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“No final das contas, é o Estado que decide que tipo de gente deve morrer e que tipo de gente pode viver”, me disse outro dia, na redação da Agência Pública, Ricardo Terto, escritor e editor dos nossos podcasts. Terto estava falando do massacre de Cláudio Castro no Rio de Janeiro , mas também de um tema sobre o qual nossa equipe de podcasts têm se debruçado nos últimos meses: a caça às bruxas do século 16 e 17.
Muito mais do que uma brincadeira de Halloween, a série Caça às Bruxas, uma história de terror real , que lançamos no dia 31 de outubro, é uma investigação histórica que mergulha em um capítulo ainda pouco conhecido do público, as caças às bruxas que explodiram na Europa no século 16 e 17 e chegaram ao novo mundo. Dezenas de milhares foram assassinadas no período em tribunais civis, chancelados pelo Estado.
O fenômeno é tema de estudos feministas há décadas, mas ainda está bem longe do que aprendemos na escola e na imprensa. Uma das pensadoras mais influentes sobre o tema é sem dúvida Silvia Federici, filósofa marxista para quem a violência contra mulheres que destoava dos ideais católicos e, principalmente, protestantes, fez parte da transição necessária para o capitalismo. Era preciso, nessa transição, retirar qualquer liberdade e poder das mulheres para obrigá-las ao papel de reprodutoras da mão-de-obra e de cumpridoras do trabalho doméstico não-remunerado, uma das engrenagens fundamentais para o modelo econômico.
Subjugar os desejos, domar o corpo e apagar os campos do conhecimento que eram das mulheres, como a medicina tradicional, foram passos necessários nesse processo, argumenta Federici.
No caminho, assassinar mulheres a céu aberto, na fogueira ou na forca, foi um ato de terror bem-sucedido, que conseguiu nos tornar “belas, recatadas e do lar”. Como disse meu colega Terto, era o Estado decidindo quais mulheres deveriam morrer, e como deveriam se comportar aquelas que sobrevivessem.
“Não existiria o mundo que vivemos hoje sem a caça às bruxas”, me disse a historiadora Suzana Veiga, especialista em história das mulheres, na live que fizemos na semana passada no canal da Pública no YouTube .
De fato, explica ela, muitas das imagens que ainda hoje ressoam quando pensamos em bruxas – essa fantasia inventada por homens para que a sociedade tenha medo de mulheres desviantes – tem a ver com o empuxo repressivo daqueles séculos.
Por exemplo, segundo a historiadora, a grande maioria das mulheres acusadas de bruxaria eram mais velhas. Por um lado, essas mulheres já não podiam reproduzir, já não serviam ao seu papel principal; por outro, muitas haviam adquirido poder de diversas formas – pela posição social, por deterem propriedades na condição de viúvas, por terem conhecimentos fundamentais sobre o nascimento e a morte.
Aquela bruxa velha e nariguda em que você pensa quando falamos em Dias das Bruxas é também uma construção feita para vilipendiar um grupo social.
Mas, diferentemente de outros episódios de massacres do passado, ainda hoje as caças às bruxas são tratadas como uma grande brincadeira, e a figura caçoante da bruxa velha ainda é usada como máscara tranquilamente nas festas de Halloween que cada vez mais se vê por aqui pelo Brasil.
O trabalho da jornalista, nesse contexto, é trazer para o rés-do-chão, para a história vivida, real, os acontecimentos que moldam as sociedades humanas. É por isso que eu mergulhei nos documentos dos julgamentos das bruxas de Salém ao longo dos últimos 4 anos e decidi contar a história de algumas dessas mulheres.
É preciso conhecer a história daquelas mulheres para ouvir suas vozes, e reconstruir essa simbologia com os nomes corretos. As mártires do feminicídio que pariu o mundo. Até hoje não temos controle sobre nossa reprodução e nossos direitos, nossa voz merece ser conhecida.
É o que tentamos fazer com o podcast. Convido você a mergulhar com a nossa equipe nessa descoberta e me contar depois suas reflexões. Os episódios 1 e 2 já estão em todos os tocadores, e a cada sexta-feira, às 13h, teremos um episódio novo.
Ouça aqui no Spotify e aqui no Apple Play.
Fonte
O post “O feminicídio que nos pariu” foi publicado em 10/11/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública
