DO OC – Sob aplausos e comemorações emocionadas , foi aprovado no último sábado (4/3) em Nova York o texto do tratado internacional das Nações Unidas para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional (BBNJ, na sigla em inglês para Biodiversity Beyond National Jurisdiction). Depois de duas semanas de intensas negociações, os delegados de mais de 100 países chegaram a um consenso sobre o conteúdo do documento, já considerado um marco histórico.
“O tratado diz respeito àquelas áreas distantes da costa, que são de todo mundo e, ao mesmo tempo, de ninguém”, explica Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, as áreas além da jurisdição nacional são aquelas localizadas a mais de 200 milhas náuticas (ou 370 quilômetros) da costa . Elas representam cerca de dois terços da superfície total dos oceanos e abrigam espécies de atuns, tubarões, baleias e tartarugas marinhas , entre outros. Segundo Turra, o tratado preenche uma lacuna importantíssima, avançando em direção a uma regulação até hoje inexistente para essas zonas.
O texto estabelece regras para o uso de recursos genéticos, incluindo o pagamento de royalties para um fundo de repartição dos lucros obtidos com sua exploração — o que foi objeto de uma longa disputa entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Há ainda as chamadas compensações não monetárias, como oferecimento de capacitação a pesquisadores e previsão de transferência tecnológica. Além disso, o documento estabelece um regramento para estudos de impacto ambiental relativos à exploração da biodiversidade e institui órgãos para a implementação e fiscalização do tratado. Por fim, cria os chamados instrumentos de gestão baseados em áreas (ABMTs, na sigla em inglês), entre eles a criação de áreas marinhas protegidas.
Esse último ponto é considerado crucial para que se atinja a meta estabelecida em dezembro do ano passado na COP15 (a 15ª conferência da Convenção da Biodiversidade da ONU), de ter ao menos 30% da superfície das terras, águas doces e oceanos sob normas de proteção até 2030. No entanto, e diferentemente do que algumas interpretações têm apontado, o tratado aprovado no último sábado não define percentuais de proteção de áreas em alto-mar e nem estabelece quais serão as áreas marinhas protegidas.
“Não há, no tratado BBNJ, qualquer porcentagem estabelecida. O tratado finalizou um texto juridicamente vinculante e contribui com regras que vão nortear a gestão desse espaço, estabelecendo normas que não existiam anteriormente”, explica Carina Oliveira, professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que integrou a delegação brasileira como consultora para a negociação do tratado.
O que muda — e o que ficou de fora
“Teremos regras e estratégias de uso dessa biodiversidade para que os benefícios sejam compartilhados de forma mais equitativa entre os diversos países. O projeto, no fundo é construir uma economia sustentável do oceano, que o proteja efetivamente e gere prosperidade de forma mais equilibrada”, analisa Alexander Turra, reforçando que o tratado tem como o objeto o acesso a recursos genéticos da biodiversidade marinha, e não a restrição de áreas de uso — pelo menos nesse primeiro momento.
Quando um tratado é “juridicamente vinculante”, diferentemente dos acordos políticos e de intenções celebrados em cúpulas como a COP15, ele precisa passar por trâmites específicos de formalização até que entre em vigor. O texto aprovado no último sábado ainda precisa ser formalmente assinado pelos países presentes na conferência e então encaminhado para os trâmites internos de ratificação em cada país. Cada Estado precisa aprová-lo (ou rejeitá-lo) em suas instâncias nacionais. No caso do BBNJ, quando 60 países informarem à ONU a ratificação, ele passa a vigorar no plano internacional. A partir daí, os países signatários podem, inclusive, ser responsabilizados pelos tribunais competentes caso descumpram as regras estabelecidas.
Justamente por isso, a negociação foi tão longa — e tensa. Assessores e delegados chegaram a acreditar, na noite do último dia 4, que a conferência fracassaria e terminaria sem um texto de consenso. Após um apelo da representante da delegação brasileira para que se retomasse a negociação dos últimos pontos críticos, a presidente da conferência, Rena Lee, de Cingapura, solicitou que os delegados fizessem um “último esforço” e concedeu mais 30 minutos de negociação. Depois de mais de uma hora, o acordo foi fechado. “Quando se decide que um acordo será juridicamente vinculante, os Estados já passam a encará-lo de outra forma, e por isso a maior dificuldade para se chegar ao texto final”, explica Carina Oliveira, que integrou a delegação.
Essa decisão sobre o caráter do tratado foi tomada na instalação formal da Conferência Intergovernamental sobre a Biodiversidade Marinha em Zonas fora da Jurisdição Nacional, através de Resolução da Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2017, quando Rena Lee foi designada como presidente. De lá pra cá, foram cinco anos de negociação até que se chegasse ao texto aprovado. E, antes disso, quase 15 anos de diálogos para que se avançasse no entendimento do modelo a ser adotado.
A garantia do consenso, é claro, não se deu sem concessões. Ana Flávia Barros-Platiau, professora de Relações Internacionais na Universidade de Brasília que também acompanhou as negociações como consultora da delegação brasileira, explica que uma das cláusulas do tratado determina que ele não pode prejudicar ou se sobrepor hierarquicamente às convenções relacionadas ao oceano já existentes.
O tratado BBNJ foi firmado como um acordo de implementação no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Unclos, na sigla em inglês), aprovada em 1982. O chamado tratado de Montego Bay (uma referência ao nome da cidade jamaicana onde foi aprovado), em vigor desde 1994, havia deixado lacunas importantes, entre elas a conservação e o uso sustentável da biodiversidade marinha. “O BBNJ ajuda a atualizar a convenção com conceitos e entendimentos que não existiam à época de sua aprovação — mas tem essa limitação, por estar subordinado ao regime da Unclos e não poder se sobrepor ao que já existia”, diz a professora.
As definições setoriais sobre pesca e mineração em águas profundas nas áreas fora de jurisdição nacional já existentes, por exemplo, permanecem em vigor. “O recurso pesqueiro tem papel central na gestão sustentável da biodiversidade marinha. Mas, com as grandes repercussões dessa discussão, decidiu-se por essa cláusula que garante que o novo tratado não pode prejudicar regimes internacionais vigentes, e existe um regime para a pesca já previsto pelo tratado de 1994”, diz Ana Flávia Barros-Platiau.
Outro nó nas negociações foi, como sempre, o financiamento. O Brasil, segundo as professoras da UnB, teve papel decisivo para que o fundo de repartição de benefícios decorrentes da exploração de material genético fosse criado, vencendo a oposição do bloco dos países ricos. Havia, ainda, a proposta de criação de um fundo de reparação, com verbas para compensar eventuais danos a serem causados pela exploração da biodiversidade marinha, que não foi aprovada.
Entre fragilidades e avanços, Ana Flávia Barros-Platiau destaca a importância do que foi aprovado: “É um grande sucesso. Agora temos um marco jurídico obrigatório, um referencial. A questão climática, por exemplo, foi mencionada sete vezes no tratado, que reconhece a importância do oceano para o combate às mudanças globais do clima. Isso é muito inovador. Nos anexos, que tratam dos critérios de impacto ambiental e do treinamento e formação para implementação do tratado, o clima também é citado”, afirma. “O BBNJ é muito inovador do ponto vista dos temas que incluiu. Mas, no processo de negociação, foi sendo recortado, esvaziado. Se vai ser efetivo ou não, e como vai ser usado, é o X da questão”, completa.
Para Carina Oliveira, apesar das limitações, há possibilidades de que os órgãos a serem criados pelo tratado incorporem as discussões de impactos sobre atividades setoriais como a pesca e a mineração, mesmo que não através de uma regulação direta. “O BBNJ trata da biodiversidade, que atinge o oceano de modo global. Haverá uma limitação para a regulação, porque isso não é competência do tratado. Mas o BBNJ sinaliza que o órgão técnico-científico deve fortalecer a articulação entre as diversas organizações competentes para fazer gestão setorial. Se isso, de fato, vai acontecer e se esses órgãos terão capacidade técnica e força política para fazer isso, é algo que veremos no futuro”, pontua. (LEILA SALIM)
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