Quando as onças caminham pelo chão da floresta, o silêncio dos seus passos e a camuflagem do seu pelo entre as folhagens vez por outra se contrapõem aos gritos dos pássaros ou os assovios dos macacos, que vendo a maior predadora das Américas dão o alarme e fogem. Paradoxalmente, a presença das onças pode ser contraposta a uma certa cacofonia de quem as vê de longe.
Não hoje. Disseram que hoje a floresta está quieta. As onças hoje não caminharam e encolhidas em suas tocas, em silêncio, se despedem de seu maior defensor. Disseram que os outros bichos, vendo a quietude das onças, também se calaram.
Peter Gransden Crawshaw Junior, brasileiro, nascido no interior de São Paulo há 69 anos, criado no Rio Grande do Sul, foi muito mais que um pesquisador. Foi um pioneiro que com sua experiência abriu e pavimentou o caminho da pesquisa e conservação da onça-pintada no mundo, um lugar por onde todos os pesquisadores que vieram depois caminharam.
Há meros 45 anos, o terceiro maior felino do mundo era um ilustre desconhecido. Foi a partir de uma vinda do mastozoólogo alemão naturalizado estadunidense George Schaller para o Brasil, em 1976, que Peter, então estudante de biologia, teve seu primeiro contato com o universo da pesquisa dos grandes predadores. O destino de Schaller seria a Fazenda Acurizal, hoje sede da RPPN de mesmo nome, na Serra do Amolar, no Mato Grosso do Sul. Peter, junto com Mara Crawshaw, então sua esposa, e a filha mais velha, com apenas três aninhos, partiu para Acurizal, em uma época em que a Serra do Amolar era um lugar quase impossível de chegar. Lá se estabeleceram para o primeiro estudo de onças pintadas no mundo.
Pela perseguição às onças por parte dos fazendeiros na região, Peter e George, depois de 2 anos, desistiram da pesquisa em Acurizal, mas não das onças e em 1980 migraram seus estudos para a Estância Miranda, hoje Refugio Ecológico Caiman. Schaller deu o ponta pé inicial ao projeto e em seguida foi para a China iniciar estudos com pandas, deixando Peter (e a família) em companhia de Howard Quigley, hoje vice presidente da organização Panthera, onde atuaram até 1984. Nascia ali a historia da pesquisa e conservação da onça-pintada.
Onça-pintada é assim… tem um lugar certo no nosso imaginário… seja nos sertões do Brasil, nas rodas de conversa em volta de uma fogueira, no silêncio da beira dos rios do Pantanal, nas noites de céu estrelado no sertão… dos antigos Maias aos índios do Xingu, dos peões do Pantanal aos ribeirinhos da Amazônia e mesmo entre quem mora na cidade, onça é sempre onça e desperta na nossa imaginação magia e respeito. Admiração e mistério que quase ninguém sabia traduzir.
O Peter sabia.
Tinha o dom de entende-las como ninguém. Sentia no ar sua presença. Não por um dom sobrenatural, mas antes de tudo por uma dedicação extrema as atividades de campo. Era um biólogo de mato, que gostava de mato e de natureza acima de tudo. Que observava a natureza das onças e por isso as lia como ninguém.
Do Pantanal, Peter foi para a Flórida para seus estudos de mestrado e na volta para o Brasil se estabeleceu em Foz do Iguaçu. O Projeto Carnívoros do Iguaçu, no icônico Parque Nacional de mesmo nome, reuniu ao longo dos anos um sem numero de estudantes e recém graduados, que vinham de diversas partes do país para aprender com aquele brasileiro de nome gringo – herança do pai inglês.
Passaram por ali Sandra Cavalcanti, Ronaldo Morato, Rose Gasparini-Morato, Ricardo Boulhosa, Fernando Azevedo, Renata Leite-Pitmann entre tantos outros. Pode-se dizer que, seguindo a filosofia de formar e capacitar pessoas, Peter treinou praticamente todos os profissionais que na década de 1990 passaram a desenvolver projetos com felinos pelo Brasil. A semente plantada lá no Pantanal se transformava então numa árvore ramificada por todos os biomas brasileiros.
Entre os profissionais recém formados que chegaram em Iguaçu estava Rose Gasparini-Morato, que o havia conhecido em 1992, por ocasião dos estudos sobre a fauna que seria impactada com a construção da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera. Além da amizade de uma vida inteira, a Rose coube o fundamental papel de ajudar a construir a base documental do CENAP (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Predadores Naturais), formalmente criado em 1994 pelas mãos da então presidente do IBAMA, Nilde Lago Pinheiro, estimulado também por Maria Tereza Jorge Pádua. Pensado para operar nos mesmos moldes que o TAMAR, a criação do CENAP trouxe também a necessidade de criar uma organização não governamental que pudesse captar recursos e ampliar as ações para todo o Brasil. Com essa premissa, junto com sua rede de ex-estagiários e ajudantes, em 1996 Peter ajudou a criar o Instituto Pró-Carnívoros, tendo como primeira presidente Rose Gasparini-Morato.
Juntos, CENAP e Pró-Carnívoros se transformaram no fio condutor da maioria das pesquisas com carnívoros realizadas no país nas décadas de 1990 e 2000, sendo uma das principais referências na conservação de felinos no mundo. Até hoje traz consigo a premissa de seu fundador: agregar e capacitar pessoas e produzir informação não apenas sobre o conhecimento das espécies, mas também para promover a convivência dos predadores com as populações humanas e fomentar politicas publicas, como subsidio para criação de unidades de conservação e o estabelecimento de ações articuladas nos planos de ação.
A historia por si só mostra ao mundo o tamanho e a influencia do caminho que Peter Crawshaw trilhou e pavimentou pelo planeta, mas quem teve o imenso prazer e privilegio de o conhecer sabia que nem de longe isso era o mais importante.
O Peter era antes de mais nada um amigo dos amigos, uma pessoa generosa com seu conhecimento que fez questão de passar pra frente tudo o que aprendeu com as onças. Aprendia com elas, traduzia pra nós e a partir de seu conhecimento nos ajudava a traçar os próximos passos do conhecimento cientifico sobre elas. Era um aglutinador nato, que juntava gente como mosca no mel por onde passava, levando sempre sua alegria, a risada solta, inúmeros causos de onça e seu inseparável violão. De estudantes a grandes referências mundiais na conservação da natureza, Peter, mais do que respeitado, era amado por todos. Com seu jeito boa praça, suas inúmeras historias e sua voz grave e afinada nos fazia ter vontade de sentar no chão da sala para ouvi-lo falar… falar de onça.
Foi o pai de todos nós, foi o tradutor do que a onça contava, nossa fonte de inspiração e amor pelos felinos.
Viveu intensamente. Sobreviveu a mordida de onça, queda de ultraleve, sequestro na Bolivia, acidente de barco e tantas outras intempéries… Viveu e viu um mundo que poucos viram e viveram. Teve uma vida espetacular e por isso dizia que não tinha medo de morrer.
Há muitos anos, em uma captura de onça em Bataguassu, Peter a cavalo, para e olha bem para o Ronaldo e fala “É, hoje é um bom dia pra se morrer”
Peter… pra nós que ficamos, nunca seria um bom dia para ver você ir embora.
Obrigada por tudo.
**Angela Kuczach e Ronaldo Morato foram amigos e ex-auxiliares de campo do Peter.
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O post “O silêncio das onças: Nosso adeus ao Peter Crawshaw Jr” foi publicado em 25th April 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco