Logo logo a gente fala aqui da bela vitória de Gabriel Boric no Chile, prometo.
Vinte anos atrás, a Argentina vivia a pior crise econômica de sua história. Em dezembro de 2001, numa economia dolarizada, para estancar a fuga de dólares, o governo realizou um confisco bancário (que a gente tinha sofrido dez anos antes), chamado de corralito. Cada pessoa só podia tirar 250 pesos (uns 250 dólares) por semana. US$ 70 bilhões ficaram congelados nos bancos, causando grandes protestos da classe média. A polícia matou cerca de 39 manifestantes.
O então presidente Fernando de la Rúa renunciou e fugiu do país de helicóptero. A Argentina teve cinco presidentes em 12 dias. O corralito ainda é um trauma (recomendo o filme A Odisseia dos Tontos , embora Nove Rainhas seja superior — por que no Brasil não tem filme falando do Collor roubando nossa poupança? O History Channel estreou o documentário 2001: El Año del Corralito. Quero ver!).
Eu me lembro bem disso tudo, apesar de só ter acompanhado as notícias pelos jornais brasileiros (a internet ainda engatinhava). Um ano depois, em 2002, visitamos Buenos Aires e achamos todo mundo muito humilde. O país se recuperava da sua pior crise.
A jornalista Cyntia Campos foi a Buenos Aires de férias bem no meio do conflito (“fogo de repórter, mesmo”), ficou uma semana lá correndo atrás de tudo que era manifestação, e escreveu uma excelente reportagem pra revista Conexão, do Sindicato dos Auditores da Receita (revista que não existe mais e nem está na internet).
É essa reportagem de duas décadas atrás que reproduzo aqui (toda essa conversa teve início quando Rogério Tomaz Jr anunciou que iria fazer uma live sobre a revolta de 2001 direto do Obelisco). Cyntia trabalha na assessoria do Senado desde 2011 e tem um incrível blog de viagens, o Fragata Surprise .
“Não somos nada. Queremos ser tudo”. Trazida numa faixa da Assembleia Comunitária de Parque Lezama, a frase chegou à Praça de Maio com o frescor e a promessa que, no Hemisfério Norte, se costuma atribuir à primavera. Mas aqui, ao Sul do Equador, ela carrega a luminosidade do verão nesta noite de sexta-feira de Carnaval, data de mais um grande protesto nacional na Argentina.
É prematuro estabelecer, agora, o significado que o som e a fúria dos panelaços terão no futuro do país, mas Buenos Aires tem o ar impregnado do clamor pela mudança. “Que se vayan todos”, ecoa a Praça de Maio, numa festa e num protesto que remetem, inapelavelmente, a um maio distante, em Praga e Paris.
“Que se vayan todos” não é força de expressão. “Eles não quiseram convocar eleições presidenciais, agora terão que engolir as eleições gerais”, afirma Juan José Oliva, aposentado daquela que já foi a maior estatal argentina, a petrolífera YPF, hoje privatizada. Eles são o Congresso Nacional e a Suprema Corte, esta ameaçada por processo de impeachment.
Oliva, antigo militante peronista, resume a descrença generalizada dos argentinos com os partidos tradicionais e a maioria da organizações sindicais, também comprometidas com o desastre neoliberal: “O país está pelo avesso, os políticos são cadáveres ambulantes. Vamos varrer todos os cães”. Ao lado de Oliva, sua mulher, Matilde Ferrando, professora de deficientes visuais, acompanha o ritmo do panelaço com duas tampas de bule de café: “Os políticos traidores deveriam perder para sempre o direito de se candidatar”.
Vizinhos e piqueteiros
Se os antigos gregos estavam com a razão em definir “caos” como “o que está por ser ordenado”, naqueles dias, Buenos Aires era o caos. Os argentinos pareciam querer começar do zero um novo ordenamento e novas formas de organização.
Os embriões do reordenamento são as assembleias de bairros, ou os “vizinhos autoconvocados”, e os piqueteiros, como são chamadas as organizações de desempregados. Nas reuniões de bairro discute-se de tudo: política, filosofia, carência da oferta de serviços públicos a determinada comunidade.
Os piqueteiros, organizados desde a segunda metade dos anos 90, são trabalhadores colhidos pelo desemprego, que cresceu a índices galopantes durante os anos de governo de Carlos Menem. A designação vem dos constantes piquetes montados nas estradas argentinas, fechadas com queima de pneus e protestos.
No panelaço de Carnaval o Bloque Piquetero chegou à praça sob intensos aplausos. Estavam de luto. Duas noites antes, o desempregado Javier Barrionuevo, 32 anos, fora morto com um tiro no peito, disparado por um motorista enfurecido, durante um bloqueio à Estrada 205, periferia de Buenos Aires.
Protestos Múltiplos
Por volta das 18 horas da sexta-feira de Carnaval, Juan Oliva e Matilde Ferrando, ambos na casa dos 60, destoavam da maioria de jovens que abriram as manifestações do “grande panelaço nacional”, convocado para aquela noite. Naquele instante, o batuque estava a cargo dos internos e residentes dos hospitais públicos. Eram cerca de 300, em seus jalecos brancos, muitos deles ainda com o estetoscópio em volta do pescoço. Concentrados em frente à sede da Intendência de Buenos Aires, na Praça de Maio, denunciavam a falta de materiais e equipamentos na rede pública de saúde.
O Hospital Posadas, um dos maiores da Província de Buenos Aires, “já não pode sequer atender uma urgência”, conta a médica Edith Martin. Faltam gaze, seringas e anestésicos. “Se os novos cortes anunciados para a saúde se confirmarem, não sei a que ponto chegaremos”. O fisioterapeuta Nicolás Rouk, outro líder do protesto, explica que governo vem “matando os serviços públicos” com cortes cada vez mais drásticos nos investimentos, “especialmente na área de saúde”.
“Paredão e desobediência”
Poucas horas depois a Praça de Maio estaria tomada pelas assembleias de bairros, desempregados, estudantes, poupadores traídos pelo “corralito”, aposentados, donas de casa, pequenos empresários, servidores públicos, que chegavam numa passeata interminável pela Rua Rivadávia.
Cada qual com seu protesto específico, que convergia sempre para o coro onipresente: “Que se vayan todos”. No centro da praça, o Obelisco da Independência ostenta o cartaz: “Eleições gerais ou desobediência civil”. Enquanto um grupo cantava por “paredão para os que venderam a nação”, um comportado grupo de servidores públicos desfilava com sua faixa de protesto contra a destruição do setor.
Luiz, funcionário da Dirección General de los Impostos (DGI), a Receita Federal argentina, explica que “o pior é a incerteza. Não há um projeto concreto para a nossa instituição e fala-se na dispensa em massa de pessoal”.
Ex-empregado da Price Waterhouse, Luiz tem dois anos de DGI. Ele conta que “o órgão ainda funciona porque os servidores se esforçam para isso, mas não parece haver vontade ou esforço do governo nesse sentido. Não há comunicação entre a administração e os trabalhadores”.
“Las pelotas”
Às três horas da manhã, ainda chegava gente à manifestação, ensaiada durante todo o dia com um protesto em cada esquina. Durante a tarde, os farmacêuticos tinham fechado o trânsito na Avenida 9 de Julio, a principal da cidade. No Bairro de Liniers, o protesto foi com blocos carnavalescos.
As assembleias de bairro aconteceram nos mais diversos pontos da cidade, desde os elegantes Palermo e Recoleta, passando pelo charmoso San Telmo e pelo turístico e tradicional La Boca. Os muros pichados, as faixas e as conversas nos cafés lembravam a cada instante o confisco das economias da classe média, com o chamado corralito, o desmonte dos serviços públicos e o crescente desemprego.
O feriado bancário que antecipava a estreia do câmbio livre do dólar não significou folga para as vidraças e letreiros das agências de bancos, impiedosamente estilhaçados, apesar dos inúteis tapumes de madeira e reforços metálicos.
Por toda a tarde de sexta-feira, um grupo de bem humorados poupadores desfilou pelo chamado Microcentro da cidade — o centro financeiro — em protesto contra o corralito, carregando um enorme pênis inflável, cor de laranja, com a inscrição “Pesificación las pelotas”, algo como “pesificação é o c…”. O grupo foi muito aplaudido ao finalmente chegar à Praça de Maio, por volta da meia-noite.
“Que se vayan todos!”
“É certo que o momento de grande humilhação de um povo pode converter-se no começo de seu ressurgimento”, diz a mensagem dos Sínodo dos Bispos Argentinos à nação, afixada no adro da Catedral de Buenos Aires. A julgar pela intensa mobilização da população argentina, eles devem ter razão.
“Estamos vivendo um momento muito difícil, mas estamos todas as semanas nas assembleias de bairro e nos protestos para garantir o fim do corralito, a manutenção de serviços públicos e as eleições gerais”, conta Lucia Comas, 30 anos, integrante da organização de Direitos Humanos H.I.J.O.S., sigla em castelhano para “Filhos pela Identidade e Justiça, contra o Esquecimento e o Silêncio”, que reúne filhos de desaparecidos, assassinados, presos políticos e exilados da ditadura militar.
Os militantes de H.I.J.O.S. recentemente decidiram abrir a organização à participação de todos os que, de alguma forma, sejam afetados pela repressão. Eles estão engajados na assembleia do Bairro de Montserrat, na região central de Buenos Aires, onde está a sede da entidade.
Uma vez por semana, a comunidade local se reúne, discute política geral e questões específicas. Como nas demais assembleias de bairro, os encontros têm dia, horário e local fixo e elegem dois porta-vozes, que levarão o resultado das discussões à Assembleia Interbairros, que ocorre aos domingos, no Parque Centenário.
Alternativa eleitoral
Organizações como as assembleias de bairro são classificadas pelo economista Plínio de Arruda Sampaio como “a forma embrionária de uma nova esquerda”. Ele acredita que dos debates e do exercício cotidiano de algo que se aproxima da democracia direta, como são essas reuniões, deve surgir algo novo, ainda que, num primeiro momento, elas sejam vencidas pelo cansaço, o movimento reflua e as pessoas voltem para casa.
“Eles estão construindo uma organização mais adaptada ao mundo contemporâneo. É a revolução da cidadania. Mesmo que essa mobilização hiberne por um tempo, tenderá a ressurgir mais adiante, com maior organicidade e acúmulo, com capacidade, inclusive, de gestar uma alternativa eleitoral concreta” acredita Sampaio.
“Infelizmente, não temos na Argentina um Partido dos Trabalhadores como vocês têm no Brasil”, lamenta o aposentado Juan José Oliva. Ele participa da assembleia de City Bell, bairro da província de Buenos Aires, fora da área da capital federal. “A aliança construída em torno de [Fernando] De La Rua [presidente da República eleito pela União Cívica Radical e deposto em dezembro de 2001, na onda de protestos] traiu todos os compromissos de campanha e agudizou ainda mais a crise”, avalia o petroleiro aposentado.
“A Frepaso [Frente País Solidário, que fez parte da coalizão de governo até 2000] mostrou que não era muito diferente dos que botamos para correr”. Oliva votou em Menem para o primeiro mandato, “contra o ladrão do Angeloz”, e foi eleitor de Fernando De La Rua.
Revolução e voto
O aposentado não vê perspectiva imediata de consolidação de uma alternativa eleitoral de esquerda na Argentina. “Os representantes dessa ala são muito divididos e cheios de contradições entre eles”. O ex-militante peronista não esconde, porém, seu início de flerte com as facções mais radicais como a Convergência Socialista, e o Movimento Socialista dos Trabalhadores.
Plínio de Arruda Sampaio, porém, não vê nesses grupos a capacidade de liderar as mudanças. “Falta-lhes flexibilidade para entender a dinâmica do movimento em curso na Argentina”. Para Sampaio, se o país contasse com uma organização forte e popular de oposição ao projeto neoliberal, a atual mobilização poderia transformar-se “numa revolução, pelo voto popular”.
Com o povo na rua, os partidos tradicionais e as entidades sindicais que deram suporte ao neoliberalismo não têm coragem de aparecer. A elite dominante perdeu o controle da situação e não consegue propor uma alternativa. E já há quem aproveite a deixa para falar de um retorno dos militares. “Tudo o que ouvimos são rumores a situação é preocupante, mas não creio que haja condições políticas para um golpe militar nesse instante”, diz Lucia Comas, de H.I.J.O.S.
“Em política, não há espaço vazio que permaneça desocupado e o risco de um golpe militar é grande, discorda Plínio Sampaio, com a experiência de quem testemunhou a primavera chilena, comandada por Salvador Allende, na década de 70, ser varrida por um dos mais sangrentos golpes militares já registrados na América Latina.
De volta aos anos 40
O Café Modena é um galpão de vidro encravado no verde de um parque ao lado do Museu Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires. A decoração e o cardápio são inspirados na Escuderia Ferrari e os frequentadores vestem roupas de grife e tomam champanhe no preguiçoso começo da tarde de sábado.
É aqui que Alícia, três anos de idade, vem pedir água gelada, carregando uma garrafa térmica quase de seu tamanho. Aproveita para esticar os olhos para os pratos servidos sobre as mesas. “Eu moro ali”, responde à minha tentativa de puxar conversa, apontando para a sombra de uma árvore.
Os pais de Alícia mal beiram a casa dos 20 e querem dinheiro para dar entrevista. Há dois dias estão dormindo no parque, chegados de Neuquén, no Sul da Argentina. Os arredios Javier e Inés talvez passassem despercebidos na paisagem de uma grande cidade brasileira, acostumada a seus sem-teto, pedintes e guardadores de carros.
Na antes europeia Buenos Aires, eles são parte de um fenômeno recente, construído ao longo de uma década de aplicação rigorosa das determinações do Fundo Monetário Internacional. Seu resultado mais dramático é o crescimento de 6,3% para 18,3% das taxas de desemprego desde 1990.
Nenhum discurso contra a política econômica adotada na Argentina a partir do governo de Carlos Meném e de seu superministro Domingo Cavallo conseguiria ser tão eloquente quanto os indicadores econômicos oficiais, fornecidos pelo Ministério da Economia e pelo Banco Central do país.
Com exceção da taxa de inflação, que despencou de 1.343,90% ao ano, em 1990, para 1,44%, em 2001, os números comprovam a vulnerabilidade da Argentina, sua dependência crescente de financiamentos externos, como demonstram o saldo de conta corrente do balanço de pagamentos e o crescimento veloz do empobrecimento de uma população acostumada a padrões de Primeiro Mundo.
O sociólogo argentino Atílio Boron, secretário-executivo do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais, resume a devastação: antes de Juan Domingo Perón chegar ao poder, em 1946, a distribuição de renda nacional era de 23% para o trabalho e 77% para o capital. Dois anos depois da ascensão de Perón, a redistribuição apontava 49% para o trabalho, 51% para o capital.
A “modernidade” de Menem fez a Argentina retroceder à primeira metade do Século XX, e hoje o país registra o mesmo placar de 77% a 23% a favor do capital, na distribuição de renda.
A renda per capta argentina está despencando. Estima-se uma queda de 8%, que pode chegar aos 15% com a atual crise. A taxa de desemprego, triplicada entre 1990 e 2001, é uma demonstração de que as políticas neoliberais tinham um alvo especial: os trabalhadores.
Tudo em nome de um “ajuste” que fez a dívida pública saltar de 38% do PIB para 54%.
O país passou a ser fortemente dependente de capitais estrangeiros para financiar o déficit em conta corrente. Dados do terceiro semestre de 2000 indicavam a necessidade de US$ para cobrir o rombo neste indicador, que era superavitário em 1990.
Economia: rompendo a camisa de força
Moratória, confisco da poupança, quebra da paridade peso-dólar e cinco presidentes da República em dez dias. Desespero dos pequenos poupadores com suas economias, depositadas em dólares, presas no corralito bancário. Desemprego galopante, cortes sucessivos na oferta de serviços públicos. E o FMI ainda quer mais.
Os brasileiros passaram por uma moratória em 1987, sofreram o confisco da poupança em 90, despacharam um presidente corrupto em 92 e viram o fim da paridade dólar-real em 99, como lembra o deputado federal Aloizio Mercadante, secretário de Relações Internacionais do PT. “Para os argentinos, aconteceu tudo em pouco mais de uma semana. Isso dá uma ideia do terremoto”.
Mercadante, entretanto, acredita a fase mais difícil a ser enfrentada pelos argentinos será esse curto prazo. “O país terá que desenvolver uma política agressiva de substituição de importações e contar com muita solidariedade internacional”.
Para o deputado, também economista, a Argentina passará por um período de acomodação da crise, durante o qual haverá pressões de todos os segmentos sobre o governo, buscando interferir na arbitragem e na distribuição das perdas. “É o momento em que se irá definir quanto dessas perdas o Estado será capaz de absorver”.
Mercadante não crê que o FMI vá conseguir impor mais arrocho ao país, apesar de todas as condições que vêm sendo impostas pelo organismo internacional para garantir ajuda externa à Argentina. “Os argentinos não têm mais o que oferecer. Já cumpriram todos os ajustes. Agora é hora de apoio e ajuda, tanto de países quanto dos organismos multilaterais”.
Camisa de força
“A verdade é que nossos vizinhos estão passando por um momento muito positivo”, acredita o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, especialista em Mercosul e ex-presidente do Instituto de Relações Internacionais do Itamaraty. “O momento negativo foi o Plano Cavallo e seu programa político, econômico e social de total submissão às determinações do FMI”.
Guimarães crê que os argentinos estão acordando do “sonho artificial” de virar primeiro mundo e ter moeda forte por decreto. “Eles vão ter que retomar a política tradicional de país subdesenvolvido: controlar as importações e atrair capitais produtivos, que cumpram certos requisitos”.
Para o embaixador, a pesificação da economia é uma medida correta, é a saída da camisa de força da paridade com o dólar e o caminho para reativar e proteger a atividade econômica interna. Mas é fundamental que os argentinos recusem qualquer nova imposição de “ajuste” feita pelos organismos internacionais. “Todos os relatórios do FMI sobre a Argentina são altamente elogiosos. Eles cumpriram à risca cada uma das prescrições feitas pelo Fundo e o resultado é essa catástrofe. Agora, é hora de desfazer”. Aloizio Mercadante concorda: “Eles aplicaram à risca o modelo neoliberal. Essa é a razão de toda a crise”.