Eis uma notícia hedionda que chocou quase todo mundo — exceto aqueles acostumados a culpar a vítima.
No sábado à noite, uma jovem de 22 anos foi com amigos e colegas de trabalho assistir a um show de pagode no Mineirão. Ela bebeu muito e, às duas da manhã de domingo, quis ir pra casa. Um amigo chamou um carro pelo aplicativo 99, enviou o trajeto da viagem para o irmão dela, e a colocou no carro, aparentemente já desacordada.
Chegando em frente ao prédio da jovem às 3 da madrugada, o motorista interfonou e ligou para o celular que tinha, mas ninguém atendeu. Ele então pediu ajuda para um motociclista que passava para ajudar a retirar a moça do carro, a deixaram na calçada, encostada em um poste, e foram embora. Seis minutos depois, um homem a viu deitada, olhou pros lados, e decidiu carregá-la. Ele a levou nas costas até um campo de futebol e
lá a estuprou e foi embora.
Seis minutos foi o que demorou pra um homem ver a jovem deitada na rua e levá-la, como se fosse um objeto.
Às 8 da manhã, moradores viram a jovem seminua no campo e chamaram a Samu . Ela estava em choque e não se lembrava do que aconteceu.
Foram os familiares da vítima que
procuraram o suspeito do estupro, batendo de porta em porta, até chegar a uma câmera no local do crime. Printaram a imagem que mostra o homem chegando com a jovem nas costas e saindo sozinho. Mandaram para a polícia, que o prendeu em flagrante. Ele tem 47 anos, é pai de família, sem antecedentes criminais.
Ele, óbvio, negou o crime (o estupro foi comprovado por exames). Alegou que só estava tentando ajudá-la, que a levou para um lugar mais seguro, e que, mais tarde, trocou de roupa porque ela havia vomitado na camisa dele.
Lógico que o estuprador deve ser punido exemplarmente, mas a jovem não foi vítima apenas dele, mas de vários homens negligentes que permitiram uma sequência de erros e omissões.
Em primeiro lugar, o amigo (ou amigos) que chamou o carro do 99 mas não se deu ao trabalho de acompanhá-la até a casa dela. É bastante lógico que não se larga uma mulher desacordada com estranhos.
O motorista do 99 não podia ter deixado a jovem na calçada. Ele podia ter chamado a polícia ou a levado até um posto de saúde, já que ela estava em coma alcoólico (muita gente acha que ela pode ter sido drogada também). Aliás, ele podia nem ter aceitado transportar uma mulher inconsciente. Mas, como aceitou, era ele o responsável por ela.
Não é minha opinião. É a lei. O art. 133 diz que a pena é a detenção de 6 meses a 3 anos para quem “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, esteja incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”. Se o abandono resultar em lesão corporal grave, a pena sobe de 1 a 5 anos. O motorista será responsabilizado. Após a repercussão do caso, ele
foi suspenso pelo aplicativo 99.
O motociclista que o ajudou a retirar a mulher do carro também pode ter que responder por omissão .
Uma das
primeiras notícias que li dizia que o irmão da vítima dormiu após receber a mensagem com o trajeto da viagem. Mas depois ficou mais claro que ele já estava dormindo, por isso nem recebeu a ligação, nem ouviu o interfone tocar. Pra mim, ele não tem culpa. Mesmo assim, vem sendo atacado nas redes sociais, o que fez a
família explicar que, no mesmo dia, ele havia sido medicado. Uma
irmã da vítima também disse que o interfone não estava funcionando.
Não é a primeira vez e, infelizmente, não será a última que uma mulher desacordada é abandonada e estuprada. Em março do ano passado, em
Itaitinga, Ceará, uma mulher bêbada foi simplesmente largada na rua, depois do bar em que estava fechar. Foi estuprada por um motociclista que passava pelo local. O crime foi gravado por uma câmera de segurança. Em seguida, o homem fugiu e se escondeu em outro município, na casa de parentes. Diante do cerco policial,
ele se suicidou . Não sei se as pessoas que largaram a mulher na rua às 4 da madrugada foram responsabilizadas.
Assim como o estuprador de Belo Horizonte, o de Itaitinga também não tinha antecedentes criminais. Foi o que se chama de “
estupro de oportunidade “. Pois é, a gente vive num mundo em que muitos homens, ao encontrar uma mulher desacordada, em vez de tentar ajudá-la ou protegê-la, veem uma “oportunidade” para estuprá-la. Como lembraram inúmeras leitoras, nem todos os homens, mas sempre um homem.
Homens raramente passam por isso. Certamente há muito mais homens do que mulheres que bebem demais e ficam desacordados na rua. Mas eles são no máximo roubados, não estuprados, apesar do ditado “c* de bêbado não tem dono”. Que exista um ditado assim é mais uma prova da nossa cultura de estupro.
E, por homens raramente passarem por isso, eles não entendem como é perigoso ser mulher (ou entendem muito bem e se aproveitam de todo um sistema que quase sempre absolve estupradores). O amigo da jovem, o motorista do aplicativo, o cara que a retirou do carro, não a estupraram. Mas, por sua irresponsabilidade e negligência, criaram todo um cenário para que um outro homem a levasse. Meros seis minutos depois de ter sido abandonada.
É uma história horrível demais. E nada incomum.