Quem vê a graça e o sorriso naturalmente leve do jovem venezuelano Elvis Daniel ao realizar suas tarefas diárias no laboratório Sabin, onde trabalha em Brasília (DF), nunca poderia imaginar tamanha desgraça vista por seus olhos e sentida em seu corpo.
“Sabe, eu estudava na Venezuela, tinha dois bons empregos. Mas quando saí de lá vi um lado do mundo que não conhecia. Coisas horríveis aconteceram comigo que eu jamais vou esquecer”, conta o jovem de 25 anos sobre sua chegada ao Brasil em maio de 2018.
Elvis teve que enfrentar uma jornada dramática para sobreviver. Ele sofreu violência extrema devido à sua identidade de gênero quando morava nas ruas de Boa Vista (RR), capital do estado de Roraima, mas conflitos e dificuldades já faziam parte de sua vida.
Como a maioria das pessoas LGBTI da Venezuela, mostrar sua verdadeira identidade como homem gay estava fora de questão. Apesar de ter a aceitação de sua mãe, irmãos e amigos, um Elvis diferente existia fora da segurança do seu lar.
Em espaços públicos, como na igreja e no trabalho, Elvis escolhia cuidadosamente suas roupas e controlava suas maneiras para fazer as pessoas acreditarem que ele era heterossexual. “Eu tinha medo de ser espancado, e minha mãe também. Eu nunca quis preocupá-la”, relata.
Mas essa era apenas uma das razões pelas quais ele e sua mãe estavam se sentindo inseguros. À medida que a crise na Venezuela continuava a se intensificar, Elvis não conseguia mais suportar ver sua família ter que escolher qual refeição poderia fazer no dia. Meses antes de vir para o Brasil, a família já sofria com a falta de alimentos – apesar de trabalharem duro para ter o que comer.
O desespero da fome levou Elvis a querer encontrar uma solução para ajudar sua família. Mas foi o medo da violência que o forçou a fugir de seu país. Mal sabia ele que violência era exatamente o que estava lhe esperando.
Ao sair da Venezuela, Elvis teve que pagar um coiote para atravessar a fronteira. “Devido à minha orientação sexual, tive que fugir pela mata. Eu sobrevivi três dias de travessia com pouca água e alguns biscoitos. Testemunhei muitas coisas horríveis, incluindo pai e filha que morreram porque não conseguiram atravessar o rio. Realmente, não sei como consegui chegar até aqui.”
No Brasil, Elvis encontrou em Boa Vista uma comunidade onde sentiu que poderia pertencer, recomeçar e encontrar meios de ajudar sua família. Mesmo morando nas ruas, nada podia tirar do seu rosto o sorriso aliviado e o sentimento de ternura em relação aos amigos.
Depois de um mês nessa situação – onde ele eventualmente teve que vasculhar latas de lixo para encontrar algo para comer, um incidente extremamente violento abalou o mundo de Elvis: ele foi violentado sexualmente. “Ainda tenho as cicatrizes no meu corpo. Eles arrancaram partes de mim… essas memórias ainda estão muito vivas.”
Em uma situação extremamente vulnerável, sem um lugar para morar e ninguém a quem recorrer, Elvis começou a se afundar em seus sentimentos. Primeiro, o medo. Então, raiva e desespero – seguido por uma sensação avassaladora de desesperança. “Eu estava prestes a acabar com minha vida”, diz o jovem que, na época, chegou a pesar apenas 35 kg.
Mas foi justamente quando atingiu o ponto mais sombrio que Elvis também encontrou esperança e resiliência que o impulsionaram a sobreviver.
Foi nessa mesma época que uma funcionária da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) o encontrou durante um monitoramento de proteção. “Talvez se não fosse por ela, eu não estaria aqui”, admite Elvis. “Ela me olhou nos olhos e me disse para não desistir. Ela viu quem eu era, me disse que eu poderia realizar grandes coisas na minha vida se eu acreditasse que as coisas iriam melhorar. E foi o que fiz.”
Catalina Sampaio, então assistente de proteção do ACNUR, era responsável pelos casos de alta complexidade em meio à população refugiada mais vulnerável. “Quando o encontrei naquelas circunstâncias, ficou claro que era um caso de vida ou morte. Esse é um dos tipos de assistência que o ACNUR presta que são essenciais porque, infelizmente, existem muitos Elvis por aí. E é vital que tenhamos recursos para continuar ajudando mais pessoas”, reforça Catalina, que hoje é chefe do escritório do ACNUR em Manaus.
Na ocasião, Elvis foi realocado para uma casa de proteção voltada para pessoas refugiadas LGBTI em Boa Vista, onde pôde começar seu processo de recuperação. O espaço foi montado pelo ACNUR com apoio do município.
Ao fazer uma doação para o ACNUR, você nos ajuda a oferecer abrigo e proteção a quem mais precisa.
“Eu sinto muito orgulho do Elvis, porque ele foi o protagonista da própria recuperação e proteção – não só dele, mas de muitos outros casos de pessoas que infelizmente enfrentaram situações semelhantes”, afirma Catalina.
Além de ajudar os amigos que fez em Boa Vista, o espírito contagiante de Elvis seguiu fazendo o bem e encantando as pessoas por onde passa, apesar de todas as dificuldades enfrentadas. Hoje, ele arrecada e organiza a distribuição de roupas, alimentos e todo tipo de ajuda a qualquer pessoa venezuelana que precise em Brasília, onde vive há nove meses após ser interiorizado.
Foi também em Brasília que ele conseguiu um emprego no laboratório Sabin e começou a reconstruir sua vida e ajudar sua família. Dois de seus irmãos já vivem com ele no Brasil, enquanto o terceiro está em Boa Vista a espera para poder se juntar a Elvis após a pandemia. Sua mãe recebe ajuda que ele envia mensalmente.
Apesar de sentir muita falta dela, o venezuelano encontrou no trabalho uma figura materna que o apoia em sua trajetória pessoal e profissional. Sua supervisora, Melissa Borges, o recebeu de braços abertos, e garante que todos façam o mesmo.
“Desde o dia em que o vi, fiquei encantada. Todos nós ficamos”, afirma a gerente. “Não apenas a equipe, mas toda a empresa. Sentei-me com ele no almoço e ouvi sua história. Nós choramos juntos e criamos uma conexão imediatamente. Muitas pessoas se voluntariaram para apoiá-lo com itens domésticos, dinheiro, comida, roupas. Nos sentimos agradecidos por ele estar conosco, e posso dizer o quanto ele aprendeu e contribui”, conta.
“Como seu trabalho é preencher para os colegas que estão de férias, ele viaja de unidade em unidade de tempos em tempos. Toda vez que ele vai para uma nova seção, ligo para eles e explico: ‘ele é um refugiado; ele precisa ser bem-vindo. Ele está longe da família e confia em nós’”, conta Melissa enquanto segura firmemente nas mãos de Elvis durante a entrevista.
A vida de Elvis desde então foi repleta de “milagres”, como ele diz. Apesar dos impactos econômicos em virtude da pandemia, ele continua trabalhando e apoiando sua mãe e irmãos. Quando a pandemia passar, ele vai começar presencialmente o curso de administração na Universidade de Brasília (UnB), graças ao programa de admissão para refugiados promovidos pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello do ACNUR, da qual a UnB faz parte.
“Quando comecei a trabalhar aqui, fui muito claro e disse que gostaria de aprender e seguir em frente com minha vida. Não tenho vergonha de dizer às pessoas que tive que morar nas ruas ou que precisei procurar comida no lixo. Porque o que determina quem eu sou é minha vontade de continuar lutando. Não vou desistir porque tive uma segunda chance de viver.”
Fonte
O post “‘O que determina quem sou é minha vontade de continuar lutando’, diz venezuelano no Brasil” foi publicado em 24th June 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ONU Brasil