Me pediram um texto sobre a história do esforço para salvar a ararinha-azul. Acho difícil fazer um texto quando tem tanta coisa para contar. É difícil demais para mim escrever uma coisa que não pareça algo tipo “querido diário”, porque a minha vida foi profundamente afetada por essa espécie. De memória, compartilho com vocês o que vi.
O marco dos esforços para salvar a ararinha começou em 1986, quando o ornitólogo Paul Roth viu os 3 últimos indivíduos em Curaçá. Tenho guardada em algum lugar a carta que ele enviou para o Jorge Martins, que foi meu mateiro por vários anos, falando da urgência de fazer alguma coisa para salvar a espécie.
O governo brasileiro entrou de sola nessa luta. A Maria Iolita Bampi, na época Chefe do Departamento de Vida Silvestre (DEVIS) no então IBAMA, tomou a frente e lutou bravamente. Uma batalha árdua que a Iolita conduziu com maestria. Se essa espécie tem hoje uma chance de sobreviver, isso é graças aos esforços dela.
Iolita criou um comitê internacional, estruturou um programa de cativeiro… que teve início com – pasmem – apenas 15 animais. Poucas vezes na vida vi uma pessoa lutar com tanta garra por uma espécie como a Iolita lutou pela ararinha-azul. E aí a correria para tentar encontrar ararinhas “escondidas” pelo mundo. E anistiar proprietários que quisessem se juntar ao programa. Quem já trabalhou com espécies “estrelas” sabe que a certa altura você perde mais tempo manejando egos gigantes e interesses pessoais e institucionais do que a espécie em si.
Trabalho na terra das ararinhas
Outro grande aliado da ararinha foi o biólogo Marcos Aurélio Da-Ré, que chegou a Curaçá em 1990, carregando vontade, sonhos e um jeito brilhante de perceber a comunidade, de envolver as pessoas. Ele criou o conceito de “Comunidade de Conservação”, valorizando os saberes locais, transformando moradores em atores deste processo.
O trabalho que o Marcos fez em Curaçá é de uma lindeza e de um pioneirismo incríveis. Ele ficou em Curaçá por seis anos, e a meu ver, revolucionou a forma de se pensar e fazer conservação.
Cheguei em Curaçá, em 1994, para dar uma olhada e de repente fazer algum trabalho de campo do doutorado lá. Mas aí, no primeiro dia o Marcos me levou para a fazenda Prazeres, que era onde a ararinha e a maracanã iam no final de tarde.
A ararinha-azul, um macho, estava pareada com uma fêmea de maracanã, e todas as tardes elas iam para os Prazeres, pois a maracanã dormia em um oco em caraibeira, então a ararinha esperava ela se recolher e só depois voava para o meio da caatinga fechada para ir dormir em um cacto, um facheiro [que nossa equipe encontrou com muito custo]. Daí voltava de manhã para buscar sua maracanã. Quando eu vi a ararinha chegando pela primeira vez, meu coração falhou umas batidas e chorei até desidratar (pisciano é uma lástima, só sonha e chora). Era muita fragilidade em uma única ave, muita responsabilidade para uma ave tão pequena. Nesse momento decidi me mudar de vez para Curaçá.
Me apaixonei por Curaçá já no primeiro dia, no primeiro “ôxe”. No ano seguinte mudei de mala, cuia e amor. Me encantei com a forma como o Marcos envolvia a comunidade em tudo o que fazia. Escolinha construída em mutirão, reforma de um teatro centenário, onde funcionaria o Centro de Cultura Ambiental Ararinha-Azul! E para a reforma, a cidade inteira vendeu rifa, fez festa, só não vendemos os rins… o dia em que o teatro ficou pronto e foi inaugurado, tinha meio mundo de gente limpando, lavando A RUA para a festa de inauguração. A lembrança dessa visão sempre, sempre vai me fazer chorar.
Curaçá tinha orgulho de ter a ararinha. Os vaqueiros eram os “vaqueiros da ararinha”. A espécie pousou na bandeira do município e no coração dos moradores. E o sertanejo passou a associar seu próprio destino ao destino da espécie.
Muitas vezes ouvi que a ararinha era igual aos vaqueiros: abandonada à própria sorte, mas resistindo, sem nunca desistir. Também ouvi muitas vezes que a ararinha e os vaqueiros são dois filhos valentes do sertão. Que o sertão resiste no corpo frágil da ararinha de Curaçá.
Um trabalho de envolvimento que por mais de dez anos protegeu o último exemplar selvagem sem termos um metro quadrado de área protegida. Acredito mesmo que o sucesso dos projetos de conservação se devem às relações de amor, respeito e cumplicidade construídas entre a equipe que está em campo e os moradores locais. E é tão fácil se apaixonar por Curaçá. Histórias sobre Lampião (conheci a bisneta de quem fazia os sapatos do bando, iguais na frente e atrás para a polícia não saber pelo rastro se estavam indo ou vindo). Dá para escrever um livro.
Discutíamos tudo com a população: o que estava acontecendo, as trocas de ovos, os perrengues. Tomadas de decisão (nos bares, quase sempre) com a participação das pessoas.
Estudamos o par heteroespecífico ararinha vs. maracanã, monitoramos seus ninhos por até 12 horas diárias, trocamos os ovos inférteis por ovos e filhotes de outras maracanãs, descobrimos que esse par sui generis podia criar filhotes e o próximo passo seria sincronizar a reprodução de cativeiro e campo para colocar filhotes de ararinhas nascidos em cativeiro no ninho deles, para que a “cultura” da espécie pudesse ser transmitida aos filhotes pelo macho. Infelizmente, o último macho desapareceu antes que pudéssemos fazer isso. Uma fêmea de cativeiro também foi solta para se tentar o pareamento, mas depois de se juntar ao macho por algum tempo, ela desapareceu.
Quando você trabalha com uma espécie é inevitável que tenha uma sintonia meio mágica com ela (sim, eu sei que isso não é nada profissional, mas dane-se). Quando a espécie se reduz a um único indivíduo, o nível de conexão fica ridículo. Morei em Curaçá por 4 anos. E TODOS OS DIAS quando em campo eu ouvia os “gralhos” do macho eu pensava com alívio “mais um dia, mais um dia”. Umas duas vezes que eu viajei a ararinha deu uma desaparecida enquanto estava fora, ninguém achava a bichinha, e daí ela reaparecia no dia em que eu chegava. Daí ficou meio “lenda” que ela podia sentir quando eu estava chegando. Claro que eu achava isso lindo e meu coraçãozinho apaixonado meio que acreditava (sim, eu sei que obviamente isso é bobagem). Eu saí de Curaçá em janeiro de 2000, embora continuasse a coordenando de longe o Projeto Ararinha-Azul, e a ararinha desapareceu nesse mesmo ano em agosto. Quando eu voltei para coordenar as buscas, a primeira coisa que eu fiz foi ir para um antigo ninho e ficar lá a manhã toda. Esperando. Sabe quando você acredita MESMO que ela vai vir até você??? Sim, sou bicho besta. Ela não voltou. Depois coordenei o programa de cativeiro até 2009.
O desaparecimento do último macho selvagem conhecido, em 2000, gerou um furdunço: eu recebia um monte de ligações por dia perguntando de quem era a culpa, entre outros absurdos. Esse sumiço partiu meu coração e trouxe uma dor imensa. Além de, obviamente, significar uma ferramenta a menos para a conservação da espécie, pois não haveria mais nenhuma ararinha selvagem para ensinar as de cativeiro a “serem ararinhas”.
Ah, é importante mencionar que esses 10 anos de trabalhos foram financiados principalmente pela Fundação Loro Parque. Sem a ajuda deles teria disso impossível fazer esse trabalho que foi a base para qualquer futura ação de conservação. Além do patrocínio, se envolveram profundamente no programa de cativeiro, e foi a primeira instituição (e até onde sei, a única) a devolver a propriedade de suas ararinhas-azuis ao governo brasileiro.
Vinte anos depois, as pessoas ainda lembram, ainda têm vivas na memória as histórias vividas com o Marcos, comigo e com as pessoas que passaram pelo Projeto Ararinha-Azul. E isso é de uma lindeza que me emociona até não poder mais.
Não tenho como escrever um texto que não seja sentimental sobre a ararinha. Ela foi o grande amor da minha vida e mudou minha vida totalmente: eu sou uma pessoa diferente depois da caatinga, e a profissional que eu sou hoje foi moldada em Curaçá.
Esse texto é para lembrar, honrar e agradecer a última ararinha-azul e todas as pessoas (e não foram poucas) que já trabalharam, batalharam, se emocionaram e lutaram para que a espécie volte a voar no céu da caatinga.
Vou finalizar com um trecho da música que o amigo Fernandinho de Curaçá fez para as ararinhas:
“E meu desejo é te ver voando, e meu desejo é te ver voltar, minha esperança é te ver voando da Serra da Borracha até a Serra do Juá”
Bom, agora vou enxugar as lágrimas desse teclado antes que eu queime meu computador, e não estou podendo.
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O post “O sertão resiste no corpo frágil da ararinha de Curaçá” foi publicado em 3rd March 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco