De dezembro a maio, o rio sobe. De junho a novembro, ele desce. Nessa sequência, ocorrem os ciclos das águas na maior bacia hidrográfica do mundo – a Bacia Amazônica.
O cientista florestal Jochen Schöngart, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica que essa subida e descida é um fenômeno natural que ocorre na Amazônia há milhões de anos: “Devido a sazonalidade de chuvas que ocorrem nessas enormes cabeceiras, esse curso de inundação tem uma ocorrência previsível, as cheias ocorrem no mês de junho enquanto as secas ocorrem mais no fim de outubro, início de novembro”, esclarece.
O problema é que há alguns anos esse ciclo hidrológico tem se tornado mais intenso, causando grandes inundações nos períodos de cheia e enchentes. Essa é a realidade dada pelas mudanças climáticas e pelas quais o planejamento dos municípios terão que se adequar. Em um período mais intenso que os anteriores, enchentes ocorrem com mais frequência a cada ano e, em 2021, o Porto de Manaus (AM) registrou no mês de junho a marca de 30,02 metros do Rio Negro, o nível mais alto desde o começo de seus registros, que iniciou em 1902 – cheias severas são quando as águas ultrapassam a marca de 29 metros. Atento a esses fatos, ((o))eco publicou a reportagem “Cheia histórica no Amazonas é uma mistura da variabilidade natural com mudanças climáticas ”, explicando os motivos desse marco histórico e como isso afeta a população mais vulnerável que, por falta de moradia, constrói suas palafitas ao redor dos igarapés. Nela foi apresentado Gil Eanes, de 56 anos, que há mais de uma década é líder comunitário do Educandos, bairro da zona sul que é grandemente afetado pelas cheias em Manaus.
Para se protegerem da água, os moradores montaram passarelas de madeira e, por meio das marombas , suspenderam seus móveis dentro das casas alagadas. Mas, e agora que o rio está em seu período de vazante, o que acontece?
Novos desafios aparecem
“Agora é hora de se deparar com a realidade que está escondida sobre as águas, é hora dos moradores retornarem às suas casas (aqueles que deixaram), fazer limpeza, tirar o lixo, trocar as madeiras que apodreceram. É hora daqueles que conseguiram ficar em casa desfazer as marombas, baixar os móveis, correr atrás de novos móveis que foram destruídos com a ação das águas e é hora também de toda sujeira que está embaixo das águas aparecer. Então, é hora de recomeçar, ver o que sobrou e a vida que segue”, diz o líder comunitário Gil Eanes, sobre o momento que o nível do Rio Negro começa a descer.
Embaixo de um sol de quase 40 graus, Gil acompanhou a reportagem de ((o))eco pelo bairro Educandos. Pedindo cuidado para ver onde pisa, devido a qualidade das madeiras que já estão apodrecendo, ele mostra como os moradores das palafitas, que vivem na orla do bairro, encontram-se ao redor do rio que vai secando, deixando à mostra apenas enormes quantidades de lixo. Conversando sobre a cheia deste ano, ele aponta para a marca que a água fez em uma das casas: da metade para baixo, a madeira está escura, em um marrom estufado, e da metade para cima, observa-se a cor original da tintura azul.
Receptivo e preocupado, Eanes atravessa as pontes de madeira sobre a água poluída cumprimentando todos e, entre um boa tarde e outro, recebe as demandas dos moradores. Entre os objetos mais solicitados está o colchão, objeto primário para o conforto e dignidade humana, que muitas famílias perderam durante a enchente histórica.
A moradora Yolanda Silva conversa com o líder comunitário sobre o auxílio de 300 reais que os moradores receberam da Prefeitura de Manaus. Ao notar a reportagem, me convida para entrar na casa e apresentar a situação. Ela mostra o colchão que a família usa, estragado pela água suja, e explica não poder bancar um novo, devido a atual situação financeira. “É o que restou, ele está se desfazendo todinho. Eu não joguei ele porque não tenho condições, não tenho emprego”, conta, segurando os pedaços de espuma que se desfaz com o manuseio.
Yolanda se preocupa em manter a casa em pé, sente medo de que a madeira não aguente mais o peso, porque depois de meses submersa, a qualidade não é mais confiável. “Não sei como tá aqui embaixo, porque não tem segurança, olha (empurra o piso com o pé, impulsionando um pequeno vai-e-vem). Quando eu estava trabalhando eu comprei esses pauzinhos aí, mas agora não tenho trabalho, não tenho nada. E uma casa tá vindo por cima da outra.”
Esse medo também é compartilhado por Ellen Cristina. Na entrada de casa, sentada com sua filha no colo, ela conta como tem medo da palafita romper com sua família dentro. “A minha casa tá mole e tem que reformar porque tá balançando muito, tenho medo dela cair com meus filhos aí”, diz.
Seus depoimentos são pedidos de ajuda. Com a cabeça encostada na porta e cansaço no corpo, reivindica que a Prefeitura assista os moradores com, pelo menos, madeiras novas. E entre um sermão e outro para sua filha, Caroline, que estava curiosa com o celular utilizado pela reportagem, apontava para a estrutura de sua casa que estava torta, além do lixo que encontra-se ao fundo.
Mesmo com a água invadindo as casas no período de cheia, ambas as famílias permaneceram no Educandos, levantaram suas marombas, e conviveram com a água poluída dentro de seus lares. Yolanda afirma que com o auxílio de 300 reais pago pela Prefeitura não tinha condições de pagar um aluguel e todas as despesas durante esses meses em que o rio sobe. Consequentemente, por conta dessa permanência, uma questão que também se nota são as doenças. Caroline, filha da Ellen, é muito pequena, tem por volta de 4 anos de idade, e seu pescoço, braços e pernas estão repletos de bolinhas que causam intensa coceira na criança; Cristina explica que já está melhor porque vêm cuidando.
Choque de realidade, por Gil Eanes
A principal questão, que todos apontam, sempre é a sujeira: “Quanto mais seca, mais aparece lixo”, conta Cristina. Enquanto a reportagem registra o espaço, Gil grava um vídeo-denúncia, solicitando que a Prefeitura venha fazer a limpeza do rio, para que os moradores tenham o mínimo de qualidade de vida.
“Eu cresci tomando banho e bebendo dessa água”, é o que conta o líder comunitário, ao ser questionado sobre o motivo de ter se dedicado por mais de 10 anos em cuidar do Educandos.
De acordo com suas lembranças, pessoas de todos os cantos de Manaus vinham para se refrescar do calor tropical, característico da região, nessas águas. No entanto, com o passar das décadas e o crescimento dos arredores, a sujeira passou a desembocar nos igarapés. Depois de anos, já casado, com filhos e aposentado do Distrito Industrial, teve tempo de olhar novamente ao redor e, durante as eleições para a presidência do conselho comunitário que ele veio para dar apoio, há 15 anos (antes de se candidatar), desceu à orla mais uma vez, com mais palafitas que antigamente.
“Meus deus, cadê o meu igarapé?”, ele cita. “Eu parei, fiquei parado com o choque de realidade. Todo mundo andando e passando, parece que ninguém mais tinha percebido”.
Terminada a eleição, ele ficou. Não parou mais de trabalhar pela comunidade e pela revitalização do Igarapé, que um dia teve a água limpa e a areia branca e onde os moradores de uma área menos privilegiada da cidade tinham acesso ao lazer.
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O post “O que sobra quando o rio desce?” foi publicado em 15th September 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco