Eu ando em direção à nova casa, o relógio do celular anunciando que estou quase atrasado para a entrevista que eu mesmo marquei. Enquanto ando, percebo um detalhe no móvel que estou levando para dentro: no recorte onde se encaixa o tampo de pedra da pesada cristaleira entre os meus braços – um presente de segunda-mão-mas-mesmo-assim-muito-acima-do-nosso-orçamento-de-quem-vive-de-aluguel dado pela tia da minha esposa – eu leio, escrita à mão, a palavra “mogno”.
Mogno. Nome popular dado a três espécies do gênero Swietenia, atualmente protegidas contra a extração de madeira que levou todas as três a quase desaparecerem de sua área de ocorrência original.
Nós organizamos a mobília velha, porém preservada, e eu encaixo correndo a tampa de pedra, escondendo aquele pequeno escrito enquanto meu computador inicia. Até eu acessar o programa de teleconferência para entrevistar o pesquisador daquela tarde, o lembrete da natureza misteriosa do móvel novo já está além da minha visão. Isso ajuda a impedir que eu fique pensando obsessivamente sobre a possível procedência suspeita da cristaleira nova, deixando espaço para a minha cabeça se ocupar com o tema principal da entrevista: a harpia, ou gavião-real.
Mal sabia eu que não seria a última vez que eu seria convidado, naquela mesma tarde, a pensar na pequena palavra escrita a mão na madeira.
Eu digo tchau para a nossa tia, agradecendo mais uma vez pelas belas adições à nossa paisagem de mobiliário – muita dela composta de outros itens que ela mesma nos deu em reformas anteriores da própria casa – e digo oi para o jovem cientista (e amigo pessoal desde os tempos de graduação) Everton Miranda. Com nossas conexões instáveis à internet, começamos a discutir, entre outros assuntos da vida, as implicações de seu artigo mais recente , na Biological Conservation, uma das publicações acadêmicas sobre conservação da biodiversidade mais prestigiadas do mundo.
Escondida por trás da tampa de mármore, a palavra “mogno” e seu significado ecológico desaparecem da minha mente, enquanto eu alço voo com as águias do pesquisador. Mas não por muito tempo.
De brigas na rua à ciência ambiental
Para resumir em uma única frase, o artigo de Everton Miranda e colaboradores detalha a preocupante coincidência entre a lista de árvores normalmente selecionadas como lar por casais de harpia em busca de um lugar para construir ninhos e a lista das espécies visadas por operações de extração de madeira por corte seletivo.
“Eu vim para o Arco do Desmatamento, na porção de Amazônia do norte do Mato Grosso, depois de terminar meu mestrado, com o objetivo central de encontrar e estudar um número razoável de harpias. Estudar a maior águia do mundo estava nos meus planos desde a época da graduação em biologia, e a minha meta aqui era instalar câmeras nos ninhos para monitorar e aprender mais sobre os hábitos alimentares, o comportamento e a resiliência da espécie a viver em áreas degradadas.”
Atualmente terminando seu doutorado pela Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, a trajetória de Miranda pela Academia brasileira – e pela vida, de maneira geral – é bastante incomum. Apresentando um grande interesse pelo mundo natural desde a primeira infância, Everton aprendeu a ler com um livro de Zoologia para o público universitário que ganhou de presente de seus padrinhos aos cinco anos de idade. Devido aos problemas estruturais de acesso à educação no Brasil, ambos não sabiam ler. E queriam dar ao sobrinho, que estava aprendendo como funcionam as palavras escritas, um presente realmente especial.
Acabaram dando também, ao mundo, um cientista bastante teimoso.
“O livro não durou muito, já que eu o levava comigo para todo lugar. Mas a minha paixão pela natureza apenas cresceu a partir daí. Por volta de uns treze, eu tinha minha própria coleção de insetos, que eu pegava por aí e organizava pela filogenia de acordo com livros que eu achava em uma biblioteca pública que ficava perto o bastante para ir de bicicleta. Essa coleção foi doada para o Museu da UnB um pouco depois, quando minha família se mudou para a fronteira com o Uruguai.”
Mas besouros e formigas estão longe de serem os interesses principais de Everton. Pegando emprestado o vocabulário do jornalista de ciência David Quammen , o ecólogo está muito mais interessado na “cadeia alimentar de poder e glória”. Em outras palavras: os efeitos hipnóticos e ecologicamente complexos de predadores de topo como a harpia. Uma obsessão que surgiu como uma forma de lidar com os próprios impulsos e comportamentos violentos de adolescência, já que as artes marciais haviam falhado em controlar seu temperamento. Miranda viu, em documentários de natureza sobre animais cheios de garras longas, uma forma mais segura de vivenciar essa violência do que se envolver em brigas (de cair na mão mesmo) por aí.
“A predação é uma forma de violência que não é imoral, que não tem consequências para a sociedade. E é por isso que eu desenvolvi uma relação quase que espiritual com o estudo de predadores”, explica o biólogo. Vindo do complicado mundo dos sistemas públicos de ensino fundamental e médio – que infelizmente, devido às mesmas barreiras estruturais mencionadas acima, raramente dão origem a cientistas – e com uma inclinação pessoal à violência, é seguro dizer que os predadores salvaram a vida de Everton Miranda.
Seu interesse pelas maiores máquinas de matar criadas pela evolução, porém, vai muito além da possibilidade de vivenciar à distância a expressão do comportamento agressivo: “Você pode somar a isso tudo o fato de que esses são animais particularmente interessantes, especialmente quando se trata de estudar a conservação da natureza de uma perspectiva mais ampla e holística.”
De fato, como explica ele, predadores de topo como a harpia podem ser espécies guarda-chuva eficientes. Isso porque, para garantir sua existência em um determinado local, a de muitas outras espécies também têm de ser garantida. Das plantas que compõem seus hábitats até as muitas espécies de presas, nas densidades apropriadas, é necessário um ecossistema rico para sustentar populações funcionais de predadores de topo. E, conforme diz a teoria ecológica, também são necessárias populações funcionais de predadores de topo para manter seus ecossistemas nativos.
Predadores de topo de cadeia exercem uma série de funções regulatórias vitais nas teias alimentares das quais participam, e a extinção local de predadores de topo normalmente é seguida de efeitos drásticos , como populações superdensas de herbívoros e os impactos que esses herbívoros causam nas espécies vegetais das quais se alimentam. “Adicionalmente, predadores também são geralmente muito carismáticos, são fáceis de vender para o público”, diz o pesquisador.
Apesar de seu carisma, porém, predadores de topo também estão no centro de conflitos com seus vizinhos humanos. Harpias adultas, por exemplo, são normalmente abatidas a tiros, por uma série de motivos incluindo retaliação após a predação de animais de criação comercial ou de estimação. Também tem de se levar em conta o medo de viver próximo a um animal carnívoro de quase cinco quilos e armado com garras matadoras, especialmente em casas com crianças.
E, como discute o artigo que motivou esse texto, existe também a questão das árvores de ninho.
O “mercado imobiliário” das harpias
Não seria possível ser a maior águia do mundo sem ter, também, uma das estruturas de ninho mais impressionantes. Dados de medições de 21 desses ninhos, encontrados na literatura por Miranda e seus colegas, revelam que esses ninhos possuem, em média, 1,52 metros de diâmetro por 99 centímetros de altura. Os mesmos dados de literatura permitiram que o grupo modelasse a estrutura das árvores preferidas pelas harpias quando elas buscam um lugar para construir esses ninhos, baseados em 98 registros nos quais as árvores foram medidas e descritas.
As árvores de nidificação de harpias são o que especialistas chamam de “árvores emergentes ”, um termo elegante para dizer que elas são IMENSAS. Emergentes têm esse nome por serem aqueles indivíduos que se projetam acima do dossel da floresta – que já é bastante alto na Floresta Amazônica. O estudo revela uma altura média de 45 metros para as árvores utilizadas para construção de ninhos na porção não-inundável da Amazônia. As águias tendem a escolher a bifurcação principal de uma árvore para a construção do ninho, uma vez que essa forquilha provê uma estrutura ao mesmo tempo resistente e ampla o bastante para acomodar o ninho.
Quando se comparam os indivíduos escolhidos pelas harpias com outras árvores da mesma espécie, é possível notar outros fatores que influenciam a seleção das águias. Não apenas são árvores mais altas, mas seus pontos de bifurcação também são mais altos (com as alturas de ninhos sendo, em média, de 33,5 metros comparados às forquilhas de indivíduos não selecionados, a 28,0 metros do solo). Suas coroas são também mais achatadas, provendo mais estabilidade e galhos menos íngremes, onde as águias podem se empoleirar.
“Esse é o fator mais vital entre os que afetam a parte mais vital da vida de um predador: o processo da reprodução e do cuidado do casal de harpias com seu filhote”, diz o pesquisador. “Já que capturar macacos grandes e preguiças, entre outros vertebrados, não é uma coisa tão trivial, as harpias têm uma infância longa, e podem ficar próximas ao ninho por períodos de dois a três anos”. Levando em conta que a principal causa natural de morte em harpias juvenis é a ocorrência de quedas acidentais , a estrutura dos galhos e das coroas das árvores faz bastante sentido.
Também faz bastante sentido que árvores que começam a se ramificar apenas em pontos bem mais altos do tronco atraiam outros olhares que não os das harpias: os olhares de companhias madeireiras e proprietários de terra interessados na exploração econômica de suas reservas legais, prevista nos planos de manejo. E também, claro, infratores ambientais como madeireiros ilegais e grileiros. Das vinte e oito espécies utilizadas pelas harpias registradas na literatura, 92,8% também são espécies de interesse comercial, conforme o artigo.
Se levarmos em conta as práticas usuais em economias emergentes da América do Sul no que diz respeito a conflitos de interesse entre a economia e a natureza, as implicações do estudo de Everton para a conservação a longo prazo deste predador de topo são inquietantes. Como ele explica: “Mesmo que se assuma que só exista atividade madeireira em conformidade com o que dita a lei para a elaboração de planos de manejo, com ciclos de corte seletivo de vinte e cinco a trinta e cinco anos e a seleção de árvores que não serão derrubadas, não tem como garantir que essas árvores vão ser as mais adequadas para as necessidades das harpias”.
A mulher que descobriu as águias
“Eu acho que o artigo do Everton atinge a gente como um soco. Ou uma flechada dolorosa no peito”.
Eu rio, sorrindo internamente ao pensar no fato de que Miranda trocou os socos da juventude pela sua carreira científica. Do outro lado da tela, a Dra. Ruth Muñiz-López, pesquisadora espanhola radicada no Equador, também sorri. Mas sorri com um fundo de seriedade.
Ainda na casa dos vinte (e bem poucos) anos, a bióloga da Galiza voltou tanto sua atenção quanto suas habilidades em falcoaria para a América do Sul, trazida por uma bolsa de estudos para um curso na Costa Rica. Após algum tempo trabalhando com tartarugas marinhas, a jovem pesquisadora retornou a sua paixão de vida por aves de rapina. “Eu passei meus anos de adolescente no Estreito de Gibraltar, que separa o sul da Espanha do Norte da África. Praticamente todas as espécies europeias de aves cruzam os quase quatorze quilômetros do Estreito para poderem passar o inverno na África. Também é possível observar cetáceos em seus deslocamentos pelo oceano, assim como borboletas e todo tipo de aves, incluindo as de rapina que eu sempre amei tanto”.
Em 1998, já nos trópicos, ela conheceu Karla Aparicio, outra bióloga que amava as aves de rapina, e até hoje dedica seu tempo ao estudo e à luta pela conservação das harpias no Panamá, seu país de origem. Muñiz-López não conseguiu resistir à vontade de ver as águias com as quais Aparicio trabalhava, e se voluntariou para trabalhar no projeto por alguns meses.
“Eu sempre digo aos amigos que eu não conhecia o significado verdadeiro da expressão ‘ficar com as pernas bambas’ até eu ver minha primeira harpia. Eu estava tremendo muito, e tão tomada de felicidade e reverência que eu tive de me sentar no chão da floresta e ficar lá por um tempo. Sentada, olhando para aquele animal impressionante e pensando comigo mesma o quanto a minha teimosia tinha compensado”, lembra ela, nostálgica.
Desde então, a Dra. Muñiz-López viu muitas outras harpias, sendo a fundadora do Programa para a Conservação das Águias Harpias no Equador (PCAHE). A equipe do programa trabalha de maneira multidisciplinar, o que a pesquisadora acredita ser o melhor para atingir não apenas o objetivo de estudar as águias, mas também os de trazer a população para o lado delas, convencer tomadores de decisão e legisladores de sua importância, e garantir a sobrevivência da espécie mesmo em situações de conflito.
Trabalhando no limite oeste da distribuição das águias, Ruth consegue observar o quão bem as harpias conseguem se adaptar a mudanças em seu ambiente. De acordo com ela – e registros esparsos, também citados por Everton, de ocorrência da espécie em lugares onde suas árvores de preferência não estão disponíveis – as águias conseguem se adaptar até certo ponto, especialmente os adultos. Mas não há evidências de que esses casais consigam criar seus filhotes até a independência.
De acordo com Ruth, o fato de as harpias ocorrerem apenas em áreas florestadas relativamente pouco afetadas pela presença humana cria um cenário particular, no que diz respeito ao manejo de conflitos e a tomada de decisões. Tanto na Amazônia Equatoriana quanto na Brasileira, a fiscalização ambiental raramente chega a essas áreas. Para se conservar manchas florestais remanescentes, é importante que a população residente também tome essa decisão. “A única recomendação global que eu posso dar sobre a conservação da natureza é a de que temos de nos focar em cenários e culturas locais. O que funciona no Equador provavelmente não vai funcionar em outro lugar. A não ser que a estratégia seja adaptada aos modos de viver e se relacionar com a natureza de cada localidade”, diz ela.
O que é universal, segundo Muñiz-López, é a necessidade de trabalhar com o máximo possível de aspectos da comunidade local nesse processo de compreender e transformar cada sociedade. O PCAHE combina pesquisa, educação, comunicação, ação política e sensibilização. Essa última frente de ação, que consiste em cativar as emoções das pessoas em relação a uma espécie e à natureza em geral, é encarado como vital para a mudança comportamental. E o trabalho de jornalistas também ajuda.
“Se ocorre, por exemplo, uma ação local para a proteção de uma espécie e isso é noticiado em um jornal ou registrado em um documentário, isso dá aos participantes um lembrete físico de que seu trabalho teve efeitos e foi reconhecido. No caso de um recorte de jornal, as pessoas ainda podem colocar num mural ou emoldurar, o que pode estender essa influência positiva para múltiplas gerações”.
Árvores, crimes e agentes federais
De acordo com a Dra. Ruth Muñiz-López, a publicação de Everton Miranda tem um grande potencial de mudar a maneira em que políticas ambientais são pensadas e fiscalizadas. Para proteger efetivamente as harpias, também é importante que o processo de elaboração de planos de manejo mude, para que a viabilidade das populações de suas árvores de nidificação seja garantida.
Mas isso tudo assume que toda a madeira extraída provém de iniciativas legais de exploração madeireira. O que dificilmente é verdade na Amazônia, longe dos olhos das autoridades.
“Às vezes os grileiros derrubam trechos inteiros de floresta para poder declarar a posse da terra. A madeira proveniente das derrubadas muitas vezes vai ser vendida a quilômetros de distância. Vendida como eucalipto ou alguma outra espécie barata, porém legalmente plantada para uso comercial. O lucro dessas vendas é baixo, comparado ao preço que a madeira teria no mercado legal. Mas, como essas operações ilegais têm baixo custo, essa desvalorização não faz diferença.”
As palavras da Dra. Simone Vieira, professora da Unicamp e coordenadora do Biota FAPESP, um dos maiores programas públicos de pesquisa com biodiversidade no Brasil, também me atingem como um soco.
A Dra. Vieira dispõe de um profundo conhecimento proveniente de décadas estudando aspectos da biodiversidade amazônica — da profundidade até a qual podem se expandir as raízes das árvores à taxa pela qual essas árvores crescem . Ela também dedicou essas décadas de estudo e pesquisa à compreensão das melhores formas de manejar os recursos frente a esses resultados. Essa bagagem a torna uma excelente fonte para quem pedir respostas sobre a conservação de uma espécie que nidifica em árvores derrubadas para exploração comercial.
“As árvores na Amazônia tendem a crescer mais lentamente do que o esperado. Isso porque, sendo ela um ecossistema caracterizado, entre outras coisas, por alta energia e abundância de água, as expectativas eram bastante altas. Mas nós observamos que, especialmente em áreas com alta precipitação, na porção central da Amazônia, as árvores tendem a crescer apenas algo em torno de 1,2 a 1,5 milímetros ao ano”.
De acordo com a pesquisadora, isso significa que as árvores gigantes nas quais as harpias constroem ninhos são muito velhas, algumas provavelmente datando de mais de mil anos atrás. Também significa que os ciclos de corte de trinta anos não são a maneira mais razoável de preservá-las.
Eu compartilho com a Dra. Simone uma ideia que Everton me contou, proposta pelo seu orientador de doutorado, Dr. Carlos A. Peres: uma vez que os planos de manejo atualmente já exigem que se mantenha na localidade que sofrerá corte seletivo alguns indivíduos de cada espécie, além de estabelecerem tamanhos mínimos abaixo dos quais uma árvore não pode ser cortada por ser muito jovem, uma maneira de se proteger as necessidades das harpias por árvores imensas seria a de estabelecer também linhas de tamanho máximo. A partir de uma determinada altura, da mesma forma que as árvores pequenas demais, as gigantescas também entrariam automaticamente para a “lista das não-cortáveis”.
Ela me soca novamente. Everton ficaria orgulhoso.
“Isso poderia funcionar e, na teoria, é fácil de implementar. Mas a gente tem de levar em conta que a fiscalização é realmente complicada nessas áreas. Uma vez eu acompanhei um time do Ibama durante uma campanha de fiscalização. Eles estavam investigando uma denúncia de atividade madeireira ilegal. Nós tivemos de ser acompanhados por agentes da Polícia Federal, fortemente armados. Porque quem está trabalhando com corte ilegal de madeira, como esses madeireiros clandestinos ou grileiros grandes, tem uma milícia armada para garantir a segurança.
A Dra. Simone tende a acreditar em resultados trazidos por uma fiscalização intensificada, com identificação das espécies, em outros pontos da cadeia. Por exemplo, quando a madeira está sendo vendida ou transportada. Isso exige profissionais especializados, treinados para a identificação de diferentes espécies madeireiras, mas é uma abordagem que já se provou efetiva no passado, quando o estado de São Paulo iniciou um programa que analisou a madeira que adentrava o estado em suas rodovias .
Se fossem criados mais programas como esse ao longo de todo o Brasil – e dado que eles continuem a funcionar apropriadamente, mesmo em uma cultura bastante familiar a atos de corrupção – seria possível uma redução drástica nos crimes ambientais que põem em risco não apenas a harpia, mas uma ampla lista de espécies afetadas pelo desmatamento e a extração ilegal de madeira na Amazônia.
“Também é bem importante que compradores estrangeiros, como em países europeus, assumam a sua própria contribuição com o problema. Assumam e comecem a implementar medidas para fechar as portas à entrada de madeira ilegal da América do Sul.”
Como diz a Dra. Ruth Muñiz-López, é uma questão de mudar as culturas locais. Mesmo quando elas são, na verdade, mercados estrangeiros.
Integrando a Amazônia
“O primeiro ninho de harpias a ser descrito , pelo famoso ornitólogo James Bond (inspiração para a criação de um outro famoso James Bond), estava em uma árvore de mogno”, me conta Everton Miranda. As minhas próprias pernas ficam bambas – embora não por reverência – quando ele acrescenta: “Hoje, mesmo com a proteção estrita das espécies de mogno, você não encontra essas árvores em locais de fácil acesso. Onde tem estrada, não tem mogno”.
Everton foi para a Amazônia para estudar as harpias, mas também para entender as melhores maneiras de proteger essa espécie, seu hábitat e suas presas. Um detalhe: Everton se refere sarcasticamente a preguiças, macacos e filhotes de porco-do-mato como “lanchinhos de harpia”. Até aí, estamos falando de alguém que, enquanto eu estava em casa jogando Mortal Kombat, estava por aí vivendo Street Fighter.
Com a intenção de proteger a biodiversidade de sua região da Amazônia, o pesquisador está colaborando com uma empresa de turismo chamada SouthWild (reportagem em inglês).
“A única forma que o Brasil arranjou de integrar a Amazônia às economias nacionais e globais foi através da pecuária. Isso tem efeitos horríveis na biodiversidade, porque a criação de gado requer o corte raso e a incineração de áreas de floresta. Adicionalmente, para alguém que tem vontade de adquirir uma propriedade e começar a produzir algo nela, não existem muitas outras opções além do gado e de algum ganho eventual com corte seletivo. É muito fácil apontar um dedo para essas pessoas. O que não é fácil é oferecer a elas alternativas que integrem a Amazônia à economia sem desintegrar a floresta”, diz ele, rindo do trocadilho acidental.
Ao pagar valores calculados com base no número de visitantes às pessoas que têm a sorte de ter ninhos de harpia em suas propriedades, Everton espera criar um cenário no qual as harpias e suas árvores sejam mais valiosas do que a alternativa do corte para outras atividades econômicas.
“Isso também muda a percepção que toda a comunidade local tem das águias. Porque, de repente, tem turistas comprando artesanato nas lojas, indo aos restaurantes para descobrir a culinária brasileira como uma moqueca de pintado, se hospedando nos hotéis, etc. Isso para não falar do efeito de conhecer uma pessoa que saiu do próprio país e desembolsou quantias consideráveis de dinheiro para ver um animal que você tem, literalmente, vivendo no seu quintal. Eu espero que isso toque alguns corações.”
Mudar culturas locais e mercados estrangeiros, melhorar a fiscalização e promover a visita de turistas. Essas são apenas três das ideias que podem mudar as perspectivas para a conservação da Amazônia. E de um de seus predadores de topo mais impressionantes, cuja distribuição atual – já bastante reduzida – tem aproximadamente 93% da área restrita a esse bioma.
Ao perceber que a última frase desta reportagem se aproxima, eu ando até nossa cristaleira para pegar uma caldereta de cerveja e colocar no freezer para mais tarde. Para celebrar o fim de mais um texto escrito na intenção de informar, mas também de mexer com as emoções que Ruth Muñiz-López defende como vitais para a proteção da biodiversidade frente às pressões da economia. Minhas próprias emoções quase têm alegria o bastante para calar os pensamentos a respeito do mogno que me encara em minha sala de estar.
Mas lá no fundo eu sei que esse é um tipo de pensamento que nenhuma quantidade de cerveja ou de tampos de pedra é capaz de esconder.
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O post Onde as harpias dormem: protegendo ninhos da maior águia do mundo apareceu primeiro em ((o))eco .
Fonte
O post “Onde as harpias dormem: protegendo ninhos da maior águia do mundo” foi publicado em 8th November 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco