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Quem passa frequentemente pelo entorno do estádio do Palmeiras, na zona oeste de São Paulo, já se acostumou com os avisos de interdição de trânsito na avenida Palestra Itália, antiga Turiaçu, em dias de jogos ou de grandes shows. Já tocaram ali de Paul McCartney a Titãs; de Taylor Swift a bandas de K-pop. Os sertanejos todos também estão sempre por lá, e foi um show de um deles que eu imaginei que iria acontecer no estádio na semana passada quando vi o aviso de um tal de Gaffff (assim, cheio de Fs mesmo). Não captei de imediato o que significava a sigla, mas vi que tinha agro e tinha festival.
Na verdade, era um negócio muito maior, o Global Agribusiness Festival, com a proposta nada modesta de ser “o maior festival de cultura agro do mundo”. Sim, tinha shows de sertanejos, mas também, como apresentado no prospecto: food (comida), fun (diversão), fair (feira de negócios) e forum (fórum de discussões). Daí os 4 Fs, em inglês, afinal, o evento era “global”. Afff.
Apesar de ter nascido no berço dessa cultura agro, em Barretos, e de saber cantar de cor e salteado não apenas Evidências, fujo da Festa do Peão, e sertanejos não passam pela minha playlist. Mas fiquei interessada na parte “forum ” do evento – e a promessa de acessar “conteúdos que transformam o agro e o planeta”.
(Sobre os outros Fs, aliás, recomendo a leitura da ótima análise feita pela colega Mariana Grilli para o UOL.)
A descrição das palestras, restritas a convidados, era tentadora: “Além de reforçar a importância do agro no cenário econômico brasileiro e internacional, nossos painéis irão debater os rumos do setor e seus principais desafios, principalmente em relação às mudanças climáticas, preservação de recursos naturais e soluções sustentáveis para uma população em crescimento”.
O leitor mais desconfiado sentiu um cheirinho de greenwashing? Eu também. Mas vamos lá. Não é todo dia que a gente vê o agro se dispondo a colocar mudanças climáticas e preservação de recursos naturais como prioridade no debate. Veja que tem um “principalmente” ali no resuminho. Achei que merecia uma colher de chá.
De 19 painéis, quatro traziam a palavra “sustentabilidade” no título e só dois falavam explicitamente em “mudanças climáticas”. Fui conferir um deles, sobre “como mitigar e evitar os riscos dos eventos extremos”. É de imaginar que essa deve ser a preocupação número 1 do setor, que vem sofrendo sucessivas perdas por causa de secas e chuvas muito intensas. Só no Rio Grande do Sul estima-se que os temporais entre o fim de abril e o começo de maio tenham levado a um prejuízo de R$ 3 bilhões à agricultura gaúcha.
Logo na abertura da mesa, porém, ficou evidente que, apesar de se identificar como vítima do aquecimento global, o setor não quer discutir suas próprias contribuições para o problema. Luiz Roberto Barcelos, presidente da Agrícola Formosa, do Ceará, que moderava a discussão, foi rápido em explicar: “A mudança ocorre, mas não vamos discutir o motivo, não vamos entrar em polêmica. Se é o homem do campo ou o homem da indústria que polui, não vamos debater”.
Na sequência, Caio Souza, head de agronegócios da Climatempo, entrou no jogo: “Precisamos olhar o problema, não precisamos buscar o ator principal da mudança climática. A mudança climática é o ator principal. Somos coadjuvantes e precisamos criar oportunidades”.
Tudo bem, eu entendo que existe uma estratégia aí de não apontar dedos para não afugentar ninguém, superar resistências e, principalmente, o negacionismo. Para lidar com o problema, todo mundo precisa estar junto, então bora trabalhar, deixa essa história de responsabilidades para lá.
Mas… quando estamos tratando das mudanças climáticas, se, por um lado, sim, é preciso falar em adaptação, em criar formas de se proteger e, obviamente, de sobreviver ao novo cenário que já está posto; por outro, não tem como não considerar o que está causando o problema para começo de conversa – que é o fato de a humanidade estar emitindo loucamente gases de efeito estufa, que se acumulam na atmosfera como não ocorria há mais de 3 milhões de anos .
Adaptar-se ao aquecimento global é tão fundamental quanto mitigá-lo: fazer todos os esforços possíveis para diminuir a quantidade de gases que aquecem o planeta.
Se em todo o mundo a maior parte desses gases é proveniente da queima de combustíveis fósseis, no Brasil as fontes principais são o desmatamento e a agropecuária (por causa, principalmente, da digestão do rebanho – o proverbial arroto do boi). Considerando que a maior parte das áreas desmatadas no Brasil acaba sendo convertida, posteriormente, em pastagem e agricultura, pesquisadores do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) calculam que o setor, indiretamente, é quem mais colabora com as emissões brasileiras.
Sinto muito, pessoal. Não discutir isso é não lidar com o elefante na sala.
Desenvolver técnicas para proteger as safras e os rebanhos, mas não trabalhar para zerar o desmatamento entre produtores que ainda o praticam só vai aumentar os riscos para o setor. Nunca é demais repetir: menos floresta = mais calor e menos chuva. Também é preciso trabalhar para que todo o crédito agrícola no Brasil seja vinculado a boas práticas que reduzam as emissões. Coisa que especialistas pedem todo ano, mas ainda não virou realidade no Plano Safra.
Infelizmente, não parece que o evento estava muito interessado em identificar os próprios problemas. O sentimento foi reforçado em outro painel a que assisti: “O rebranding no agronegócio: transformando a percepção sobre o setor”.
Rebranding é um conceito que vem da publicidade e que visa fazer um reposicionamento de marca, de imagem. A ideia é “fazer com que as pessoas mudem a percepção de alguma coisa”, como explicou o publicitário Marcelo Rizerio, da agência Euphoria, que se apresentou no painel. Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal, que moderou a mesa, disse que o agro precisa mostrar que é supertecnológico e, também, “como é difícil manter comida na mesa dos brasileiros”.
Eduardo Monteiro, diretor comercial e de marketing do Canal Rural, disse que histórias estão sendo contadas sem que o setor assuma o protagonismo delas. “Estão chegando na sociedade sem que a gente conte as nossas histórias”. Ainda defendeu: “Senão, um fica apontando o dedo para um, para outro. [Mas] o agro tem de ser o agro da paz. A discussão é saudável, mas o conflito e o confronto levam à rejeição”.
Fiquei esperando a hora em que alguém ia explicar qual história está chegando na sociedade, qual é a imagem que eles querem mudar. Mas assim como na mesa da mudança climática, ninguém quer tratar de problema. Um único slide trazia muito rapidamente palavras como desmatamento e agrotóxicos.
O agro quer mudar, mas não quer assumir o que está fazendo de problemático, seja da portaria para dentro ou para fora.
Achei simbólica uma frase que Rafael Furlanetti, sócio-diretor institucional da XP, que promoveu o evento, disse repetidas vezes em sua apresentação: “Quando você fala uma coisa diversas vezes para uma pessoa e ela não entende, o problema não é a pessoa, o problema é você, que não explicou direito”.
Agora pensa comigo. Esse é o mesmo agro que conta com uma propaganda na maior rede de televisão vendendo à exaustão que é isso, é aquilo, é pop, é tudo e tal. Se esse setor diz que sente a necessidade de fazer um rebranding, fico pensando se o problema é que ele realmente não está explicando direito ou se os fatos, na realidade, é que não são tão brilhantes assim.
Fonte
O post “O agro quer fazer um rebranding” foi publicado em 05/07/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública