A relação de diferentes povos indígenas com a natureza passa pela instância do sagrado e da ancestralidade. O rio Juruena e seus afluentes que formam a sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, é um exemplo dessa relação de respeito, amor e devoção. Celebrado pelos indígenas, mas um ilustre desconhecido da maioria dos brasileiros, o Juruena nasce no Cerrado, em Mato Grosso, e suas águas cristalinas seguem rumo ao norte em uma paisagem que aos poucos deixa a savana para adentrar na maior floresta tropical do mundo. Em território amazônico, o Juruena encontra seu destino na fronteira matogrossense com o Amazonas e o Pará, e dá vida ao famoso rio Tapajós. Apesar da sua importância ecológica e cultural – além de sua beleza cênica – o Juruena permanece invisível aos olhos de grande parte da sociedade. Enquanto isso, projetos de hidrelétricas e barragens avançam sem alarde sobre suas águas. Atualmente, o Juruena e seus afluentes contabilizam mais de 30 hidrelétricas, e mais uma centena estão previstas para serem erguidas na sub-bacia, uma ameaça ainda maior ao já impactado fluxo hídrico, assim como aos povos que dependem do rio para comida, transporte e para algo imensurável: a preservação do sagrado.
Para dar visibilidade à sub-bacia do Juruena, aos povos indígenas que vivem na região e aos impactos das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) na vida do rio, a Operação Amazônia Nativa (OPAN), organização indigenista que atua no território desde 1996, produziu um mini documentário. Lançado no final de março, o vídeo é dirigido pelo fotógrafo de natureza e colunista de ((o))eco , Adriano Gambarini, e conta com a narração da militante indígena Marta Tipuici, da etnia Manoki, e representante da Rede Juruena Vivo.
O mini documentário, disponível online , apresenta o Juruena, os seus saltos sagrados, os povos indígenas que habitam suas margens e escuta os relatos dos seus habitantes seculares sobre o impacto das hidrelétricas e das barragens no rio. O vídeo também documenta outro problema: o avanço da fronteira agrícola e, junto com ela, dos agrotóxicos.
Para saber mais, ((o))eco conversou com o fotógrafo Adriano Gambarini sobre o documentário e sobre os impactos das hidrelétricas na região amazônica.
((o))eco: De onde surgiu a ideia do projeto e a sua relação em particular com o Juruena?
Adriano Gambarini: A OPAN fez várias viagens à bacia do Juruena para resgatar histórias dos povos indígenas com relação aos saltos sagrados e para dar visibilidade ao problema das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Isso gerou um livro [Paisagens Ancestrais do Juruena, lançado em 2019] e desde então havia a vontade de também fazer um documentário sobre o tema. Foi contratada uma produtora, que fez a captação de entrevistas e imagens das PCHs, mas não fez o vídeo, e aí a OPAN me chamou para dirigir porque eu conheço o Juruena há muito tempo. A primeira vez que eu fui para lá foi em 1999, quando refiz a rota da expedição do naturalista russo Langsdorff [realizada entre 1821 e 1829]. E eu fui muitas outras vezes para Juruena, para diferentes fins e até outros documentários e para outros projetos da OPAN, então aproveitei essas imagens também.
E eu vi a importância e tenho muito amor e respeito ao Juruena. O Juruena é um rio de extrema importância ecológica para toda a Amazônia, porque quem abastece os grandes rios são os rios menores. E se você considerar que o Juruena faz um trajeto extremamente longo, para depois se tornar um rio de extrema importância que é o Tapajós, e ele vem trazendo uma fertilidade gigante pelo caminho. Para mim o Juruena tem uma importância enorme nesse sentido, porque ele abastece de fertilidade alguns rios que formam o bioma amazônico hidrograficamente falando. Eu tenho esse xodó pelo Juruena por isso e também por causa da beleza cênica dele, é um rio maravilhoso, os afluentes dele são igualmente lindos, com águas transparentes. O rio Juruena é isso, fertilidade, é um dos grandes berços da fertilidade amazônica e pouca gente conhece.
Um dos objetivos do documentário é expor o problema das hidrelétricas na região. Conte um pouco mais sobre isso.
Existem PCHs planejadas tanto para o Juruena quanto para o Teles Pires, os rios que juntos formam a Bacia do Tapajós. Já tem inclusive uma hidrelétrica gigante construída no Teles Pires que eu tive a chance de sobrevoar. Essas grandes obras vão afetar diretamente o fluxo e a migração dos peixes. E no vídeo a preocupação maior é chamar atenção para essa problemática das hidrelétricas e da expansão agrícola no entorno, para mostrar que esse lugar lindo está em risco. O Salto Augusto, por exemplo, fica no leito principal do Juruena e é um salto super importante do ponto de vista ambiental, histórico e cultural – tanto pelos indígenas quanto pelos naturalistas que já passaram por ali – e tem um projeto de barragem nesse salto. E quando você vai lá, você pensa, por que uma barragem aqui? Vai ser mais uma Belo Monte. Eu, pessoalmente, sempre falei que não sou contra o progresso, mas que precisamos ter bom senso. Chega de obra que não gera nada, só impacto.
Esse é um governo que dá cada vez menos voz aos povos [indígenas] e ao meio ambiente. E essas PCHs estão sendo feitas muito a toque de caixa, sem uma avaliação dos efeitos colaterais na migração dos peixes, por exemplo. Eu vi vários povos indígenas dizendo que ali tinha peixe e agora não tem mais. Eu ouvi um cacique falando que antes eles entravam no rio e em meia hora, uma hora, voltavam com bastante peixe, e hoje tem que ficar quatro, cinco horas… navegar no rio para tentar achar um cardume de peixe. E existe ainda outro problema, que são as cevas que alguns fazendeiros que têm terras bordeando os rios fazem, aí os peixes ficam concentrados onde tem a ceva e os índios não podem acessar porque tem que passar pela fazenda. E existem esses conflitos de vizinhos porque para os indígenas não há fronteira, eles querem pescar e vão pescar.
Essas PCHs não fazem uma avaliação aprofundada dos efeitos colaterais de construir barragens em sequência no mesmo rio. A grande dificuldade do ser humano é pensar em longo prazo, porque o impacto ambiental de uma ação às vezes só é visto daqui a 10 anos. E aí se constrói uma barragem sem avaliar a migração dos peixes, sem avaliar se é um ponto estratégico de fluxo de peixe, por exemplo, e o dano a esse fluxo de peixe não vai acontecer ano que vem, vai acontecer daqui a sete, oito anos.
Obras dessa envergadura têm que ter uma projeção das consequências sobre o meio ambiente. Porque se há consequências para o meio ambiente, é óbvio que vai haver consequências para essas comunidades que vivem em função daquele meio ambiente. É óbvio.
Belo Monte é um exemplo emblemático de hidrelétrica construída mesmo com muita pressão contrária e com estudos que evidenciavam que além dos inúmeros impactos socioambientais, não iria cumprir a meta de geração de energia. Ainda assim, Belo Monte está aí. Centenas de outras hidrelétricas estão planejadas para a bacia Amazônica sem a mesma repercussão e discussão na sociedade, como fazer para evitar novas Belo Monte?
A parte mais importante é colocar governantes decentes lá dentro. Porque a empresa que vai construir a obra não está preocupada com o que vai acontecer daqui a 5 anos, ela quer construir a obra. E no final, a pressão econômica e o lobby é tão grande que vence mesmo em casos como Belo Monte, que teve uma mega ação da comunidade e comoveu muita gente e até celebridades. Como a gente faz para evitar novas tragédias como Belo Monte? Colocando políticos bons lá. E aí a gente vai no cerne do problema brasileiro: governantes ruins, que não pensam a longo prazo, que põe o próprio interesse acima do interesse coletivo.
Qual a importância de dar visibilidade ao Juruena?
Se Belo Monte saiu, com toda a pressão social em cima, que dirá essas barragens pequenas na bacia do Juruena. Pergunta para qualquer pessoa aqui do sudeste onde é o Juruena e ninguém sabe. As pessoas já ouviram falar de Tapajós, Madeira, Solimões, Xingu… mas Juruena? Teles Pires? Quase ninguém sabe. Que dirá rio Papagaio, rio Buriti e os outros, é muito rio e a maioria das pessoas só conhece o que sai na grande mídia.
Eu acho que esse governo está expondo de forma tão explícita a intenção deles que acho que catalisou essa comoção nas pessoas. Mas as pessoas esquecem. Então se a mídia ficar seis meses sem falar da Amazônia, acabou. A Amazônia é uma ideia distante e eu acho que a única forma de manter acesa essa comoção é continuar jogando o máximo de informação possível na mídia, é o único jeito.
Existem 20 povos indígenas de diferentes etnias na sub-bacia do Juruena, como é a relação deles com o Juruena?
Eu andei com cinco etnias, documentei vários povos, e cada um tem suas lendas e crenças, mas todos eles têm essa relação de sagrado com os saltos. O rio é sagrado. Esses saltos são sagrados, há lendas ao redor deles. Todos os povos têm essa mítica e consideram os saltos próximos da aldeia deles sagrados, isso não é restrito a um povo só.
Além das Terras Indígenas há também unidades de conservação na sub-bacia, como o Parque Nacional do Juruena. Você acredita que essas áreas protegidas são suficientes para garantir a proteção do rio ou elas também estão vulneráveis?
Elas estão vulneráveis. Porque eu não duvido que eles mudem a área dos parques e refaçam os limites para beneficiar outros interesses. Acho que mexer em Terra Indígena é mais complicado, mas eles estão colocando militar na Funai, o que podemos esperar? Se você me perguntar o que sustenta a Amazônia em pé enquanto floresta, eu acho que são as Terras Indígenas e o mosaico de unidades de conservação. É o que sustenta. Porque mesmo com essas áreas já tem invasão de garimpeiro, madeireiro, tudo isso, imagina se eles tiram esses limites? As Terras Indígenas são grandes áreas que ainda protegem o bioma. E esse tipo de mosaico de áreas protegidas é essencial, senão acaba tudo mesmo.
O que você espera que o documentário desperte nas pessoas?
Eu espero que as pessoas percebam que está tudo integrado. Que as pessoas percebam que a Amazônia é brasileira e está tudo integrado, porque os indígenas vão sofrer, mas nós todos vamos sofrer eventualmente. Eu queria fazer um documentário de 2 horas para mostrar que a falta de água em São Paulo tem a ver com a destruição da Amazônia, que a causa é o que está sendo feito lá, porque isso está provado cientificamente. A minha ânsia é divulgar o máximo possível essas coisas da área ambiental que a sociedade às vezes não tem acesso e tentar manter essa comoção. A pessoa não sabe onde é o Juruena? Vamos mostrar onde é.
Acho que o papel é expor esses problemas que estão longe dos olhos da maior parte da sociedade. E acho que foi importante trazermos uma indígena militante para fazer a narração, dá mais força à mensagem que queremos passar. Numa palestra que eu fiz no TED Talks, eu abri perguntando quem conhecia os guaranis e todo mundo levantou a mão. Depois perguntei sobre outros 10 povos indígenas com os quais eu trabalhei e ninguém conhecia. Esses povos indígenas do documentário, por exemplo, são desconhecidos da maioria das pessoas. Eu gostaria muito que esse documentário fosse para um canal de TV grande para alimentar essa comoção às causas indígenas. É curto, mas o recado está dado sobre o perigo que eles estão correndo lá, não só os indígenas, mas todo o sistema ambiental. Essa é a questão. Quando a indígena fala que estão jogando agrotóxicos no rio [Juruena], isso vai para todo mundo, não fica só para os indígenas.
O objetivo é mostrar essa importância ecológica do Juruena, que por consequência tem uma importância cultural enorme para os povos que vivem lá. É uma cadeia. Ele é importante ecologicamente, por isso ele é importante, socialmente falando, para os povos da região e por isso é tão importante ficar atento a essas interferências ambientais que já estão acontecendo ali. Essa pauta não pode ficar restrita ao meio indigenista, que é pequeno. A gente precisa veicular esse conteúdo o máximo que pudermos, é a chance de que a gente tem de atrair parceiros que não são da área para esta causa.
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O post “O sagrado violado: hidrelétricas ameaçam o rio Juruena e vida dos indígenas” foi publicado em 2nd May 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco