queríamos verificar outras áreas e, ao mesmo tempo, fazer um censo aéreo do cervo-do-Pantanal. Pouco se conhecia sobre a situação e a distribuição dessa espécie de veado nessa época. Com seu grande tamanho e sua vibrante coloração vermelha, eles deveriam ser facilmente vistos do avião, enquanto pastavam nos campos abertos ou em áreas de banhados. Uma vez que não havia estradas, tínhamos que voar entre os diferentes lugares a serem visitados no Pantanal. Nosso piloto era Inácio Tolentino de Barros, um índio Bororo de personalidade intensa, proprietário de um avião já bem velho e de aparência não muito tranquilizadora. Inácio conhecia bem a fauna do Pantanal e gostava de voar à sua procura.
Nas margens do rio Paraguai, em um ponto em que a expedição Roosevelt-Rondon havia passado, eu enxerguei as casas da fazenda Acurizal e, por trás delas, campos e matas encaixados em uma cadeia de montanhas, a Serra do Amolar, na divisa com a Bolívia. O lugar imediatamente me encantou e nós aterrissamos na pista de pouso da fazenda.
O proprietário estava ausente e a casa-sede estava vazia – na verdade, ele morava em São Paulo e vinha à fazenda muito raramente. Em uma caminhada nos arredores, logo encontramos pegadas de onças-pintadas. José Manuel e eu concordamos em fazer contato com o proprietário Horácio Coimbra, para solicitar permissão para usar a fazenda como base para um projeto de pesquisa. Em frente à fazenda, do outro lado do rio, estava a Reserva Biológica do Caracará, com 700 km2 (que em 1981 o IBDF mais tarde expandiu para 1350 km2, elevando a categoria para Parque Nacional). A maior parte da reserva é inundada sazonalmente. A ideia original era que o IBDF comprasse Acurizal para expandir a reserva para solo mais elevado, mas depois de muitos anos de negociações de intuito político e comercial entre diferentes parceiros por essa propriedade tão importante, do ponto de vista ecológico e de conservação, ela foi comprada, em 1997, pela Fundação Ecotrópica, de Cuiabá. (Embora ainda hoje existam disputas legais sobre o direito de uso de parte de suas terras). No entanto, voltando a 1976, se conseguíssemos a autorização do proprietário para usar a fazenda, poderíamos dar início ao estudo da onça-pintada no ano seguinte. Numa atitude generosa, o proprietário autorizou o desenvolvimento do projeto e em abril de 1977, eu me instalei na fazenda, dando início ao projeto. O estudo incluiu a onça-pintada e algumas de suas principais presas, como jacarés e capivaras, além de observações sobre a vegetação, em cooperação com o Jardim Botânico de Nova York. O projeto continuou até 1980 com a valiosa colaboração de Peter Crawshaw, um biólogo brasileiro contratado pelo IBDF no início de 1978.
Mesmo enquanto trabalhava no Pantanal, eu não havia esquecido a Expedição Roosevelt-Rondon. Existem dois excelentes livros descrevendo a viagem deles pelo Rio da Dúvida, incluindo aquele escrito pelo próprio Teddy, Pelas Selvas do Brasil , e o de Candice Millard, O Rio da Dúvida . Rondon foi homenageado no Brasil com o nome do estado de Rondônia, entre outras homenagens. Eu estava interessado em ver quanto esse rio e a área em seu entorno havia sido alterada desde o final daquela expedição, em abril de 1914.
A expedição de 1977
Maria Tereza Pádua, então uma dinâmica diretora do IBDF em Brasília, estava determinada a estabelecer uma rede de áreas protegidas na Amazônia. Ela solicitou que José Manuel organizasse uma equipe pequena, alugasse um avião, e visitasse várias áreas para que fossem avaliadas como reservas em potencial. Fiquei feliz em aceitar o convite para participar desse empreendimento. Foram convidados também três pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) em Manaus, incluindo Robin Best, que estudava o boto do rio Amazonas, e o especialista em borboletas Keith Brown, que com seu calmo entusiasmo registrava informações na grande variedade de espécies. Voamos primeiro para o norte, ao longo do rio Negro e de um dos seus afluentes para visitar o Pico da Neblina, na divisa com a Venezuela. Com 3014 m, o Pico da Neblina é o ponto mais alto do Brasil. Aterrissamos na Missão Católica Salesiana, onde fomos recebidos de forma hospitaleira. Na margem oposta do rio, estava localizada a aldeia Yanomami de Sabona, que pertence ao subgrupo Kohoroshitane. Cinco índios da aldeia nos guiaram através da floresta até o Pico da Neblina, dois deles seguindo adiante do grupo levando espingardas para caçar quaisquer animais que encontrassem. Por cinco dias subimos cada vez mais até atingir uma parte plana, que marca a fronteira com a Venezuela. A floresta e a montanha ali são deslumbrantes, embora tenhamos visto muito pouca fauna. Os Ianomâmi mataram 15 aves grandes, entre elas, mutum, jacamim, e nambus. Não vimos nenhum mamífero, nem mesmo um macaco. Foi para mim uma boa introdução à Amazônia e ao impacto que as comunidades humanas têm na fauna. Mais tarde na missão, eu escutei uma conversa em português no rádio, única forma de comunicação à época. As mensagens, de forma abreviada, foram:
Bispo (na cidade de São Gabriel da Cachoeira): Padre Pedro, o senhor me escuta? Eu preciso de uma pele de onça-pintada para presentear o Coronel.
Padre: Não é fácil, Dom Miguel. Onça-pintada não é fácil. Eu posso conseguir maracajá. Desse seria fácil conseguir várias peles.
Bispo: Maracajá está bem. Me consiga várias, então.
Padre: Entendido, Dom Miguel.
A visita aqui me forneceu diversas informações valiosas sobre problemas locais de conservação. No entanto, Pico da Neblina tem tantos valores excepcionais que justificam a sua proteção que recomendamos a área como reserva. Em 1979, o governo brasileiro criou o Parque Nacional Pico da Neblina, com 22,199 km2.
Depois de passar por vários estados da região amazônica, continuamente nos maravilhando com a extensão ininterrupta da floresta, voltamos ao estado de Mato Grosso, novamente em área visitada por Roosevelt. Aterrissamos em uma comunidade de garimpeiros com cerca de 300 pessoas, chamada São Francisco, na margem do rio Madeirinha, um pequeno afluente do Rio Roosevelt. Uma enorme draga flutuante suga o fundo do rio à procura de diamantes, alguns às vezes chegando a 100 quilates. Durante o dia, várias borboletas dos gêneros Dryas, Diona, Donocopa, além de outros voam em volta de nós e são identificadas pelo Keith. Há também besouros pretos e lustrosos, alguns com até dez centímetros de comprimento, os dois chifres curvos fazendo-os parecer sobreviventes da grande era dos dinossauros. À noite, mariposas de uma variedade deslumbrante de tamanhos, padrões, e cores, de pelo menos 50 espécies, formam nuvens em volta dos holofotes da draga.
Eu havia dito que gostaria de subir o rio para conhecer a região e um barco de madeira leva alguns de nós lentamente rio acima, passando por aglomerados de palmeiras, com as margens fechadas por uma parede de árvores literalmente cobertas por lianas, entremeadas por moitas de bambu. Acampamos durante a noite e no dia seguinte nosso percurso foi interrompido por uma corredeira. O rio estava muito raso, o barco muito pesado e o motor de popa não tinha potência suficiente para vencer esse obstáculo. Além disso, fomos informados que mais acima havia mais garimpos e fazendas, algumas acessíveis por estradas. Decidimos retornar. Notando todo esse desenvolvimento desde os dias da expedição de 1914, eu faço um registro mental de que gostaria de voltar a essa região para ver as mudanças em maior detalhe, mas foi apenas em 2015 que tive a oportunidade de fazer isso.
*Tradutor e Colaborador: Peter G. Crawshaw Jr. Edição: Bernardo Araujo.
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O post “Os fantasmas dos Roosevelt – Parte II” foi publicado em 20th May 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco